sábado, 19 de agosto de 2023

DE BUCARA AOS BRICS, BUSCANDO A LUZ NO BREU DA INSANIDADE

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Na OCX, Rússia, China, Índia, Irã e Paquistão sentam-se à mesma mesa

           
Xi Jinping (China) e Narendra Modi (Índia)

Por Pepe Escobar

Bucara, a Nobre, o "Domo do Islã", com uma história que remonta a 2.500 anos, carrega maravilhas demais para serem mencionadas: desde a Arca de dois milênios, uma fortaleza em torno da qual a cidade se desenvolveu, ao minarete de Kalon, de 48 metros de altura, construído em 1127, que impressionou tanto a Genghis Khan a ponto de ele ordenar que o poupassem da destruição.

A elegante faixa azul turquesa ao topo do minarete é o exemplo mais antigo de azulejaria  vitrificada em todo o Heartland, o Grande Interior asiático. Segundo o  Shanameh, o épico persa, o herói Siyavush fundou a cidade depois de se casar com a filha de seu vizinho Afrasiab. Mesmo antes de as Rotas da Seda entrarem em funcionamento, Bucara
prosperava como cruzamento das rotas de caravanas, seus portões apontando para Merv (no atual Turcomenistão), Herat (ao oeste do Afeganistão), Khiva e Samarcanda.

O auge de Bucara ocorreu nos séculos IX e X, sob a dinastia Samânida, quando a cidade se converteu em uma meca da cultura e da ciência persas. Esse foi o tempo de al-Biruni, o poeta Rudaqui  e, é claro, de Avicena: todos eles tinham acesso ao lendário Tesouro de Sabedoria, uma biblioteca que, no mundo islâmico, só teria como rival a Casa da Sabedoria de Bagdá.

Bucara foi em grande parte destruída por Ghengis Khan e pelos mongóis em 1220 (sim, apenas o minarete foi poupado). Quando o grande viajante marroquino  Ibn Battuta a visitou em 1333, a maior parte da cidade ainda jazia em ruínas. Mas então, em 1318, alguém muito especial  nasceu em Kasri Orifon, um vilarejo nos arredores de Bucara. A princípio, ele era conhecido apenas como Muhammad, como seu pai e avô, cujas origens remontavam a Hazrat Ali. Mas a História ditou que Muhammad acabaria por se tornar famoso em todas as terras do Islã como o santo sufi de nome Bahauddin Naqshbandi.

O que há em um nome? Tudo. Bahauddin significa "a luz da religião" e Naqshbandi significa  "buscador". Sua educação foi enriquecida por diversos pirs ("santos") e xeiques que viviam nas redondezas de Bucara. Ele passou quase que toda a sua vida nesses oásis, muito pobre e sempre se sustentando com seu trabalho manual, sem escravos nem servos. Bahauddin Naqshbandi acabou por fundar uma tariqa – escola islâmica – altamente influente, baseada em um conceito muito simples: "Ocupe seu coração com Alá e suas mãos com trabalho". O conceito foi desenvolvido em outras onze regras, ou  rashas ("gotas").  

O que sai desses "cinco dedos"? - Uma visita ao complexo Bahauddin Naqshbandi, nos arredores de Bucara, que tem como centro a tumba do santo sufi do século XIV, que é, aliás, o protetor da cidade, é uma experiência iluminadora: uma atmosfera tão pacífica envolve uma rede de pedras sagradas, "árvores do desejo" e oferendas sacrificiais esparsas.

Essa é a essência do que pode ser definido como um Islã paralelo, que inspira tantas latitudes por todo o Heartland, combinando um passado animista com os ensinamentos islâmicos formais.

No complexo, encontramos dezenas de lindas mulheres uzbeques de todas as regiões, com suas roupas de cores vivas, e peregrinos de toda a Ásia Central, mas também do Ocidente e do Sul da Ásia. O extremamente popular presidente uzbeque  Mirzoyoyev esteve aqui em fins da semana passada, vindo direto do aeroporto novo em folha localizado nos arredores.

Essa é a essência do que pode ser definido como um Islã paralelo, que inspira tantas latitudes por todo o Heartland, combinando um passado animista com os ensinamentos islâmicos formais.

No complexo, encontramos dezenas de lindas mulheres uzbeques de todas as regiões, com suas roupas de cores vivas, e peregrinos de toda a Ásia Central, mas também do Ocidente e do Sul da Ásia. O extremamente popular presidente uzbeque  Mirzoyoyev esteve aqui em fins da semana passada, vindo direto do aeroporto novo em folha localizado nos arredores.

O Chanceler chinês Wang Yi cunhou uma definição concisa que incorpora uma mistura fascinante de confucionismo e sufismo: "Os países BRICS são como cinco dedos: curtos e longos se esticados, mas poderosos se unidos em um punho". Como unir esses dedos em um punho poderoso foi o trabalho que ocupou um bom número de sherpas durante os preparativos da cúpula. Mas, em breve, não se tratará mais de um punho, e sim de punhos, braços, pernas e, na verdade, um corpo inteiro. É aí que entra o BRICS+.

Na rede de novas organizações multilaterais envolvidas na preparação e adoção de um novo sistema  relações internacionais, o BRICS agora é visto como a principal plataforma do Sul Global, ou da Maioria Global, ou do "Globo Global" (diretos autorais de Lukashenko). Ainda estamos bem longe da transição para um novo "sistema mundial"  – para citar Wallerstein – mas, sem os BRICS, até mesmo os primeiros passos seriam impossíveis.

A África do Sul irá selar as primeiras coordenadas para a expansão dos BRICS+ – que talvez se prolongue indefinidamente.  Afinal, muitos países do "Globo Global" já declararam formalmente (23 países)  e informalmente (incontáveis 'manifestações de interesse', segundo o Ministério das Relações Exteriores da África do Sul) que querem se juntar aos BRICS.

A lista oficial – sujeita a mudanças – desses países que desejam participar dos BRICS + o quanto antes é um 'quem é quem' do Sul Global: Argélia, Argentina, Bahrain, Bangladesh, Belarus, Bolívia, Cuba, Egito, Etiópia, Honduras, Indonésia, Irã, Cazaquistão, Kuwait, Marrocos, Nigéria, Estado da Palestina, Arábia Saudita, Senegal, Tailândia, UEA, Venezuela e Vietnã. 

E há também a África: os "cinco dedos", por intermédio do Presidente sul-africano  Cyril Ramaphosa, convidaram nada menos que  67 líderes africanos e de todo o Sul Global para acompanhar o Outreach BRICS-África e os Diálogos BRICS+.

Tudo isso mostra qual seria  a principal rasha dos BRICS, evocando Naqshbandi: total inclusão da África e do Sul Global – todos os países engajados em conversas vantajosas e igualmente respeitados na afirmação da soberania.

Os persas contra-atacam - É possível afirmar que o Irã esteja em posição privilegiada para vir a se tornar um dos primeiros membros do BRICS+. Para tanto, ajuda o fato de que Teerã já desfruta de uma parceria estratégica tanto com a Rússia como com a China, sendo também um parceiro estratégico da Índia no Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (CITNS). 

O Chanceler iraniano Hossein Amir-Abdollahian já declarou oficialmente que "a parceria entre o Irã e os BRICS já começou de fato em algumas áreas. No setor dos transportes, o corredor de transportes norte-sul que liga a Índia à Rússia através do Irã faz parte efetiva do projeto de transportes dos BRICS".

Paralelamente a esses grandes avanços dos BRICS+, os "cinco dedos" exercerão uma relativa cautela no front da desdolarização. Alguns sherpas já confirmaram, em off, que não haverá anúncio oficial de uma nova moeda, mas sim de uma intensificação do comércio bilateral e multilateral fazendo uso das atuais moedas dos membros: por enquanto, os famosos R5 (renminbi, rublo, real, rúpia e rand).

O dirigente bielorrusso Lukashenko, que cunhou o termo "Globo Global", um lema tão ou mais sedutor que Sul Global, foi o primeiro a evocar uma crucial jogada política que poderá vir a ocorrer mais tarde, com o BRICS+ já em vigor: a fusão dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Lukashenko, agora, vem sendo ecoado publicamente pelo ex-embaixador sul-africano  Kingsley Makhubela – e também, em off, por dezenas de diplomatas e analistas do "Globo Global": "No futuro, os BRICS e a OCX se uniriam para formar uma única entidade (…) Porque ter os BRICS e a OCX correndo em paralelo, com os mesmos membros, não faria sentido". 

Não há dúvida quanto a isso. Os principais motores dos BRICS são Rússia e China, sendo a Índia ligeiramente menos influente por uma série de razões complexas. Na OCX, Rússia, China, Índia, Irã e Paquistão sentam-se à mesma mesa.  O foco eurasiano da OCX pode facilmente ser transplantado para o  BRICS+. Ambas as organizações são centradas no "Globo Global", voltadas à multipolaridade e, principalmente, comprometidas com a desdolarização em todas as frentes.

Uma leitura sufi é de fato possível para essas movimentações de placas tectônicas geopolíticas e geoeconômicas.   Os promotores do Dividir para Dominar, bem como uma variedade de cães de guerra, não entenderiam absolutamente nada caso visitassem o complexo Naqshbandi nos arredores de Bucara. O "Globo Global", entretanto,  poderá lá encontrar as respostas que procura, ao se engajar em um processo de conversas e de respeito mútuo.

Que os céus abençoem essas almas globais – e que elas venham a encontrar conhecimento, tal como se estivessem visitando o Tesouro de Sabedoria da Bucara do século X.  -  (Tradução de Patricia Zimbres /  Fonte: Aqui).   

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