Pré-candidato à minha lista de filmes favoritos de 2024 ainda não lançados comercialmente
Por Carlos Alberto Mattos
A inquietação modernista de Mário de Andrade o levou a duas grandes viagens de descoberta pelo Brasil. A primeira ao Amazonas, em 1927. A segunda, ao Nordeste em 1929. Suas anotações, entre o diário de bordo e a pesquisa etnográfica, foram publicadas na coluna de jornal “O Turista Aprendiz” e no livro homônimo. É um material extremamente rico não só em informações sobre uma cultura e uma paisagem até então desconhecidas do resto do Brasil, mas também em humor e picardia. Esses elementos são valorizados com impressionante vivacidade por Murilo Salles em Mário de Andrade, o Turista Aprendiz.
A ideia de brasilidade é um tema recorrente na obra de Murilo. Até nominalmente, como nos projetos És Tu, Brasil e Alegorias do Brasil. Para esta última série, ele mesmo dirigiu um documentário sobre Macunaíma, o personagem que Mário consagrou em seu romance, instigado justamente pela viagem ao Amazonas. Nesse novo filme, Murilo bota em cena o périplo amazônico de Mário com afiadíssima verve satírica e um pique experimental inédito em sua carreira.
Ali estão combinados o cineasta-antropólogo e o artista plástico que mora escondido dentro dele. Assinando também a fotografia, Murilo produz imagens belíssimas tanto do maravilhoso amazônico quanto de tableaux divertidamente performáticos a bordo do “vaticano” (navio da época). As peripécias dos viajantes contam com recursos cênicos variados – ações multimídia, animações, trucagens, retroprojeções em estúdio, cenografia estilizada – que afastam qualquer ameaça realista em troca do artificialismo paródico e da galhofa assumida.
O “antiviajante” Mário de Andrade (na pele do ator-sósia Rodrigo Mercadante) singra os rios em companhia da grande dama Olívia Guedes Penteado (Lorena da Silva), rica cafeicultora e mecenas dos modernistas, sua sobrinha Margarida (Dora de Assis) e Dulce do Amaral Pinto (Dora Freind), filha de Tarsila do Amaral. São figuras da elite paulistana que se divertem e flertam com a liberdade, ao mesmo tempo que Mário vai desfiando suas considerações e indagações sobre a alma brasileira. O texto, ora reflexivo, ora zombeteiro, flui saborosamente da boca de Rodrigo ou da narração sobreposta. O ator é especialista em representar Mário de Andrade. A cena em que ele faz um longo discurso em tupi é coisa prodigiosa.
Ali estão o deslumbramento com a Natureza exuberante da Amazônia (“Estou estourando de luar”) e a aflição com os insetos e o calor da selva. Mário expressa sua inconformidade com um Brasil que sufocava suas raízes africanas em troca de macaquear a Europa, assim como o sentimento de inferioridade que fez nascer Macunaíma (“Não é um herói, mas um sintoma”).
Murilo lança mão também de outros textos de Mário e abre brechas para se referir à “tão falada” homossexualidade do escritor nas alusões a seringueiros e vaqueiros. Insinua também o flerte de alguns modernistas com o integralismo ao colocar Mário e as duas jovens interrompendo um canto lírico europeu para entoar o Avante! de Plínio Salgado.
Os contrastes e interações da elite com os povos e seres da floresta ganham representações provocativas, como no jantar refinado de picanhas e entrecôtes que se segue à cena de uma indígena alimentando virtualmente os bois. O sexo está presente na liberação dos corpos proporcionada pelos trópicos, mas sempre temperado por um toque de autoderrisão. (*)
Na mistura de apuro estético e jocosidade chanchadeira desse filme, Murilo Salles nos oferece um de seus trabalhos mais instigantes – e um dos mais encharcados de música. A trip pode parecer às vezes delirante, mas por isso mesmo traduz um bocado do sentimento modernista de reinvenção do país.
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