terça-feira, 4 de setembro de 2018

SINCRONISMOS E IRONIAS NO INCÊNDIO DO MUSEU NACIONAL


Tautismo Global, sincronismos e ironias no incêndio do Museu Nacional

Por Wilson Ferreira

No Manifesto Futurista, Marinetti falava em “destruir museus” para libertar as consciências dos “inúmeros cemitérios”, e nos prepararmos para o futuro. Em visita ao Rio em 1926, Marinetti repetiu tudo isso e viu no Brasil um país futurista porque não teria “nostalgia das suas tradições”... Claro, Marinetti era um iconoclasta. Mas o Brasil é mais realista que o rei. Leva ao pé-da-letra coisas como “austeridade fiscal” (cuja realização máxima foi, até aqui, a “PEC da Morte”) que até o próprio FMI criticou em 2016. O incêndio do Museu Nacional foi um acontecimento irônico e sincrônico, na cidade em que Marinetti via a “realização acidental” do futurismo: resultado do neoliberalismo levado a sério num momento em que o fascismo se aproxima no segundo turno das eleições – um fascismo próximo ao de Marinetti. E, mais uma vez, o motor dessa austeridade foi a cobertura tautista (tautologia + autismo midiático) pela Globo da catástrofe científico-cultural. Sinal dos tempos: a cobertura de Carlos Nascimento ao vivo dos choques dos aviões contra as torres gêmeas em 2001 conseguiu ser mais objetiva do que os relatos sobre o incêndio, encaixados nos dois eixos narrativos globais: “esse país é uma merda!” e “corrupção, corrupção e corrupção...”.

O poeta Menotti Del Picchia era um dos artistas brasileiros mais entusiasmados com a visita do pai do movimento do Futurismo ao Brasil em 1926. Via o Brasil um país talhado para o Futurismo, por não sofrer “a nostalgia das tradições e que nunca tivera a preocupação de queimar museus”. Ao contrário de Marinetti, cujo manifesto futurista na Itália falava em “destruir museus e fuzilar todos os comendadores”.

Marinetti viu no Rio de Janeiro a própria realização futurista: favelas que eram “acidentalmente futuristas” e a cidade como “um fruto tropical que produz um delicioso suco: a velocidade dos automóveis”. Para retornar ao País em 1936, dessa vez como representante do Governo italiano fascista de Mussolini, vendo na guerra a realização máxima do Futurismo: a destruição de toda tradição – leia BARROS, Orlando de, O Pai do Futurismo no País do Futuro, E-Papers, 2010.

É claro que Marinetti era um iconoclasta: jamais mandaria Roma pelos ares e destruiria museus e bibliotecas. Era a linguagem da propaganda elevada a condição de arte. Por isso, modernistas como Mário de Andrade não o levavam a sério e recusavam qualquer comparação do modernismo brasileiro com o Futurismo.

Mas hoje tudo mudou.  Somos mais realistas que o rei: responsabilidade fiscal, teto de gastos (a chamada “PEC da Morte” - congelamento por 20 anos dos recursos destinados à ciência, educação, saúde e cultura) e todo o conteúdo do saco de maldades das políticas neoliberais aqui é levado a sério. Enquanto nos países que deram origem ao discurso do “Estado Mínimo”,  desde o crash financeiro de 2008, o neoliberalismo não resistiu ao rescaldo da crise e foi relativizado até pelo FMI com críticas em seus relatórios em 2016: as medidas neoliberais “aumentam a desigualdade e colocam em risco uma expansão duradoura” – clique aqui.

Marinetti (no centro, de bigode) no Rio em 1926

“Acelerar!”


Dessa maneira, a catástrofe científica e cultural no incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro mostra como o país que Marinetti tanto elogiou no poema-reportagem “Brasiliane Velocitá” em 1926 realizou também ao pé-da-letra os slogans propagandistas do Futurismo. Definitivamente, o Brasil não sabe brincar...

  Num conjunto de sincronismos, o Brasil pós-golpe torna reais os delírios de Marinetti: destruir o passado, o patrimônio, a História e a memória para nos tornarmos mais leves e acelerarmos rápido para o futuro – temos até um ex-prefeito e candidato a governador do Estado de São Paulo obcecado com a ideia de “acelerar”!

Memória, Ciência e História Natural viraram cinzas justamente na cidade brasileira mais amada pelo fascista Marinetti num momento em que um candidato fascista de extrema-direita se aproxima das eleições com reais possibilidades de chegar ao segundo turno – tá certo que Bolsonaro não é um “fascista” nos moldes de Mussolini, mas é tão deletério quanto...

Para o neoliberalismo brasileiro levado ao pé-da-letra, o passado pesa demais na nossa corrida para o futuro: Petrobrás, Getúlio Vargas, trabalhismo, Lula, sindicalismo, estatais, nacionalismo etc.

Para um país que almeja o empreendedorismo, a terceirização, as flexibilizações, as desregulamentações, as privatizações e o livre comércio, a redução a cinzas do Museu Nacional é simbólica: os custos da manutenção do conhecimento e memória pesam demais na futura miniaturização do Estado. E para o mercado, História e patrimônio não dão lucro. É tudo sólido demais para a “Modernidade Líquida” (Zygmunt Bauman) tão almejada pelos luminares do mercado financeiro.


Memória afetiva tautista da Globo


E o tautismo (tautologia + autismo midiático) da emissora hegemônica de corações e mentes brasileiras, a Rede Globo, é o motor dessas coisas que aqui foram levadas a sério.

Como não poderia deixar de ser, a cobertura da emissora do terrível sinistro do Rio de Janeiro foi marcada por uma interpretação tautista de repórteres e apresentadores que, de tão fechados nas bolhas televisivas dos estúdios, passaram a relatar o incêndio a partir de uma narrativa que a Globo faz de si mesma.

O ponta pé inicial dos sintomas começou na Globo News, cobrindo o início da catástrofe no início da noite do domingo: “pega fogo um museu com DEZENAS de anos”... Na verdade com duas centenas de anos. Definitivamente, a História é um problema para a visão de mundo “líquida” da Globo.

A cobertura ao vivo de Carlos Nascimento na Globo durante os choques dos aviões contra as torres gêmeas em Nova York em 2001 foi mais objetiva, comparada com a cobertura do traumático incêndio no Rio.

O que se via ao longo da programação eram memórias afetivas do museu de repórteres e apresentadores falando das suas infâncias vendo as múmias, o fóssil de 11 mil anos de “Luzia” (que fez parte das primeiras populações que entraram no continente americano) e os esqueletos de dinossauros.

Telejornais mostravam repetidamente cenas da novela “Novo Mundo” (2017) para explicar que o museu foi o endereço da família real no século XIX e que lá foi assinada a independência do Brasil por dom Pedro I.

A História virou cinzas... mas temos a História tautista nas telenovelas

Mesmo na tragédia, a Globo precisa marcar a “ferro e fogo” a ficção global no imaginário brasileiro.

Esse, por assim dizer, tautismo virtual chegou ao ápice no dia seguinte quando, no programa “Estúdio i”, o especialista em tecnologia Ronaldo Lemos cantou loas à possível ressurreição do Museu Nacional com réplicas em impressoras 3D das peças perdidas, a partir de fotografias e selfies que os telespectadores poderiam enviar... Assim como foi feito com o Arco do Triunfo de Palmira, na Síria, destruído pelo Estado Islâmico.

Então o ar de consternação deu lugar a um de um leve otimismo... a iniciativa privada salvará o dia... Mais uma vez, Bauman tem razão sobre a liquidez dos paradigmas atuais: não há espaço para lutos e perdas que poderiam criar o impulso para a transformação a partir da dor – tudo pode ser virtualmente ressuscitado e recriado como réplica. Ou simulacro, como definiria o pensador francês Jean Baudrillard.

Eixos narrativos globais


 Mas um incidente catastrófico como esse, com terríveis imagens noturnas das enormes chamas das telas globais na noite de domingo, precisa ser encaixado em uma narrativa tautista. A mesma que há anos a Globo vem repetindo, um discurso genérico que, entre outras vitórias, turbinou o impeachment de 2016. Afinal, é necessário levantar o astral dos brasileiros que precisavam voltar à realidade na segunda-feira.

Uma narrativa composta por dois eixos básicos:

(a) “Esse País é uma merda!” -  Repetidas matérias dos correspondentes internacionais sobre como os museus europeus são tão rigorosos com suas treinadas brigadas anti-incêndio e sofisticados sistemas de detecção de calor. Típica pauta jornalística de contraste para mais uma vez, marcar a ferro e fogo (literalmente!) que o Brasil é um país que cronicamente não dá certo. Por isso, temos que levar ao pé-da-letra os “remédios” recomendados para nós. Somente esquecem de dizer que em países como França e Inglaterra museus não sofrem os danos das austeridades fiscais. Porque lá as medidas dos “Chicago boys” são relativizadas. E o anarco-capitalismo ridicularizado.

(b) “Corrupção, corrupção e corrupção!...” –  Quem é o culpado pelo incêndio do Museu Nacional? Pergunta-se Sandra Annenberg na bancada do “Jornal Hoje” no dia seguinte. A resposta é disparada como uma rajada de metralhadora: “burocracia, má gestão, corrupção!...”. Com o início da busca de culpados na UFRJ que supostamente não repassava as verbas do MEC para o Museu.

Busca que acabou se concretizando em uma inacreditável entrevista com o secretário-geral da Associação Contas Abertas: a culpa é do salário líquido do reitor da UFRJ e do dinheiro destinado para lavar os carros dos deputados... disparou Gil Castello Branco na Globo News e prontamente repercutida pelo restante da grande mídia.

Definitivamente, 200 anos de Brasil foram mais fatais para o fóssil “Luzia” do que os 11 mil anos de intempéries.  


A única coisa que resistiu ao incêndio foi o meteorito Bendegó, achado em 1784 no Nordeste: se um objeto extraterrestre sobreviveu à entrada na atmosfera, não seriam agora as questões terrenas que o destruiriam.  -  (Fonte: Cinema Secreto / Cinegnose - AQUI).

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