Não é sem sentido, assim, que o Estado tenha, ilustrativamente, “tetas” em que “mamam” os “meus opositores”, segundo esta narrativa. Não é à toa que o Estado é “tomado” (quase à força) pela “corrupção” ou “enganado” pelo “estelionato eleitoral”. Todas as características vis do Estado, segundo o discurso neoliberal ou o fascista, são diagnosticadas como femininas. No imaginário deste pessoal o “Estado sofre” a corrupção e é, paradoxalmente, responsável por ela, numa indisfarçável semelhança do discurso machista sobre o estupro: a mulher é a vítima e, ao mesmo tempo, responsável pela violência que sofre. Seja em função das suas roupas, das suas atitudes, do seu despreparo e etc. No fundo, a mulher é responsabilizada pelo estupro por ser simplesmente mulher. Da forma como o Estado é responsabilizado pela corrupção apenas por ser Estado.
Fica clara, em ambos os casos, a elipse do elemento que age. Tanto o estuprador quando o corruptor surgem como naturalizados num processo de compreensão que sobrepassa o limite moral para cair num silêncio problemático. É da natureza do empresário capitalista buscar o lucro a qualquer custo. A sonegação ou a corrupção é apenas um meio de se obter o fim desejado. É da natureza do sistema... veja-se que o elemento da vontade desaparece completamente. A escolha moral é normalmente imiscuída em argumentos que afirmam que é “impossível” outra conduta ao empresário diante da “opulência” e do tamanho do Estado.
No caso da violência sexual contra a mulher a explicação é exatamente a mesma. O agente também é escondido dentro da naturalização do suposto papel do homem. É da gênese do homem, segundo estes discursos, a submissão aos “impulsos” sexuais. A violência contra a mulher é “apenas” um resultado de forças da natureza não simplesmente controláveis. O homem agressor é sempre incapaz de ter conduta diferente daquela agressiva diante da “opulência” da mulher, de suas roupas, de seus hábitos e toda a “provocação” que ela supostamente causa apenas por ser mulher.
Note-se também que todo o elemento aceito como positivo no discurso do fascismo é masculino. A virilidade do corporativismo, da violência, da “ação” são entendidas como caraterísticas masculinas contra um Estado feminino. O discurso fascista é sempre o de “tomada”, “resolver”, “impor”, “consertar” e, em grande parte chega ao ápice de “acabar” com os opositores, “metralhar os petistas”, e “retirar das tetas” os que, segundo esta visão, ali estão mamando. O desmamar violento é a senha do masculino que se sobrepõe sobre o feminino. É o “encarar a vida” ao invés de ficar “aproveitando”. É a naturalização da violência.
O golpe brasileiro foi machista e misógino da mesma forma que o Nazismo, no século passado, exaltava o papel do alemão como o defensor da pátria e da alemã como responsável pela prole. O golpe brasileiro repete exatamente o macarthismo norte-americano dos anos 40 e 50 ao incorporar como ofensas aos opositores uma série de noções femininas. Para o senador americano, o Departamento de Estado era “dócil” com os comunistas, “não tinha pulso firme” com os seus subordinados e “não era capaz de enfrentar a URSS”. O estigma de tudo o que não era masculino acompanhava o discurso. McCarthy afirmava que os EUA precisavam se livrar dos “Reds, Pinks and Lavanders” (vermelhos, os rosas e os roxos). Onde os vermelhos eram os comunistas, os rosas eram os simpatizantes e os roxos os homossexuais que, naquele tempo, ainda se escondiam socialmente com medo da violência social.
O discurso do machismo e da misoginia é encontrado tanto no fascismo quanto no neoliberalismo. O Estado-mãe, aquele que acolhe, que protege, que permite e que garante deve ser mínimo, se não inexistente. Afinal, proteger a prole é algo essencialmente feminino em quase todas as espécies de mamíferos. E como uma mulher que inebria os sentidos dos “pobres homens” ao seu redor, o Estado não permite que o “Mercado” aja em sua plenitude. Distorce, copta, influencia, controla, constrange e toda a sorte de verbos comumente associados às mulheres em sua faceta sexualizada no arquétipo da “puta”.
A austeridade é masculina. Espartana. É ela que “corrige” a feminilidade estatal do acolher, do permitir, do prover, contida no arquétipo da “mãe”. Nesta dualidade em que o Estado é interpretado, ora como a “Mãe” provedora, ora como a “Puta” irresistível, os homens, os capitalistas e o próprio capital somem. Naturalizar as ações e dizer que foi “sempre assim” é uma estratégia antiga do conservadorismo. O que chama a atenção é que o Estado, assim como as mulheres, terminada a interação com suas contrapartes masculinas arcam com toda a violência. É o Estado de quebra com a corrupção, é o Estado que sofre o golpe, é o Estado que precisa se readaptar, criar meios para se defender e se “reconstruir” em “bases morais mais sólidas” e, em contrapartida, são os capitalistas que ficam ricos. Ocorre da mesma forma com as mulheres. São elas que são violentadas, que engravidam, que perdem anos de suas vidas por conta das ações violentas dos homens. Invariavelmente, homens que estão protegidos pela moral da sociedade para poderem completar seus destinos de “crescer e se tornarem alguém”.
É o mesmo caminho ideológico do capitalista que sonega e corrompe para enriquecer.
E a sociedade tem o mesmo espaço de benevolência com o capitalista corrupto e com o homem abusador. Se não são invisíveis, são naturalizados.
Alexandra Kollontai dizia que é um erro imaginar que se pode mudar o papel da mulher na sociedade sem acabar com a sociedade de classes. Para ela, é um erro dissociar as lutas de gênero das lutas de classe. Segundo Kollontai: “Os proletários precisam descobrir que as antigas formas de virtudes femininas são amarras que previnem a transformação social” e que para romper com isto a mulher precisaria se tornar um “ser humano com valor próprio”, não por ser mãe ou fêmea.
Que as mulheres salvem este país."
(Do historiador Fernando Horta, post intitulado "O machismo, o fascismo e o neoliberalismo", publicado no GGN - Aqui).
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