Recado captado no cosmo, emitido num ano qualquer das décadas de 1970 e 1980: Jamais se desfaça de seus bolachões (LPs) e bolachinhas (compactos duplos e compactos simples), nem das fitas cassete, e muito menos dos CDs. Você verá no futuro que as razões para tal comportamento não serão apenas de ordem sentimental. Joias raras poderão estar ali à espera de resgate.
(DJ Nuts exibe o LP Arthur Verocai: 'Além de discaço, raro')
O disco de MPB esnobado em 1973 que virou cult no rap americano atual
Por Vinícius Mendes, da BBC News Brasil
Em agosto do ano passado, durante um garimpo esporádico em um bazar de bairro em Osasco, na Grande São Paulo, o estudante Pedro (nome fictício) não acreditou quando viu, intacto dentro de uma caixa perdida de discos de vinil, o LP Arthur Verocai, gravado pelo maestro e arranjador carioca de mesmo nome e lançado pela extinta Continental no final de 1972.
Extasiado pelo achado, ele logo se lembrou que não poderia transmitir afobação ao dono do pequeno estabelecimento que, aparentemente, não sabia que, três anos antes, o mesmo disco fora arrematado em um pregão do eBay por US$ 5,1 mil (quase R$ 20 mil) — o valor mais alto pago por um LP brasileiro na história do site americano de leilões.
O homem disse a Pedro que não venderia os LPs avulsos, mas que aceitava R$ 100 pela caixa inteira. Além do vinil de Verocai, ela tinha ainda outra raridade: o primeiro álbum da dupla Jaime e Nair, gravado em 1974 — também objeto de disputa entre colecionadores brasileiros e do exterior.
"Ninguém pode saber que eu tenho esse disco do Arthur Verocai, porque não teria sossego se soubessem", conta ele que, por isso, pediu para não ter seu nome verdadeiro revelado nesta reportagem.
Poucos meses depois de comprar o disco, Pedro recebeu uma das poucas ofertas para vendê-lo: o filho de Arthur, o também músico Ricardo Verocai, prometeu pagar R$ 1 mil pelo LP, mas o estudante recusou a proposta. "Se faço isso não encontro outro nunca mais", afirma.
A preocupação faz algum sentido: por quatro décadas, as poucas cópias originais do vinil de Verocai eram encontradas em bazares semelhantes ao que Pedro comprou o seu. Mesmo quando foi lançado, no começo de 1973, o LP vendeu tão pouco que a Continental logo o tirou das lojas para encher as prateleiras com mais versões do disco dos Secos & Molhados, sensação daquele ano.
Verocai, que ganhava a vida como arranjador e maestro, ainda teve que conviver com certo desprezo dos clientes pela obra encalhada. "Quando me davam algum trabalho, me diziam: 'Tenta não repetir aquela loucura que você fez no seu disco, hein?'", conta hoje o músico, em entrevista à BBC News Brasil.
"Eu quase entrei em depressão. Foi uma fase difícil da minha vida. Guardei o vinil no armário e não ouvi mais por uns bons anos", completa.
Hoje, 46 anos depois, o disco traz outras "dores de cabeça" a Verocai: virou sucesso entre rappers europeus e americanos desde a metade dos anos 2000.
O maestro resolveu agora ir atrás de todos os artistas que usaram os arranjos do seu álbum para samples de hip-hop. Segundo o site especializado Who Sampled Who, são 49 músicas registradas pelo mundo, das quais Verocai recebeu os valores dos direitos autorais de apenas quatro. "Não tenho dormido pensando nisso", admite.
Samples são montagens de melodias já gravadas que são utilizadas pelo hip hop (e pelo funk carioca posteriormente) como sustentação para novas composições. "É o instrumento musical do rap", sentencia o professor Walter Garcia Jr., do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
Em um primeiro momento, Verocai pediu ajuda a mulher e produtora de Caetano Veloso, Paula Lavigne, para recuperar os direitos das suas músicas. Ela, então, entrou em contato com um advogado especializado de São Paulo, mas ele não pegou o caso. Agora, Verocai trabalha com um escritório de advocacia do Rio de Janeiro que está, segundo ele, listando todos os samples irregulares e entrando em contato com cada um antes de iniciar qualquer processo legal.
"Comecei a agitar esse negócio mesmo há três meses", reclama ele.
No Brasil, o disco esquecido se tornou um desses itens cult valorizados por colecionadores, músicos e acadêmicos e, ao mesmo tempo, um símbolo de requinte musical quando chegou aos aplicativos de música. As canções do disco passaram a ser tocadas por DJs em festas no eixo Rio-São Paulo, e o número de visualizações do álbum explodiu no YouTube nos últimos anos. "Eu digo que lancei o disco 40 anos depois de gravá-lo", ironiza Verocai.
O disco de 1972
Foi a cantora Célia, amiga de Arthur Verocai e um dos grandes nomes da música nacional nos anos 1970, que lhe convenceu a gravar um disco solo enquanto, ao mesmo tempo, intermediava a produção do álbum na gravadora Continental.
À época com 27 anos, Verocai já havia feito todos os arranjos do primeiro disco de Ivan Lins, Ivan Lins...agora (1970), do próprio LP de Célia de 1972 e de algumas canções de Jorge Ben (como Que Maravilha, do álbum Negro é lindo, de 1971) e do grupo O Terço. Quatro anos antes, ele tinha participado do primeiro Festival Universitário do Rio de Janeiro com a partitura de Um Novo Rumo, interpretada por Elis Regina que, aliás, fora responsável por levá-lo para ser maestro do programa Som Livre Exportação, que ela apresentava ao vivo ao lado de Ivan Lins na TV Globo.
"A Célia era a grande estrela da Continental e me contou que a gravadora queria um disco meu, mas eu disse que só faria com carta branca no orçamento e na parte artística", conta Verocai.
O maestro passou um mês em um estúdio em Botafogo, no Rio, no final de 1972 com uma orquestra formada, entre outras coisas, por um naipe de 12 violinos, quatro violas, quatro violoncelos, duas percussões, dois saxofones, um trombone, uma flauta, um piano elétrico e um time de vocais que se revezaram entre as nove canções do disco, como a própria Célia e o compositor mineiro Toninho Horta. Verocai canta sozinho em Cabloco, mas o violão dele ecoa em todas as faixas.
Quase todas as letras foram escritas pelo poeta paulista Vitor Martins que, nos anos 1970, também era um militante contra o regime militar. Algumas canções têm críticas abstratas embutidas à ditadura que conseguiram passar pela censura, segundo Verocai, pela falta de compreensão dos censores. Presente de grego, por exemplo, era como Vitor costumava chamar o significado do governo militar para o país. Já em Pelas Sombras, há uma referência aos agentes infiltrados do Estado em reuniões de estudantes em São Paulo: "Quem viaja nas sombras/por trás dos seus ombros/por trás dessa blusa de lã...".
"Esse disco é um pouco gritado, reflexo da nossa juventude. Tanto os arranjos quanto as letras expressam tudo o que estava guardado na gente e que queríamos gritar. Tudo tem um significado", explica Verocai.
Lançamento... e encalhe
A Continental prensou os LPs e colocou nas lojas em 1973, mesma época em que a gravadora lançou o álbum de estreia do grupo Secos & Molhados. Mas, enquanto o disco do grupo de Ney Matogrosso era vendido à exaustão e tocava em todas as rádios do país, a obra de Verocai encalhava nas prateleiras.
Um ex-funcionário da Continental, que prefere não ser identificado, conta que, como a gravadora passava por dificuldades financeiras à época, resolveu colher todos os vinis de Verocai estocados nas lojas para derretê-los e, com a matéria novamente bruta, reutilizá-la para fazer mais discos dos Secos & Molhados. Com isso, as cópias do álbum do maestro carioca foram ficando cada vez mais raras ao mesmo tempo que a empresa fazia dinheiro com a voz de Matogrosso.
"A música brasileira foi muito impactada pelo time de compositores que se projetou nos grandes festivais do final dos anos 1960, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivan Lins, Paulinho da Viola e Milton Nascimento. A obra deles era tão extraordinariamente bem feita e caiu tanto no gosto do público em um momento político importante que gerou uma dificuldade de (outros artistas) em se projetar à altura deles nos anos seguintes", comenta o jornalista e crítico musical José Eduardo "Zuza" Homem de Mello, autor, entre outros livros, de A era dos festivais: uma parábola (Editora 34, 2003).
"Isso deu aos discos que vieram depois uma dificuldade muito grande: a de estar à altura dos que vieram antes. Muitos estavam, como o Djavan, o Moraes Moreira, o Alceu Valença, o Zé Ramalho, mas não tiveram a facilidade de chegar ao povo através dos festivais. Nos anos 1970, o disco e o rádio passaram a ser os veículos de abrigo da música popular brasileira e, com isso, alguns nomes ficaram ofuscados", continua.
Ainda de acordo com Zuza, o encalhe dos discos de Verocai se deve também à ausência de reconhecimento aos arranjadores no Brasil. "O arranjador, em geral, ocupa uma posição menos destacada do que cantores e compositores. Além disso, há vários trabalhos na história que não alcançam a divulgação que merecem por falta de compreensão (das pessoas em relação ao seu trabalho)."
De fato, para Verocai, pior que o fracasso comercial foi o preconceito dos seus antigos clientes com o disco: eles tinham medo de que as mesmas ideias do LP fossem usadas nos arranjos que contratavam e, diante de sutis recomendações para evitá-las nas partituras, o arranjador começou a recusá-las. Assim, sem dinheiro, passou a fazer jingles. Compôs peças para a Brahma, para a extinta rede de supermercados carioca Disco e para o antigo banco Delfin — o seu jingle das cadernetas de poupança do banco durava um minuto e meio nas rádios.
Com o sucesso financeiro, Verocai abriu uma produtora no Rio de Janeiro e prometeu se esquecer do disco de 1972. "Fiquei tão na bronca que escondi ele no armário e não deixava nem meu filho ouvir", conta.
Ricardo Verocai, sem o pai saber, pegava o LP e colocava na vitrola quando estava sozinho em casa. "Era ele escondendo de mim e eu escondendo dele. Me formei musicalmente com esse álbum do meu pai."
A redescoberta
Até que, no final dos anos 2000, o produtor musical carioca Alexandre Kassin descobriu uma loja especializada em vinis brasileiros durante uma viagem a Tóquio, no Japão. Amigo de Ricardo desde a infância — e por isso frequentador da casa dos Verocai —, ele se surpreendeu quando viu o disco na parede do pequeno estabelecimento do outro lado do mundo. O vendedor, então, lhe contou que aquele álbum era raro no Brasil.
De volta ao Brasil, Kassin contou a história para Arthur, que duvidou que, décadas depois, alguém ainda ouvisse o disco em algum lugar. Na mesma época, porém, a gravadora americana Ubiquity entrou em contato pedindo autorização para reeditá-lo nos Estados Unidos. "Quando fui ver já tinha uma legião de gente me ouvindo lá fora e eu nem sabia".
Segundo o produtor e DJ Rodrigo Teixeira, conhecido como Nuts, a redescoberta do álbum tem dois motivos: a raridade do LP e a reedição dele pela Ubiquity nos EUA. "(Ouvintes) perceberam que, além de ser um discaço, ele era raro. A sorte do Verocai foi que a gravadora — que já era respeitada no cenário da Califórnia — pegou o álbum e entregou nas mãos certas, como as do 9th Wonder (produtor americano)", explica.
Foi 9th Wonder quem produziu o primeiro sample de Verocai nos Estados Unidos na música We Got Now, do disco de 2005 do grupo de rap Little Brother, que usa colagens da faixa Caboclo.
Naquele mesmo ano, outro produtor e rapper britânico, MF Doom, usou a faixa Na Boca do Sol como base para as batidas de Orris Root Powder, do grupo Metal Fingers.
De lá para cá, o álbum foi sendo sampleado na mesma medida que foi se tornando cultuado no exterior: há trechos usados por músicos da Hungria, da Áustria, da Itália, do Canadá e, principalmente, dos EUA.
"Nos anos 1990, ninguém queria saber de disco vinil. A gente ia garimpar e tinha loja que tava quase dando de graça esses LPs cults de hoje", conta Nuts. "Só que os produtores de fora começaram a vir ao Brasil e 'rapar' todos esses discos. Foi numa dessas que pegaram o disco do Verocai e levaram para os EUA. Agora que toca no exterior, todo mundo quer ouvir, tocar e ter aqui no Brasil."
Segundo Nuts, até pouco tempo atrás ninguém conhecia Arthur Verocai nas festas onde ele tocava. "Eu ouvia esse disco em casa, sozinho, em silêncio, não colocava nunca na pista. Faz uns dois anos que se tornou moda dizer que gosta de Verocai."
O jornalista e DJ Marcelo Pinheiro, da Som Livre, corrobora. Para ele, a virada de atenção para o disco de 1972 de Arthur Verocai se explica simplesmente pela qualidade da obra. "A redescoberta cumpre a missão inevitável de reconhecer sua grandiosidade", diz. "O culto ao álbum deve se prolongar por algumas décadas."
'Um tal de Ludacris'
Em 2008, ainda sem entender o que estava acontecendo com o disco, Verocai ligou no meio de uma madrugada para o DJ Nuts contando-lhe que um "tal" de Ludacris entrara em contato com ele para samplear uma música do disco.
"Quando eu ouvi aquilo disse pra ele: 'Arthur, agora é a hora de você ganhar dinheiro'", relembra o DJ Nuts. À época um dos principais rappers do mundo, Ludacris usou o arranjo de Na Boca do Sol na canção Do The Right Thing no álbum Theater of the Mind, que venderia 1 milhão de cópias nos anos seguintes. O maestro brasileiro, enfim, ganhou sua primeira fortuna com o LP.
O sample de Ludacris permitiu, enfim, que ele apresentasse o disco ao vivo pela primeira vez, em 2009, no festival Timeless, em Los Angeles. Além de cantar, Verocai regeu uma orquestra inteira para um público de cerca de 1,5 mil pessoas. "Eu estava feliz igual criança. O pessoal lá não me amava, me idolatrava mesmo. Foi um troço de louco", relembra o maestro.
DJ Nuts, que circula pelo cenário musical de Los Angeles desde os anos 2000, intermediou o convite dos produtores dos EUA ao arranjador. "Fiquei muito feliz de proporcionar aquilo para o 'velho' tanto tempo depois de o disco ser lançado", conta.
Nos anos seguintes, ainda na esteira da redescoberta, Verocai fez uma pequena turnê pela Europa tocando o álbum, deu palestras em uma universidade de música na Austrália, foi tema de documentários, programas musicais e lançou seu terceiro disco, No Voo do Urubu, em 2016 — ele já havia feito Encore em 2007.
O futuro
Apesar de preocupado com os samples irregulares, Verocai planeja fazer seu quarto álbum em breve, de formato ainda indefinido.
Para o amigo DJ Nuts, Verocai deveria esquecer a preocupação com a maioria dos rappers que usaram as músicas do disco de 1972. "Significa que tem uma juventude que está ouvindo o trabalho dele", diz.
Já o filho Ricardo acha o contrário: ele deve ir atrás da quantia que pode ganhar com os samples. "Tem gente ganhando dinheiro em cima dos samples e não dando nada para ele. Não é justo".
O último a usar o disco de 1972 foi o rapper baiano Baco Exu do Blues em uma canção do seu disco lançado do ano passado.
Questionado se gostou dos poucos samples que se prestou a ouvir, Verocai dá uma risadinha e, depois de pensar por alguns segundos, responde: "Eu não sei inglês para opinar". - (Aqui).
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