sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

ECOS INSISTENTES DO CASO LULA


"Em 07 de Dezembro de 1970, Willy Brandt, então Chanceler Alemão, dirigiu-se ao memorial da resistência judaica, no Gueto da Varsóvia. Ali, com os olhos do mundo voltados para ele, o primeiro chanceler social democrata do pós-guerra, tomado de assalto pelos horrores da guerra, olhou para o chão, dobrou as pernas e... ajoelhou-se.

Inconscientemente, sabia ele que não bastava aos alemães o arrependimento ou culpa; e não bastava porque, parafraseando Calligaris, a culpa permite que se esqueça, isto é: o sujeito prende um inocente, admite o erro, promete que se sentiu culpado e, assim, essa promessa o absolve. Com isso, ele pode prender outro inocente e, depois, novamente absolver-se, bastando para tanto um pedido de desculpas.[1]

Por isso o Chanceler alemão, inconscientemente, sabia que não bastava o sentimento de culpa; era preciso mais do que isso! Daí, então, recorreu àquilo que Jacinto Coutinho, com razão, diz ser o fundamento ético da humanidade: a vergonha!

Porque se a culpa confere ao sujeito uma espécie de cheque pré-datado, que lhe permite “auto absolver-se”..., com a vergonha a coisa é diferente, e é diferente porque a vergonha cria uma cicatriz.
Vale dizer: se a culpa absolve o sujeito culpado, liberando-o para poder voltar a cometer o mesmo erro, a vergonha, por criar uma cicatriz – que não sai – funciona como um regulador inafastável para as condutas futuras.
Foi por vergonha, aliás (embora não desconsiderando a possibilidade de outras interpretações) que Hanna Schmitz – personagem da obra O Leitor, de Bernhard Schlink [2] – suicidou-se.  
E é justamente pela ausência dela – a vergonha – que a polícia federal veio a público dizer que: “entende pouco recomendável a materialização do deslocamento do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tomando-se por base única e principalmente o resguardo da incolumidade física do custodiado e da ordem pública, embora estejamos, como sempre, disponíveis para o atendimento de eventual ordem emanada das esferas administrativa\judicial”.
Justo no lapso, como dizem os psicanalistas, naquela frase que não se dá importância ou que se despreza, que o inconsciente aparece com mais força, isto é:
no final da frase, depois de expor todos os motivos pelos quais não poderiam levar o Ex-Presidente Lula ao enterro de seu irmão, a polícia federal comete um ato falho, dizendo que pode levá-lo sim, quando diz que estão “disponíveis para o atendimento de eventual ordem emanada das esferas administrativa\judicial.”
Pior do que os cínicos são os ocos, diz Calligaris [3], pois eles são desprovidos de alma.
Ora, ora e ora. Como é possível – indagou Calligaris em sua tese de doutorado – que um homem qualquer, que pode ser você ou eu, caro leitor, torne-se algoz?
Responde Calligaris, em conclusão parecida àquela de Erich Fromm, dizendo que qualquer um de nós pode se esquecer de sua humanidade ao apoiar ou descansar na obediência, porque obedecer é muito menos penoso do que pensar e agir [4]. Não à toa O Medo à Liberdade é o título do livro de Erich Fromm, escrito em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial.
O medo à liberdade de pensar (por conta própria), que produziu Eichmann(s), possibilitando uma banalidade do mal, é o mesmo que permitiu que policiais federais produzissem (e assinassem) um relatório contra a lei, dado que a lei assegura (e eles sabem disso) este direito ao preso.
Não se trata (pelo menos não em sua maioria, embora haja aqueles que o sejam) de uma perversão, situação em que o sujeito goza ao exceder os limites que ele sabe que não pode ultrapassar. Trata-se, na verdade, de sujeitos com o espírito de Eichmann, que abdicaram de sua autonomia, submetendo-se totalmente ao sistema que os comanda [5], em prol de fazerem parte de uma engrenagem que é feita para moer carnes.
Sabem que agem contra a lei; por isso, depois de exporem os motivos que os impediria de levar Lula ao velório de seu irmão, assumem que poderiam levá-lo, quando dizem que estão “disponíveis para o atendimento de eventual ordem emanada das esferas administrativa\judicial.” Talvez não tenham culpa, porque sujeitos como Eichmann caracterizam-se pela fraqueza – “o único defeito que não se pode corrigir”, de acordo com LaRouchefoucauld [6].
O problema, porém, é que do outro lado está o Ex-Presidente Lula, um sujeito que de fraco não tem nada, tanto que, podendo fugir, preferiu ficar; e lutar.  Eis que depois de
O que é preocupante porque gente assim como o Ex-Presidente, tal como era o Reitor Luiz Cancellier, tem disposição para praticar os atos mais corajosos – até um suicídio(!), já que são constituídos de uma coisa que o relatório da Polícia Federal não teve: dignidade.
Por isso, o Judiciário não pode deixar que a Polícia Federal faça Lula se suicidar.
Numa palavra final: que o Judiciário aja como Antígona, e não como Creonte (que queria impedir Antígona de enterrar seu irmão...).
CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 183.
2 SCHLINK, Bernhard. O Leitor. Trad. De Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Record, 2009.
3 CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 131
4 CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna – 101 crônicas. Publifolha: São Paulo, 2008, p. 367.
5 LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica social. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: companhia de Freud, 2004, p. 73.
6 LA ROCHEFOUCAULD. Máximas e Reflexões. Escala: São Paulo, p. 30."






(De Djefferson Amadeus, post intitulado "Judiciário não pode deixar que a Polícia Federal faça Lula se suicidar", publicado no GGN - Aqui.

Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica -UNESA-RJ-, bolsista Capes, pós-graduado em filosofia -PUC-RJ-, Ciências Criminais -Uerj- e Processo Penal -ABDCONST-, pesquisador da Coop. Social Fiocruz. Advogado criminalista. 

Comentário do leitor Fernando Brandão: "Num determinado momento, Lula disse que não iria pedir asilo político em nenhuma embaixada, tampouco compactua com o exílio. Disse também que não faria como Getúlio, não iria se suicidar. A história vem se repetindo, geopolítica mundial mais forte do que nunca. Tio Sam e suas intromissões, sempre acerca do petróleo; fica a pergunta: Onde eles -EEUU- estão nas questões da fome, das ditaduras? Por que não invadem a Arábia Saudida?(ali sim, ditadura), por que não ajudam a África Subsaariana?  
Somente com educação, povo politizado e sangue nas veias. Senão... subserviência eterna".

Eis que, depois de tudo já se encontrar em pleno caminho do esquecimento - como de praxe -, o chefe da PF no Paraná concede entrevista - aqui mencionada - para dizer que não conseguiu compreender o porquê da "polêmica" em torno da [não] ida do ex-presidente ao velório de seu irmão Vavá, uma vez que a lei, por utilizar a palavra "poderá", em vez de "deverá", concedia à autoridade o direito de indeferir o pedido, o que foi feito. Mas, indagamos nós, como foi indeferido, se o próprio presidente do STF e do CNJ, mesmo inocuamente - em face da deliberada postergação do sistema policial-judicial -, acabou por DEFERIR o pleito, embora sob condições?! A contraditória iniciativa do dirigente serviu para deixar clara a máxima de que às vezes, diante de certas decisões indefensáveis, calar é a alternativa mais aconselhável).

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