segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

CARNAVAL, AUXÍLIOS MORADIAS, CASAS PRÓPRIAS E MALOCAS

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"O auxílio-moradia é previsto na lei orgânica da magistratura. Eu recebo e tenho vários imóveis"  / "Acho muito pouco o valor do auxílio-moradia" (Palavras do novo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, nesta data). 
"Respeito é bom e eu gosto. Nós respeitamos e gostamos de ser respeitados. Tudo parece tão óbvio que nem precisava dizer", alertou (aqui) uma desembargadora, ferrenha defensora do auxílio-moradia e demais penduricalhos, na solenidade de posse do novo presidente do TJ acima citado. E seguem pela vida, virtuosamente, os doutos e solenes operadores do direito, cercados de benesses e penduricalhos, em busca de um venturoso porvir.
Enquanto isso, curtamos as saudosas malocas! 


Casa própria, maloca, favela

Por Carlos Motta

O brasileiro somente agora está se informando sobre o indecente auxílio-moradia que os nossos juízes recebem - um dos vários penduricalhos que inventaram para furar o teto salarial da categoria. 
Por mais que tentem justificar essa aberração ética, o fato é que nenhum juiz não tem onde morar, ao contrário de milhões de concidadãos.
A falta de moradia é um tema constante na música brasileira, e já produziu algumas peças que se tornaram clássicas.
Adoniran Barbosa, por exemplo, aborda o problema em três músicas. A primeira delas, "Saudosa Maloca", de 1951, é uma das suas composições mais famosas e tocadas, seja por profissionais, seja por amadores, em todos os cantos do país. Mato Grosso e Joca, personagens do drama narrado por Adoniran, se tornaram figuras folclóricas.
"Abrigo de Vagabundos", de 1959, é a continuação de "Saudosa Maloca". Nela, o narrador conta que conseguiu, a muito custo, com ajuda de um fiscal da prefeitura, arranjar uma casinha na periferia. E lamenta não ter mais notícias dos amigos Joca e Mato Grosso, "aqueles dois amigos/que não quis me acompanhar/andarão jogados na avenida São João/ou vendo o sol quadrado na detenção.
Dez anos depois Adoniran lançou "Despejo na Favela", uma doída denúncia da violência que se comete contra os miseráveis que se amontoam em barracos, sub-habitações degradantes: (clique Aqui para conferir o vídeo e as demais canções abaixo):
Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E, contra seu desejo
Entregou pra seu Narciso
Um aviso, uma ordem de despejo
Assinada, seu doutor
Assim dizia a 'pedição'
"Dentro de dez dias
Quero a favela vazia
E os barracos todos no chão"
— É uma ordem superior
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É uma ordem superior
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É uma ordem superior
Não tem nada não, seu doutor
Não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não, seu doutor
Vou sair daqui
Pra não ouvir o ronco do trator
— Pra mim não tem 'probrema'
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito eu me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?
Mas essa gente aí, hein?
Com'é que faz?
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
Essa gente aí
Como é que faz?
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
Essa gente aí, hein?!
Como é que faz?
Outros dois compositores da linha de frente da música brasileira, Dorival Caymmi e Noel Rosa, também trataram do tema.
É de Caymmi a singela "Eu não tenho onde morar":
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
Eu nasci pequenininho
Como todo mundo nasceu
Todo mundo mora direito
Quem mora torto sou eu
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
Vivo na beira da praia
Com a sorte que Deus me deu
Maria mora com as outras
Quem paga o quarto sou eu
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
E de Noel, a bem humorada "O Orvalho vem Caindo":
O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu
Tenho passado tão mal
A minha cama é uma folha de jornal
O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu
Tenho passado tão mal
A minha cama é uma folha de jornal
Meu cortinado é um vasto céu de anil
E o meu despertador é o guarda civil
(Que o dinheiro ainda não viu!)
O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu
Tenho passado tão mal
A minha cama é uma folha de jornal
A minha terra dá banana e aipim
Meu trabalho é achar quem descasque por mim
(Vivo triste mesmo assim!)
O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu
Tenho passado tão mal
A minha cama é uma folha de jornal
A minha sopa não tem osso e nem tem sal
Se um dia passo bem, dois e três passo mal
(Isso é muito natural!)
Essas cinco composições são apenas exemplos de como a verdadeira arte faz da realidade a sua mais preciosa fonte de inspiração. 
E de como os verdadeiros artistas são muito mais sensíveis às mazelas do povo do que as autoridades que são muito bem pagas para tratar delas.  -  (Aqui).

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Nota: 
Voltando ao auxílio-moradia, cumpre registrar que é perfeitamente legal e justificável a concessão do benefício a magistrados que servem em municípios inóspitos, em que não contem com imóvel próprio. A lei 'original', aliás, assim disciplina a matéria. A questão é que em 2014 o ministro Luis Fux, do STF, resolveu monocraticamente contemplar todos os juízes do Brasil com o tal auxílio, independentemente de eles residirem em imóveis alugados ou próprios. A medida alcançou algo como 14 mil juízes e milhares de promotores/procuradores (eles sempre se 'banham' no efeito cascata). Esse ato praticado por Fux até hoje pende de exame por parte do plenário do STF. Demorado, não é? Sim, mas isso não é incomum: em 2012, o mesmo ministro resolveu pedir vista de um processo que cuidava da inconstitucionalidade de um pacote (melhor seria dizer pacotaço) de penduricalhos concedidos a magistrados vinculados ao TJ do Rio de Janeiro. Somente agora, seis anos depois, pressionado pelos juízes federais (que querem ter a companhia dos juízes estaduais entre os passíveis de perder os mimos), é que o senhor Fux se dispôs a devolver o processo à consideração do plenário do STF. E o ministro continua, solenemente, a 'dar aulas'. 

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