"Vivemos uma transição curiosa: do Brasil analógico para o digital. De um lado, multiplicam-se seminários, estudos e teses sobre inteligência artificial (IA), enquanto a automação avança sobre todos os setores, especialmente o atendimento ao consumidor. De outro, o que se vê na prática é um verdadeiro colapso operacional — uma era de Desinteligência Artificial.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) já dispõe de uma série de normas ISO para padronizar o atendimento ao consumidor: qualidade de serviços, acessibilidade, gestão de sistemas, mitigação de vieses algorítmicos. Mas, na realidade, nenhuma empresa escapa da armadilha da automação mal implementada.
Azul: o voo da frustração
Recebo uma passagem para um seminário. A companhia aérea é a Azul. Faço o check-in digital e escolho um assento na frente. Pago. O sistema cobra em euros. Meu cartão não é aceito. O check-in trava.
Tento cancelar o pagamento para seguir com o processo. Nada feito. Recorro ao chat da empresa. O robô me leva por todos os passos já percorridos. Até que, em um lampejo de lucidez, percebe que há um pagamento pendente. Pergunta se quero resolver. Claro que sim. Tenta cobrar novamente. O cartão não paga em euro. Volto à estaca zero.
Só resolvi quando fui pessoalmente ao guichê da Azul, depois de perder horas nessa novela digital.
Vivo: o fio da esperança
Um fio da Vivo estava prestes a cair do poste em frente à minha casa. Tento avisar. Nenhum telefone resolve. Vou até uma loja física. Lá, informam o número correto. Ligo. Milagre: uma atendente humana, simpática, resolve o problema na hora. Dou nota máxima.
Mas o fio continua. Ligo novamente. Outro atendente informa que o pedido foi registrado “para dentro de casa”, quando deveria ser “para fora de casa”. Pode transferir para a área correta? Não. São bancos de dados distintos. O senhor tem que ligar de novo. E recomeçar do zero.
Banco do Brasil: o fim de semana sem dinheiro
Fim de semana. Estou em um restaurante. Cartão premium do Banco do Brasil recusado: “Falta de fundos”. Mas há saldo. Tento Pix. “Sem fundo”. O aplicativo mostra que há dinheiro.
Ligo para a central. Detectam uma tentativa de fraude: uma assinatura da Globonews de R$ 30 na sexta à noite. Perguntam se fui eu. Digo que sim. Mas o sistema disse que foi tentativa de fraude de R$ 30 e bloqueou tudo. Para resolver? Só na agência. Que só abre segunda-feira. Fim de semana sem dinheiro.
Meses depois, minha secretária não consegue baixar extratos da conta PJ. Entro no site, autorizo o acesso. O aplicativo confirma. Mas não funciona.
Vamos à agência, com claros problemas de carência de pessoal. E de informação. O gerente indica o mesmo caminho. Nada. Voltamos. Nada.
Ligo para a auditoria do banco. O robô pede CPF ou CNPJ. Digito o CPF. Atendente humana atende. Explico tudo. Depois que passei minutos e minutos explicando tudo, ela diz: “O senhor deveria ter entrado como PJ”. Pode transferir? Não pode. São sistemas diferentes.
Tento de novo. O sistema não reconhece mais as teclas do celular. Volto à agência. Nada. A auditoria manda ligar para a assistência técnica. Passa quatro números seguidos. Não consigo anotar nenhum. Minha Desinteligência Humana não acompanha a da atendente.
Até agora não resolvi. Semanas e semanas sem poder conciliar os dados.
A era da automação sem inteligência
O que une essas histórias é a ausência de lógica, de empatia, de integração. Sistemas que não se conversam, robôs que não entendem contexto, empresas que terceirizam a responsabilidade para algoritmos que não sabem lidar com exceções.
A promessa da IA era de eficiência, personalização, agilidade. O que temos é frustração, perda de tempo e desinformação. A inteligência artificial, quando mal aplicada, vira desinteligência institucional.
E, ironicamente, os únicos momentos de resolução vêm do contato com pessoas reais. A atendente da Vivo, o funcionário da Azul. O humano, ainda que escasso, continua sendo o elo mais confiável da cadeia.
Enquanto isso, seguimos na fila — digital ou física — esperando que a inteligência artificial aprenda, ao menos, a ser inteligente."
(De Luís Nassif, matéria sob o título acima, publicada no Jornal GGN - Aqui -, de que o articulista é titular.
Uma lástima a situação do BB, que, ao lado de outras empresas, coleciona críticas entre os 21 comentários suscitados.
Comentário do leitor Fábio de Oliveira Ribeiro:
"No outro lado do espectro, Nassif, as coisas são um pouco piores. Empresas que substituíram empregados por IAs estão tendo prejuízos e vários problemas legais. IAs estão sendo recrutadas para cometer crimes e nisso elas se tornas extremamente eficientes. As promessas dos donos de Big Techs eram maravilhosas, mas entre o fato e a fabulação existe um espaço que as IAs ocupam e do qual dificilmente conseguirão sair.
É por isso que não uso IAs no meu trabalho. Não uso e não usarei. A única coisa que eu tenho feito ultimamente é me divertir usando IAs geradoras de texto, porque eu descobri que elas são vítimas perfeitas para artimanhas como as descritas no conto “O homem que falava javanês” de Lima Barreto.
Eu produzo textos que misturam conceitos importantes com uma boa dose de bullshit retórica tecnológica. Depois eu submeto-os à análise de IAs. O resultado é quase sempre o mesmo: o que seria considerado “merda ideológica” é tratado como se fosse “ouro teórico filosófico”. Outra diversão minha é inverter o Teste de Turing. Esse teste foi inventado para medir a capacidade de uma máquina enganar um interlocutor humano. O que eu faço é produzir textos de ficção com todas as características de escrita de máquina (personagens rasos em situações absurdas com predominância de um contexto extremamente lógico ou aparentemente lógico que evolui de uma maneira coerente). Então eu peço para IAs dizerem se o texto foi escrito por um humano, por uma IA ou com ajuda de IA. Na maioria das vezes eu engano as IAs, mas eu acho que elas foram programadas (ou estão evoluindo) para reconhecer os “maquinismos retóricos” como se fossem algo extremamente comum num mundo em que elas predominam de maneira incontestável. Vaidade de máquina ou de engenheiro de TI transplantada para a máquina, entende?"
Nota Final
Lá pelo cipoal dos comentários, um leitor fala sobre a dificuldade de dar apoio financeiro ao GGN, que bem poderia aderir AO VELHO, SIMPLES E EFICIENTE BOLETO, COMO FAZ A PÚBLICA.
De fato, LANCE O BOLETO, Nassif!!).
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