quinta-feira, 19 de julho de 2018

O PAPEL DO JUDICIÁRIO NO ESTADO BRASILEIRO


"Para além do aspecto psiquiátrico que faz a PGR considerar imparcial um certo juiz de primeira instância (clique aqui); quando as imagens difundidas pelo MTST do Triplex atribuído a Lula demonstram que as reformas milionárias (que provariam a associação do imóvel à figura do ex-presidente) nunca foram realizadas e que isso não pode ter sido constatado a tempo pela defesa, pois ela foi proibida de visitar o referido apartamento por sete vezes; o Judiciário vem mostrando (tripas de fora) o seu papel no Estado brasileiro.

Até aqui a melhor elaboração sobre o Estado capitalista contemporâneo, a de Gramsci, o percebe como uma combinação entre a Força (operada a partir da Sociedade Política) e o Consenso (construído na Sociedade Civil).

A Sociedade Política é normalmente associada aos aparelhos repressivos do Estado, à polícia e forças armadas, responsáveis, comprovadamente, ao longo da história pela iniciativa golpista em inúmeros países.
A Sociedade Civil, instância onde o Poder estabelece as bases da governança pelo consenso, locus onde se situa a Globo, por exemplo, opera de forma a tentar transformar a subordinação política, a exploração e entre nós também o entreguismo, em coisas naturais e inevitáveis.
Porém o que vemos hoje no Brasil e na América do Sul é a emergência de um Judiciário que ocupou o locus anteriormente ocupado pelos aparelhos repressivos. A manter-se a formulação de Gramsci a Sociedade Política é hoje no Brasil, e em outros países do continente, o Poder Judiciário.
Poderíamos imaginar que a migração do Judiciário para o papel de núcleo duro e classista do Estado se deve ao próprio processo de ampliação/democratização do Estado capitalista contemporâneo que vem, em decorrência das lutas do próprio proletariado, sendo escorraçado do exercício do Poder pela Força (as baionetas e sabres bem conhecidos) para, em toda parte, um exercício do Poder mais centrado sobre o componente "Consenso" (entre nós hegemonizado pela globo, jornalões et caterva). O exercício do Poder pelo Consenso não significa ainda, ou automaticamente, que ele seja democrático ou que esteja a serviço das maiorias, como sabemos fartamente, e é também ele um feroz campo de batalha.
Não se trata de uma evolução desimportante ou inócua, a força política do povo para produzir essa migração do Poder (da Força para o Consenso) ao longo de todo o século XX não foi pequena e devemos ter clareza de que isso aponta para o fato de que estamos vivos no jogo e podemos fazer mais. Razão, aliás, pela qual o golpe foi dado.
Mas o Judiciário está mal posicionado para cumprir esse papel espúrio que o obriga ao oposto do que as leis e tratados internacionais preveem para ele. É como se repousasse sobre um árbitro de futebol o dever “cívico” de empenar um jogo assistido por uma multidão, sendo ao mesmo tempo obrigado, num estádio cheio de câmeras e de replays, a reafirmar peremptoriamente a todos e a toda hora a sua imaculada neutralidade...
O Poder que prendia e arrebentava, como dizia o general Figueiredo, era muito menos cínico do que o contemporâneo.
Esse tremendo mal-estar institucional que deverá, aliás, produzir uma experiência amarga em alguns anos, quando a máscara fascista estiver rota, e quando promotores e juízes se perguntarão como foram capazes de ir tão longe, é o ambiente doentio que contextualiza as decisões do desembargador Rogério Favreto e à luz do qual devem ser entendidas.
Favreto rompe, ainda que por um breve momento, o transe hipnótico fascista em que a maioria do Judiciário está mergulhada, permite que a luz do sol entre na cova dos vampiros. A capacidade de Favreto de pensar e formar juízo por conta própria é a maior ameaça à legião e instabiliza psicologicamente os seus pares.
A reação desse poder tomado pelas trevas não poderia ser mais furiosa. Não se trata mais da discordância doutrinária que poderia legitimamente haver entre pares, mesmo acesa. Não, nesse Poder, no entanto, feito para julgar e produzir justiça, a PGR pediu pena máxima contra o desembargador que ousou atuar de forma divergente do fascio, sem estender a sua fúria nem ao juiz de piso, nem ao relator, nem ao presidente daquele Tribunal, nem ao Ministro da Segurança Pública, nem à juíza da porta do presídio, nem ao delegado da Polícia Federal que descumpriram todos a ordem judicial de soltura, ferindo, aí sim, um princípio sagrado para o Judiciário: o do “cumpra-se”... Autofágica e capaz de trair os seus valores mais altos para continuar fiel ao seu vil papel de cão de guarda do arbítrio (e aí vemos que esse é que é o papel finalístico, capaz também de desrespeitar o domingo e as férias), essa é a trágica (e ridícula) Sociedade Política com que esse capitalismo tardio nos brinda.
Porém, essa situação institucional decadente, insustentável no longo prazo, precisa ser bem compreendida pelos que aspiram a uma democracia despida desse primitivismo, pois devem estar política e teoricamente preparados para propor novos cenários institucionais. Sim, pois ainda que não saibamos quanto tempo durará tal como está, os sintomas institucionais do Judiciário brasileiro contemporâneo parecem apontar para a instabilidade e para a baixa longevidade histórica.
Ainda que a cidadania demore muito tempo para acumular forças para materializar uma nova Constituinte capaz de alterar profundamente o Judiciário, a reforma desse Poder está, definitivamente, na pauta das prioridades.
Questões como as que tocam (1) ao provimento dos juízes dos tribunais recursais e superiores, (2) ao controle social sobre o Judiciário, (3) à vitaliciedade, (4) à remuneração e aos privilégios de função e (5) ao compromisso com a democracia e com as maiorias devem começar a ser objeto de reflexão entre juristas do campo democrático.
O dito “século das luzes” antecedeu em muitas décadas a Revolução Francesa, mas um e o outro são uma coisa só.
É hora de desenharmos o Poder Judiciário que queremos, para que atue como força sinérgica ao processo (em curso e golpeado) de aprofundamento e realização da democracia política sempre almejado pela parte saudável da nação.
De fato, esse Judiciário aristocrático e sem controle é um problema para a democracia. Na próxima parada, deverá ser objeto de uma Constituinte Livre e Soberana."



(De Ion de Andrade, post intitulado "O verdadeiro papel do Judiciário no Estado brasileiro", publicado no Jornal GGN - aqui.
"O Poder que prendia e arrebentava, como dizia o general Figueiredo, era muito menos cínico do que o contemporâneo."
"Ainda que a cidadania demore muito tempo para acumular forças para materializar uma nova Constituinte capaz de alterar profundamente o Judiciário, a reforma desse Poder está, definitivamente, na pauta das prioridades."
"... esse Judiciário aristocrático e sem controle é um problema para a democracia. Na próxima parada, deverá ser objeto de uma Constituinte Livre e Soberana."
É unânime, entre todos os críticos e observadores isentos, a avaliação de que todos os críticos e observadores isentos são muito bons em matéria de diagnóstico de realidades nacionais e internacionais. Já em termos de antevisão de cenários, as coisas mudam: uns, esperançosos, veem a correção de rumos como o desfecho alcançável; outros, abraçados à perplexidade e à indignação, nada de positivo vislumbram. Os donos do poder, por seu turno, impassíveis e determinados, dão mostras de que de tudo serão capazes para manter seus privilégios e seu poder de mando).

Nenhum comentário: