sexta-feira, 18 de outubro de 2019

COMO LIDAR COM OS JUÍZES BRASILEIROS?

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Da agenda deste Blog: "Texto para ser impresso e 'anexado' ao exemplar da Constituição Federal permanentemente ao lado do titular, tal a preciosidade das informações abaixo alinhadas." Convém informar que o exemplar da CF em nosso poder está prestes a entrar no Guinness Book como o livro mais rabiscado, anotado e consultado da história recente! (Rs).


Como lidar com os juízes brasileiros?
Por Fábio de Oliveira Ribeiro (No GGN)
Responder essa pergunta não é uma tarefa fácil. Para fazer isso devemos voltar no tempo e percorrer outros espaços, muitos dos quais já não existem. Conduzirei o leitor a alguns deles certo de que ele poderá por si mesmo se dirigir a muitos outros. Esse tema tão antigo quanto a própria existência da civilização se tornou extremamente atual em virtude da discussão da Lei do Abuso de Autoridade, que a maioria dos juízes rejeitam sem explicar porque eles querem continuar a cometer atos abusivos impunemente.
“Em Roma, era uma verdade conhecida que não podia ser bom pontífice quem não conhecesse o direito, e, reciprocamente, não era possível conhecer o direito sem conhecer a religião. Por muito tempo, os pontífices foram os únicos jurisconsultos.” (A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, p. 242).
Nos primórdios de Roma, portanto, os juízes eram especialistas. A autoridade deles era sagrada e decorria do conhecimento tanto da religião quanto da Lei, pois a distinção entre ambas era muito tênue.
Essa confusão entre religião e direito desapareceu na China por volta de 233 aC, quando a teoria legalista foi formulada por Han Fei-Tzu:
“Procedia de la dinastia del estado Han; sin embargo, no poseía ninguna postura política. Su obra nos ha llegado em bastante buen estado y refleja insistentemente las ideas principales de la escuela legalista. La caraterística más importante del legalismo es su insistencia sobre la ley abstracta. Esta debe aplicarse como norma general, sin distinguir la posición y la persona. Con ello desaparece el elemento personal, tan essencial em el feudalismo, así como también los ritos (li), tan resaltados por los confucianos. En el antagonismo entre li y fa, el legalista se decide por fa, la ley, para cuya aplicación resulta indifernte si el afectado es campesino o esclavo, príncipe o ministro. Las costumbres y la tradición son consideradas como prejudiciales para el poder estatal. Incluso el príncipe cuya autoridad es absoluta, debe estar sujeto a las leyes por él señaladas. Si no las aplicara al pie de la letra, se prejudicaría a si mismo como al Estado.” (El imperio chino, Herbert Franke e Rolf Trauzettel, Siglo XXI de España Editores S/A, Madrid, 1973, p. 58/59)
Desde muito cedo, entre os chineses a distribuição de justiça foi considerada uma prerrogativa dos funcionários do imperador. Eles eram letrados e deveriam ser aprovados em concursos regularmente organizados. A escola legalista defendeu a tese de que a justiça deveria ser distribuída por especialista. Ao que parece, Han Fei-Tzu não tinha dúvida acerca da obrigação do juiz de respeitar os limites impostos pela Lei (razão pela qual eles também poderiam ser punidos caso descumprissem sua obrigação de aplicar a Lei ao pé da letra para não prejudicar o Estado).
Aristóteles não rejeita a importância da religião (fenômeno considerado juridicamente importante tanto pelos romanos quanto pelos chineses confucianos), mas defende a tese de que numa democracia “…todos os homens devem exercer funções judiciais, ou que os juízes sejam escolhidos entre todos, para todos os assuntos, ou na maioria deles para os assuntos mais importantes – tais como a auditoria das contas, a constituição e contratos privados; que a assembleia deve ser suprema sobre todas as causas ou sobre as causas mais importantes, e que os magistrados não sejam soberanos sobre qualquer causa ou apenas sobre umas poucas.” (Política, Aristóteles, Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 219/220)
O filósofo sugere também que nenhuma magistratura deve ser vitalícia “…se acaso alguma função vitalícia sobreviveu por obra de antigas mudanças constitucionais, ela deveria ser despida de seu poder, e o funcionário que ocupará tal cargo deve ser escolhido por sorteio e não mais pelo voto.” (Política, Aristóteles, Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 220).
A autoridade dos juízes nesse caso decorreria da própria cidadania. Como numa democracia aristotélica os julgamentos são coletivos e todos ou quase todos os cidadãos podem ser juízes (e ninguém desempenha funções vitalícias) a solução dos conflitos estaria menos sujeita a abusos individuais. O sistema adotado nos primórdios de Roma tende a perpetuar distinções sociais. “Vemos na história de romana a que ponto um juiz único pode abusar de seu poder.” (Do Espírito das Leis, Montesquieu, Martin Claret, São Paulo, 2011, p. 96).
Em relação a Roma, um detalhe importante ainda precisa ser mencionado. O “pater família” romano tinha “vitae necisque potestas”, ou seja, poder de vida e de morte sobre seus filhos, escravos e esposa (exceto no caso do casametno “sine manu”). Ele era o único juiz das disputas no interior de sua família. As controvérsias entre os homens livre que dependiam dele (seus agregados) também eram solucionadas pelo “pater família”. Portanto, o “pater família” era um juiz dentro dos seus domínios. Essa solução parcialmente empregada no Brasil colonial e imperial, pois o senhor de engenho podia punir seus escravos e somente em alguns casos os escravos podiam ser punidos pela justiça estatal.
O mundo antigo desapareceu com a queda de Roma. Aquele que foi construído durante a Idade Média separou a Justiça Eclesiástica da Justiça secular (dispensada pelos Reis e seus barões). O processo de Joana D’Arc é um exemplo típico daquele período: Pierre Cauchon foi escolhido e remunerado pelos ingleses para conduzir um processo fraudulento cujo resultado somente poderia ser a condenação e a execução da heroína francesa.
“A ânsia de Cauchon em julgar Joana certamente sugere interesse próprio. Homem ambicioso, enérgico e capaz, Cauchon via Joana como um caso de vingança pessoal. Por outro lado, é bem provável que ele acreditasse estar agindo no interesse da verdade e da justiça.” (Joana D’Arc – a lenda e a realidade, Frances Gies, Zahar, Rio de Janeiro, 1982, p. 167)
“Era padrão que o prisioneiro fosse entregue oficialmente ao tribunal secular, que deliberaria sobre uma sentença e então decidiria o momento, a adequação e o local da punição. Mas, como vinha fazendo há meses, Cauchon ignorou as propriedades de um julgamento inquisitorial. Ele simplesmente acenou com a cabeça ao oficial de justiça e os ávidos ingleses, com Bedford, Warwick e outros, à frente, correram para cumprir sua tarefa.
Para economizar tempo e evitar objeções de último minuto, tudo tinha sido preparado com cuidado – o poste estava firmemente fixado ao chão, ao centro do mercado; a lenha e os gravetos estavam em seus lugares; tochas já estavam prontas para acender a fogueira; os guardas tinham espadas e lanças prontas para o caso de clamor público; e as correntes foram trazidas da cela de Joana, para melhor prendê-la ao poste e evitar que ela, que acreditavam ser uma bruxa, saísse voando.”(Joana D’Arc – uma biografia, Donald Spoto, Planeta, São Paulo, 2009, p. 255)
“No decorrer dos julgamentos, tudo que Joana dizia era distorcido e usado contra ela; e todas as vezes em que suas respostas não tinham como ser distorcidas, elas não eram registradas. Foi numa ocasião assim que ela fez aquela repreensão patética a Cauchon: ‘Ah, o senhor manda registrar tudo que é contra mim, mas não deixa que registrem o que é a meu favor.’ ”(Joana D’Arc, Mark Twain, BestBolso, Rio de Janeiro, 2013, p. 471)
A criação e o fortalecimento dos estados nacionais europeus intensificou os conflitos entre os Reis e a Igreja. Ao fim destes, a autoridade temporal eclesiástica entrou em colapso e a Justiça Secular estatal se tornou a única a julgar processos. Exceto em raríssimas situações (como a tipificada no art. 208, do Código Penal), as disputas religiosas perderam importância jurídica. Isso obrigou os Estados a escolher de que maneira seria estruturado seu Poder Judiciário.
Em Portugal, o Rei sentiu necessidade de reforçar seu poder sobre a administração das finanças e da justiça nomeando um “juiz de fora” para limitar o poder exercido pelas autoridades locais. Esse instituto também foi imposto às colônicas em geral e ao Brasil em especial.
“Uma das razões que levaram a coroa a criar o cargo de juiz de fora foi, sem dúvida, a necessidade de intervir nas funções administrativas e financeiras – especificamente tributárias – das câmaras coloniais com o objetivo de evitar os chamados ‘descaminhos’ e os possíveis prejuízos a Fazenda Real. A iniciativa, porém, camuflava a velada intenção de reduzir o poder das câmaras municipais com o progressivo encolhimento de sua autonomia financeira e perda de fontes de receita. Isso se deu, a princípio, no Reino, onde o juiz de fora passou a presidir as sessões concelhias em regiões de maior importância econômica. Já em 1352 a coroa criara o cargo de juiz de fora para substituir o juiz municipal em certas comunidades. Depois, esse procedimento foi estendido às colônias, ao menos àquelas cidades e vilas de maior importância.
Uma das primeiras iniciativas nesse sentido – senão a primeira – ocorreu em 1677, quando o tribunal da Relação da Bahia sugeriu a medida à Coroa, argumentando que um magistrado profissional na câmara seria capaz de melhorar a administração da justiça, eliminando a parcialidade e o favoritismo demonstrados pelos juízes ordinários, como também a apropriação indébita de fundos por ela administrados. A Coroa, porém, só seria sensível a esse argumento em 1696, quando criou o cargo na cidade de Salvador, sob o argumento de que as câmaras já dispunham de muitas funções.
A partir de então, as câmaras municipais passaram a sofrer maior interferência da metrópole, com a nomeação de juízes de fora que se sobrepunham à instituição dos juízes eleitos nas vilas e cidades, o que viria a gerar tensão entre as oligarquias locais e o poder metropolitano. Antes, nos domínios ultramarinos, em 1688, já havia sido criado o cargo em Goa. Depois, Rio de Janeiro em 1703, e Luanda, em 1722, também ganhariam juiz de fora.” (Direito e Justiça em terras de El-Rei na São Paulo Colonial 1709-1822, Adelto Gonçalves, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 99)
No período em que a justiça era distribuída pelos clérigos, as disputas teológicas entre eles podiam acarretar graves controvérsias entre os juízes. Umberto Eco explorou de maneira brilhante esse tema no seu livro O Nome da Rosa. Guilherme de Baskerville e Bernardo Gui pertencem a ordem religiosas distintas. Eles já haviam se estranhado no passado, mas acabam se encontrando na Abadia de onde se tornam juízes das heresias que teriam sido cometidas. Os métodos empregados por eles são absolutamente distintos: o franciscano é lógico e racional; o dominicano é místico e irracional. No livro o caso fica parcialmente sem solução. Na versão cinematográfica, Bernardo Gui sofre um acidente mortal.
Na Inglaterra, além das disputas religiosas são dignas de nota as disputas entre os barões e o rei que deram origem à Magna Carta, que garantiu, dentre outras coisas que:
“Nenhum homem livre poderá ser detido ou aprisionado, ou despojado de seus direitos e de suas possessões, ou proscrito ou exilado, ou de qualquer forma destituído de sua posição, nem agir-se-á sob coação para com ele, ou enviar-se alguém para fazê-lo, exceto pelo julgamento conforme o direito por seus pares ou pela Lei local (§ 39).
Nesse mesmo sentido, entendeu-se formalmente aos cidadãos de todo o reino o direito ao acesso à Justiça, considerando que os barões ingleses sentiam-se absolutamente inconformados com a manipulação dos vereditos pronunciados pelos juízes, que se caracterizava pela circunstancial intromissão de João nas questões judiciais que eram de seu interesse ou nos pleitos que envolviam quaisquer de seus desafetos políticos:
A ninguém venderemos, negaremos ou postergaremos direito ou Justiça” (§ 40). (História do Direito, Rodrigo Freitas Palma, editora Saraiva, São Paulo, 2015, p. 252/253)
A secularização da distribuição da Justiça deveria evitar problemas como o explorado literariamente por Umberto Eco, mas não foi isso o que ocorreu. Quando se tornaram agentes estatais os juízes passaram a sofrer as consequências deletérias das disputas partidárias e políticas.
“A história da magistratura na França do século XIX esteve estreitamente ligada aos acontecimentos e reviravoltas da vida política [Bruschi, 2002]. Houve, é claro, uma continuidade testemunhada pela presença de famílias de magistrados que atuaram por várias gerações. Em 1848, Séguier, pertencente a uma antiga família de magistrados, ainda estava na direção do tribunal de recursos de Paris, depois de quase meio século desde sua primeira nomeação [Rousselete, 1960]. Mas cada mudança de regime comportou intervenções do governo destinadas a remover os magistrados mais próximos do poder precedente ou ao menos considerados contrário à nova ordem. Assim ocorreu em 1815 com um expurgo radical, assim em menos medida em 1830 e em 1848, assim de novo em 1852 com o advento do Segundo Império, assim por fim nos primeiros quinze anos da terceira república, a partir de 1870.” (História do Direito na Europa – Da Idade Média à Idade Contemporânea, Antonio Padoa Schioppa, Martins Fontes, São Paulo, 2014, p. 387)
Um caso particularmente interessante ocorreu durante o regime nazista alemão. Em virtude de serem desumanizados pela legislação os judeus não podiam mais ser julgados pelos juízes do III Reich.
“O elenco interminável de provimentos legais emanados contra os judeus culminou em alguns textos que estabeleciam termos jurídicos imprecisos, fazendo com que aqueles perdessem o statos de sujeitos de direito civil e penal, o que acabou por retirar-lhes o direito de fazer denúncias. Nos últimos momentos do Reich, os tribunais passaram a se considerar incompetentes para julgar os casos envolvendo judeus, pois – estando na ilegalidade – os crimes por eles cometidos seriam de competência exclusiva da polícia e da SS.” (O Estado e seus inimigos, Arno Dal Ri Júnior, editora Revan, Rio de Janeiro, 2006, p. 262)
Nesse ponto já podemos formular as principais questões que foram levantadas e respondidas pelos governantes à medida que foram estruturando a distribuição da justiça entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna.
Juiz singular ou coletivo?
Juiz vitalício ou temporário?
Juiz da localidade ou de fora dela?
Juiz nomeado/concursado ou eleito?
Juiz removível ou irremovível do cargo?
Juiz com poder de julgar todas as pessoas ou algumas delas?
Quais são as infrações funcionais e os crimes cometidos pelos juízes?
Como, onde e quando os juízes que cometem infrações são julgados e quem os julga?
As decisões proferidas pelos juízes são soberanas ou podem ser revogadas pelo governante?
Questão não menos importante é quanto os juízes ganham e se os salários deles podem ou não ser reduzidos?
Transcrevo abaixo as soluções encontradas por diversos regimes constitucionais. Advirto os leitores que, com exceção da constituição da URSS, todas constituições transcritas abaixo estavam em vigor no ano de lançamento da obra consultada: 1959.
Constituição Americana
Artigo III, Seção 1- “…Os juízes, tanto da Suprema Corte como dos tribunais inferiores permanecerão no exercício dos cargos enquanto sua conduta for irrepreensível… (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 11)
Constituição da Guatemala
“Art. 92- Os juízes, qualquer que seja a sua denominação, ou categoria, são responsáveis pessoalmente por toda infração de lei, de conformidade com a responsabilidade do Poder Judiciário.” (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 40)
Constituição do México
“Art. 108- Os senadores e deputados ao Congresso da União, os magistrados da Suprema Corte de Justiça da Nação, os secretários de Estado e o procurador geral da república, são responsáveis pelos delitos comuns que cometerem na duração de suas funções, bem como pelos delitos, faltas ou omissões em que incorrerem no exercício das mesmas.” (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 114)
Constituição da Nicarágua
“Art. 267-Os Magistrados das Cortes de Justiça não poderão imiscuir-se em assuntos de política partidária.” (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 153)
Constituição do Paraguai
“Art. 82- Os membros da Corte Suprema e demais Juízes e Magistrados do Poder Judiciário desempenharão suas funções durante cinco anos, mas a lei estabelecerá as condições e os requisitos para a inamovibilidade dos magistrados judiciais.” (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 194/195)
Constituição do Peru
“Art. 230- O Estado indenizará as vítimas dos erros judiciais em matéria criminal, precedendo o processo de revisão, na forma que a lei determinar.” (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 217)
Constituição da República Dominicana
“Art. 61- Compete exclusivamente a Suprema Corte de Justiça, sem prejuízo das demais atribuições que a lei lhe confere:
4ª- Exercer a mais alta autoridade disciplinar sobre todos os membros do Poder Judiciário, podendo impor até a suspensão ou a distribuição, na forma que a lei determinar.” (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 237)
Constituição do Uruguai
“Art. 216- Os membros dos Tribunais de Apelação ficarão em seus cargos por todo tempo de sua boa conduta até ao limite estabelecido no Art. 223.” [aposentadoria compulsória aos 70 anos] (História das Américas, publicada sob a direção geral de Ricardo Levene – edição brasileira dirigida por Pedro Calmon -, Volume XIV – Textos constitucionais dos estados americanos, W.M. Jacson Inc. editores, Rio de Janeiro – São Paulo – Porto Alegre, 1959, p. 272)
Constituição da URSS
“Art. 153- O Supremo Tribunal da URSS é o órgão supremo da URSS e fiscaliza a administração da justiça pelos tribunais da URSS e pelos tribunais das repúblicas federadas, dentro dos limites estabelecidos pela lei.” (Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Edições Trabalhistas, Rio de Janeiro, 1987, p. 48/49)
As Constituições brasileiras sempre foram extremamente generosas com os juízes. Todavia, o Código Penal de 1830 prescrevia vários crimes em que eles poderiam ser incursos:
Art. 2º- Julgar-se-ha crime, ou delicto:
3º O abuso de poder, que consiste no uso do poder (conferido por Lei) contra os interesses publicos, ou em prejuizo de particulares, sem que a utilidade publica o exija.
Art.142- Expedir ordem, ou fazer requisição illegal.
Penas – de perda do emprego no gráo maximo; de suspensão por tres annos no medio; e por um no minimo.
O que executar á ordem, ou requisição illegal, será considerado obrar, como se tal ordem, ou requisição não existira, e punido pelo excesso de poder, ou jurisdicção, que nisso commetter.
Art. 143- São ordens, e requisições illegaes as emanadas de autoridade incompetente, ou distituidas das solemnidades externas necessarias para a sua validade, ou manifestamente contrarias ás leis.
Art.144- Exceder a prudente faculdade de reprehender, corrigir, ou castigar, offendendo, ultrajando, ou maltratando por obra, palavra, ou escripto algum subalterno, ou dependente, ou qualquer outra pessoa, com quem se trate em razão de officio.
Penas – de suspensão do emprego por um a dez mezes.
Art.152- Quando do excesso, ou abuso resultar prejuizo aos interesses nacionaes.
Penas – multa de cinco a vinte por cento do prejuizo causado, além das outras, em que tiverem incorrido.
Art.153- Este crime póde ser commettido por ignorancia, descuido, frouxidão, negligencia, ou omissão, e será punido pela maneira seguinte:
Art.154- Deixar de cumprir, ou de fazer cumprir exactamente qualquer lei, ou regulamento. Deixar de cumprir, ou fazer cumprir, logo que lhe seja possivel, uma ordem, ou requisição legal de outro empregado.
Penas – de suspensão do emprego por um a nove mezes.
Art.155- Na mesma pena incorrerá o que demorar a execução da ordem, ou requisição para representar acerca della, salvo nos casos seguintes:
1º Quando houver motivo para prudentemente se duvidar da sua autenticidade.
2º Quando parecer evidente que fóra obtida sob, e subrepticiamente, ou contra a Lei.
3º Quando da execução se devam prudentemente receiar graves males, que o superior, ou requisitante não tivesse podido prever.
Ainda que, nestes casos, poderá o executor da ordem, ou requisição suspender a sua execução para representar, não será comtudo isento da pena, se na representação não mostrar claramente a certeza, ou ponderancia dos motivos, em que se fundára.
Art.156- Deixar de fazer effectivamente responsaveis os subalternos, que não executarem cumprida, e promptamente as Leis, Regulamentos, e ordens, ou não proceder immediatamente contra elles, em caso de desobediencia, ou omissão.
Penas – de suspensão do emprego por um a nove mezes.
Art.157- Largar, ainda que temporariamente, o exercicio do emprego sem prévia licença do legitimo superior; ou exceder o tempo de licença concedida, sem motivo urgente, e participado.
Penas – de suspensão do emprego por um a tres annos, e de multa correspondente á metade do tempo.
Art.158- Não empregar para a prisão, ou castigo dos malfeitores, ou réos de crimes publicos, que existirem nos lugares de sua jurisdicção, os meios, que estiverem ao seu alcance.
Penas – de suspensão do emprego por um a tres mezes, e de multa correspondente á terça parte do tempo.
Art.159- Negar, ou demorar a administração da Justiça, que couber em suas attribuições, ou qualquer auxilio, que legalmente se lhe peça, ou a causa publica exija.
Penas – de suspensão do emprego por quinze dias a tres mezes, e de multa correspondente á terça parte do tempo.
Art.160- Julgar, ou proceder contra lei expressa.
Penas – de suspensão do emprego por um a tres annos.
Art.161- Se pelo julgamento em processo criminal impozer ao réo maior pena, do que a expressa na lei.
Penas – de perda do emprego, e de prisão por um a seis annos.
Art.162- Infringir as leis, que regulam a ordem do processo, dando causa á que seja reformado.
Penas – de fazer a reforma á sua custa, e de multa igual á despeza que nella se fizer.
Art.163- Julgarem os Juizes de Direito, ou os de Facto, causas, em que a lei os tenha declarado suspeitos, ou em que as partes os hajam legitimamente recusado, ou dado por suspeitos.
Penas – de suspensão por um a tres annos, e de multa correspondente á sexta parte do tempo.
Art.164- Revelar algum segredo, de que esteja instruido em razão de officio.
Penas – de suspensão do emprego por dous a dezoito mezes, e de muita correspondente á metade do tempo.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm
Nossa tradição de impor limites legais estritos à atividade judicial se rompeu com a proclamação da república, desde então os juízes fazem o que bem entendem. Eles só sofreram algum tipo de restrição durante os períodos ditatoriais. O art. 6º, do AI-5, por exemplo, foi especificamente desenhado para amedrontar os juízes.
“Art. 6º – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.”
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm
A aprovação da Lei de Abuso de autoridade não é um ataque aos juízes, mas uma garantia contra os abusos que têm sido cometidos pelos membros do Judiciário. Abaixo citarei apenas alguns deles.
Sérgio Moro e Deltan Dellagnol conspiraram para condenar Lula; o ex-presidente foi condenado, preso e impedido de disputar a presidência através de um processo totalmente fraudulento. Rafael Braga foi condenado por porte de substância explosiva ou inflamável, um crime que não poderia ter sido cometido já que ele foi preso em flagrante com duas embalagens contendo produto de limpeza. A esposa de Eduardo Cunha foi absolvida apesar de ser beneficiária dos crimes financeiros cometidos pelo esposo. Sérgio Moro cometeu o crime de grampear a presidenta Dilma Rousseff e nem mesmo chegou a ser processado por causa desse delito.
Portanto, todo cidadão responsável deve exigir que o Congresso Nacional casse os vetos que Bolsonaro impôs à Lei do Abuso de Autoridade. Um detalhe importante, entretanto, não foi objeto desta Lei: os abusos financeiros/orçamentários cometidos pelos juízes em seu próprio benefício. A esmagadora maioria dos cidadãos não sabem que os juízes brasileiros já estão ganhando mais do que os seus colegas norte-americanos e europeus.
Há algum tempo quase todo orçamento do Judiciário é transformado em salários, penduricalhos e aposentadorias para os juízes. Sobre esse assunto vide A Política da Justiça – Blindar as elites, Criminalizar os pobres, Luciana Zaffalon Leme Cardoso, Hucitec, São Paulo, 2018. Isso pode ser considerado justo num país em que a Justiça é custosa, morosa, duvidosa e interfere de maneira abusiva no processo político?
No Brasil, de maneira geral e desde o golpe de 2016 (que foi dado inclusive e principalmente porque Dilma Rousseff se recusou a aumentar os salários dos juízes) apenas os membros do Poder Judiciário e os procuradores podem dizer que tem direitos. Direitos e privilégios, pois eles não respeitam nem mesmo o teto constitucional prescrito para limitar seus proventos. Todos os outros, cidadãos comuns como você e eu, são titulares de expectativas de direitos. E na maioria dos casos juízes como Sérgio Moro e seus amigos do TRF-4 tem se esforçado bastante para que essas expectativas sejam frustradas. É preciso colocar um freio nos abusos cometidos pelos juízes. Mais do que isso: os brasileiros precisam começar a discutir maneira mais séria e permanente algumas propostas para reestruturar totalmente o Poder Judiciário.
Maquiavel fez uma advertência importante em relação ao instituto romano da ditadura que também pode ser considerado indispensável no caso brasileiro.
“Seria desejável que nunca ocorressem circunstâncias que exigissem remédios extraordinários, pois não há dúvida de que, embora as vias extralegais sejam úteis, o seu exemplo é sempre perigoso. Começa-se por atingir as instituições existentes com o propósito de servir o Estado e logo se usa esse pretexto para perdê-lo.” (Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, editora UnB, Brasília, 1994, p. 114)
Isso ficou bem claro no Brasil antes, durante e depois do golpe de 2016, que foi desferido com ajuda da Lava Jato. As exceções impostas ao Brasil por Sérgio Moro e por seus amigos no TRF-4, STJ e STF causaram a crise política e econômica que levou o tirano Jair Bolsonaro ao poder. E agora até mesmo os juízes estão com medo de perder suas prerrogativas e privilégios e se veem forçados a proteger a famílícia (as ações do presidente do STF nesse sentido são evidentes e vergonhosas).
Findo esse despretensioso ensaio com as palavras de D. Quixote:
— Por Deus, meus senhores — disse D. Quixote — são tantas e tão estranhas as coisas que neste castelo, das duas vezes que aqui tenho estado, me hão sucedido, que me não atrevo a dizer afirmativamente coisa alguma do que se perguntar acerca do que nele se contém, porque imagino que tudo o que aqui se trata é por via de encantamento. Da primeira vez muito me derreou um mouro encantado, e Sancho não se deu muito bem com outros, seus sequazes, e esta noite estive pendurado por um braço cerca de duas horas, sem saber como vim a cair em semelhante desgraça.
De forma que pôr-me eu agora em coisa tão confusa a dar o meu parecer, seria cair em juízo temerário. Pelo que toca ao dizerem que isto é bacia e não elmo, já respondi; mas, enquanto a declarar se isso é albarda ou jaez, não me atrevo a dar sentença definitiva, e exclusivamente o deixo ao bom parecer de Vossas Mercês; talvez, por não terem sido armados cavaleiros como eu, não hajam que ver com Vossas Mercês os encantamentos deste lugar, e tenham livres os entendimentos, e possam julgar as coisas deste castelo como elas são, real e verdadeiramente, e não como a mim me pareçam.” (D. Quixote de La Mancha, Miguel de Cervantes, Primeira Parte, Capítulo XLV – https://www.livros-digitais.com/miguel-de-cervantes/dom-quixote-de-la-mancha-livro-primeiro/516)
Que os brasileiros possam julgar as coisas do nosso Judiciário como elas são, real e verdadeiramente, e não como elas parecem aos juízes. Pois é evidente que eles são suspeitos ou insanos sempre que defendem seus privilégios institucionais e salariais.

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