sábado, 15 de setembro de 2018

10 ANOS DEPOIS: SOCIEDADE PARTIDA

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O economista Fernando Nogueira da Costa reflete acerca dos acontecimentos que precederam e se sucederam à "maior crise mundial desde a de 1929", cujos reflexos se fazem sentir até os dias de hoje. Crise cuja origem, por sinal, segundo muitos, guarda relação com as "desregulamentações" levadas a efeito na década de 1980, patrocinadas pelos governos Reagan e Thatcher, atendendo a entusiastas do Neoliberalismo/Monetarismo. As transações à base dos famosos "derivativos" ('moedas-podres'), largamente acionadas por bancos e financeiras, têm tudo a ver com o buraco negro que comprometeu todo o sistema, fruto da 'frouxidão' das medidas de controle. No final, os defensores do Estado Mínimo, para escapar da ruína, tiveram de contar com o auxílio amigo do 'Estado-Interventor', tão abominado por eles.
(Dica adicional de leitura: Aqui).


10 Anos Depois: Sociedade Partida 

Por Fernando Nogueira da Costa

Efemérides recordam os acontecimentos sucedidos em um mesmo dia, em diferentes épocas. Efêmero significa “apenas por um dia”, por exemplo, em 15 de setembro de 2008. Refere-se a algo passageiro, transitório, de curta duração. Todas as situações efêmeras têm a característica de não durarem muito, de acabarem passado pouco tempo. Porém, passaram-se dez anos e “a maior crise mundial desde a de 1929” ainda não passou. Aquela propiciou circunstâncias favoráveis ao crescimento do nazi fascismo. E a atual?

Movimentos sociais de protesto contra o socorro aos bancos norte-americanos à custa de endividamento público incentivaram o ultraconservador Tea Party, pelo lado republicano, e o Occupy Wall Street, do lado da esquerda estadunidense. Operários desempregados, seja nos Estados Unidos, seja na Europa, engrossaram a xenofobia contra imigrantes e votaram em candidatos direitistas. O neofascismo surgiu.

Sob pressão política, os bancos centrais do centro do mundo colocaram US$ 15 trilhões em seus balanços e garantiram a Grande Recessão não se transformar em Grande Depressão similar à de 1929, no centro do capitalismo mundial. Conservaram baixas as taxas de juros.
O Fed (Banco Central dos Estados Unidos) adotou o afrouxamento monetário com o resgate de títulos de dívida pública colocados antes nas carteiras de bancos. Ele priorizou o combate ao desemprego. O BCE (Banco Central Europeu), pressionado pelo conservadorismo fiscal da Alemanha, a maior economia europeia, exigiu sacrifícios enormes à população da periferia da União Europeia, especialmente, dos PIIGS: Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha [Spain].
A surpresa para muitos economistas monetaristas foi essa enorme “facilidade de monetização” da dívida pública norte-americana não ter resultado em inflação corrente. Foi a “pá-de-cal” na secular Teoria Quantitativa da Moeda. Finalmente, foi matada e enterrada!
A fuga de manutenção de riqueza líquida sem rendimentos ou ganho de capital leva investidores à caça de outras formas de renda e riqueza. A rent-seeking (ou busca de renda) via financialização ou financeirização é a tentativa de obter renda pecuniária até pela manipulação do ambiente social ou político no qual as atividades econômicas ocorrem, em vez de agregar valor na produção de bens e serviços.
Em economia de mercado de capitais ou renda variável, como a dos Estados Unidos, é mais fácil criar “bolhas de ativos” através dos descolamentos dos preços das diversas formas de manutenção de riqueza em relação aos fundamentos microeconômicos, setoriais e macroeconômicos teoricamente determinantes. Quando 10% da população dos Estados Unidos detêm 84% das ações, os aumentos dos preços das ações não criam inflação corrente, mas sim desigualdade maior em riqueza.
Por que o excesso de oferta de moeda, face à demanda agregada, não resultou em inflação corrente?  
Em vez de destacar o desvio da liquidez para o mercado de ações, a hipótese usual é por não haver pressão de demanda capaz de mudar o efeito indireto da globalização: arrocho de salário nominal no centro, propiciado pela importação de bens de consumo baratos, por sua produção ocorrer em países emergentes com mão-de-obra barata. A deflação provocada pela inovação tecnológica da automação robótica e a crescente concentração de poder de mercado em grandes corporações impossibilitam também os trabalhadores dos países ricos adquirirem maior poder de barganha salarial. Assim, a bolsa de valores nova-iorquina alcança maiores picos, concentrando riqueza em mãos de executivos recebedores de remuneração variável.
Esta é um conjunto de recompensa variável para complemento do salário fixo da alta administração de empresas não-financeiras ou executivos do mercado financeiro. Há desde as comissões sobre vendas até os prêmios por desempenho e outras formas similares de pagamento de bônus com ações da própria empresa. Não há a contrapartida em crescimento real dos salários fixos dos trabalhadores de baixa renda.
Portanto, o viés do Fed (e depois do BCE) tem sido deixar as taxas de juro baixas sem se preocupar com as consequentes bolhas de ativos. Por sua vez, nos últimos dez anos, os políticos do mundo desenvolvido, diferentemente dos dirigentes chineses do PCCh, não aprovaram nem grandes planos de infraestrutura nem uma reforma educacional ou na saúde pública em benefício das pessoas comuns.
Na periferia, em economias de endividamento ou renda fixa, a opção política da casta dos mercadores, financiadora das eleições da casta de oligarcas dinásticos ou de bancadas temáticas (BBBB), tem sido pressionar pela adoção de um regime de restrição fiscal. Ele garantiria, em tese, o risco soberano de títulos de dívida pública pagadores de altos juros em renda pós ou prefixada. Alardeiam um (falso) temor pela crescente relação entre o aumento da dívida bruta e a queda do PIB.
Quem de fato acredita no risco de insolvência do Tesouro Nacional? Não importa. É mera justificativa para a adoção de austeridade fiscal mesmo em circunstância de Grande Depressão, quando “o beabá do keynesianismo” indica a necessidade de investimentos públicos. Estes são autônomos em relação às expectativas pessimistas do setor privado. Governo impopular fica indiferente ao desemprego em massa.
O Estado mínimo tem elevado custo social. A retração de políticas de bem-estar social gera a expansão nas políticas de repressão criminal. Do minimalismo governamental ao maximalismo punitivo-penal. O Estado-penitenciária, no caso brasileiro, se revela nas características da terceira maior população carcerária do mundo (mais de 700 mil pessoas): 37% presos por crimes contra o patrimônio, 28% por tráfico de drogas, ambos típicos de pessoas com vulnerabilidade socioeconômica em busca de sobrevivência ou emergência fora da legalidade. Apenas 11% são presos por homicídios, porque a polícia investiga com sucesso apenas 8% dos casos de assassinatos.
Na primeira fase da crise pós-2008, a atuação anticíclica do Estado-interventor ou “salvador-da-pátria” empresarial evitou o aprofundamento da recessão de 2009, retomando o crescimento já no ano seguinte e levando o Brasil ser considerado “a bola-da-vez” entre os grandes países emergentes. No último trimestre de 2011, a piora da demanda externa levou à explosão da bolha de commodities agrícolas. A mudança forçada na relação câmbio/juro – alta daquele, queda deste – era necessária, mas sem outras “políticas de oferta”, isto é, concessão de benefícios aos empresários privados através de desonerações fiscais e créditos excessivamente subsidiados com taxa de juros real negativa.
Em que pese essas benesses concedidas à casta dos mercadores, o Estado-demonizado passou a ser apresentado, midiaticamente, como Estado-corrupto, quando as manifestações de junho de 2013 clamavam por um Estado-provedor. Um golpe parlamentarista em regime presidencialista de coalizão foi arquitetado pela traição partidária, incentivada pelo conluio entre mídia e justiceiros, ou seja, pelas castas da pena, toga e farda. Trocou o Estado do Bem-Estar Social (welfare-state) pelo Estado-repressor com intervenção militar (warfare-state), somando-se ao Estado concentrador de renda financeira e ao Estado penitenciário.
Com a inabilidade dos partidos golpistas em entregar uma resposta econômica para a crise, não se estancou o ativismo direitista para golpear a democracia eleitoral. Como aprendizes-de-feiticeiro, liberaram a direita brasileira do armário onde ela se tinha mantido desde o fim do regime militar-ditatorial. Resultou na destruição do centrismo do conluio PSDB-MDB-DEM-PPS, levando-o a disputar votos como uma desesperada centro-direita contra o extremismo de direita, ultranacionalista, xenófoba e propagadora de misoginia, homofobia, racismo e violência contra “os pobres suspeitos de sempre”. O neoliberalismo econômico exterminou tanto o liberalismo político quanto o de costumes.
De acordo com a Hipótese do Mercado Eficiente, “os mercados ditam as regras”, ou seja, os preços devem ser livres para o sistema de preços relativos orientar o ganho de capital. Se no centro do mundo econômico há uma política monetária frouxa, os preços das ações lá criam bolhas no mercado, incentivando o ganho de capital apenas com a postura de seguir a tendência de alta. Não há demanda por financiamento primário para o mundo real.
A abordagem amistosa do mercado dos “reguladores-amigos” perdoa eles não se declararem impedidos por conflitos de interesses, isto é, beneficiarem a si próprios com suas decisões sobre o juro de referência. Permitem as bolhas crescerem e estourarem em vez de evitar sua formação com política preventiva. Basta, no entanto, uma leve ameaça ou anúncio prévio de prevenção contra futura alta de juro norte-americano para o dólar ser apreciado e as moedas periféricas se depreciarem.
O resto do mundo voltará ao arranjo do passado de exportar commodities, inclusive industriais, e financiar o consumo norte-americano, em um equilíbrio instável, porém benéfico para todas as economias, como em 2004, quando, pela primeira vez na história moderna, cresceram em simultâneo? Ou a história se repetirá com nova explosão de bolha de ativos similar à ocorrida em 2008?  -  (Aqui).
(Fernando Nogueira da Costa - Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” [Editora Contexto; 2018 - no prelo]). 

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