quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O PORQUÊ DE 'A BOA NOTÍCIA É QUE'

(Cinegnose)
Globo adota "a boa notícia é que..." para tentar se salvar do baixo astral nacional 
Por Wilson Ferreira (No Cinegnose)    
O telejornalismo é um dos principais produtos televisivos. Não importa se as notícias sejam boas ou ruins. No todo, o produto deve garantir uma experiência esteticamente agradável para o espectador. Em suma, ser um “infotenimento”, para atrair prestígio, anunciante e rentabilidade. Porém, a atmosfera pesada desse início de ano baixou nos telejornais: Brumadinho, jovens atletas mortos no incêndio do CT do Flamengo, notícias diárias de feminicídios, câmeras nas ruas mostrando valentões armados disparando e matando em prosaicas brigas de trânsito ou simples disputa de vaga num estacionamento e seguranças matando pobres em supermercados. Conjunções adversativas e adjuntos adverbiais já não dão mais conta de neutralizar o tsunami de tragédias e violência – amenizar as más notícias para garantir a experiência "infotenimento". Agora, repórteres da Globo repetem a expressão “a boa notícia é que...”: encontrar alguma brecha de esperança no "outro lado" das más notícias. A grande mídia perdeu o controle do próprio monstro que criou... 

No “Jornal GloboNews” na edição das 16h desta última segunda-feira, foi apresentada matéria sobre uma mulher (Elaine Caparroz, 55) que foi brutalmente espancada no Rio de Janeiro por Vinicius Serra, 27, após meses de contato através das redes sociais. Foram quatro horas de violência no apartamento dela após o jantar para celebrar o primeiro encontro. Foi internada com diversas fraturas no rosto.
No link ao vivo em frente ao hospital, uma repórter fala: “... mas a boa notícia é que ela saiu da UTI e não precisará mais de cirurgia reparadora na face...”.
Agora, outra tragédia. Dessa vez coberta na TV aberta pelo telejornal SPTV da mesma emissora. Em outro link ao vivo, uma repórter cobria o desmoronamento de duas casas por causa das fortes chuvas que atingiram a cidade de Mauá/SP na noite de sábado. Uma bebê de um ano e duas crianças morreram. Talita dos Santos Silva, 34, foi submetia a cirurgia, sem saber que havia perdido seus filhos e que estava grávida de 3 meses. 
Então, a repórter de São Paulo repete o bordão: “... mas a boa notícia é que Talita já saiu da UTI e talvez sua gravidez não tenha sido prejudicada...”.
Não importa a pauta, seja de Cidades, Economia, Polícia, Política etc., parece que agora apresentadores e repórteres da Globo estão orientados a forçosamente encontrar “a boa notícia”, alguma brecha promissora ou esperançosa que ajude a diluir tanto baixo astral que vem assolando as notícias diárias.
E repete-se em média cinco vezes por dia o “a boa notícia é que...”. Cresceu o número de desalentados (desempregados que já perderam a esperança de achar emprego) no mercado de trabalho brasileiro... “mas a boa notícia é que...” e toca a entrevistar algum coordenador de algum curso MBA do Ibmec ou de alguma pós da FGV para fundamentar a chispa de esperança da pobre repórter.


Baixo astral

É inegável como a atmosfera pesada desse início de ano baixou nos telejornais: Brumadinho, jovens atletas mortos no incêndio do CT do Flamengo, sucessão de feminicídios diários e câmeras nas ruas mostrando valentões armados disparando e matando em prosaicas brigas de trânsito ou simples disputa de vaga num estacionamento. 
Sem falar num governo que se desintegra em tempo recorde sobre crises em torno de laranjas, relações perigosas com milicianos e a perspectiva de o País virar bucha de canhão na invasão da Venezuela comandada por Trump.  
O problema é que um telejornal é muito menos um prestador de serviços noticiosos e muito mais um produto que visa atrair anunciantes. Sabe-se que anunciantes não querem associar suas marcas e serviços a experiências desagradáveis. Por exemplo, no dia dos atentados de 11 de setembro de 2001 as redes de TV dos EUA tiveram um prejuízo de US$ 200 milhões com a suspensão de inserções publicitárias. Um ano depois, ao fazer reportagens especiais em horário nobre sobre o evento, a FOX News teve mais prejuízos: anunciantes ficaram relutantes em associar suas marcas à lembrança de um evento tão negativo.
Por isso anunciantes mais qualificados fogem de telejornais sensacionalistas. O problema é que a recorrência diária de catástrofes, violência brutal e pessimismo que inevitavelmente vem dominando a pauta jornalística cada vez mais dilui as fronteiras entre os telejornais “qualificados” (com prestígio, anunciantes e rentabilidade) e os telejornais sensacionalistas – com anunciantes menos qualificados e sem prestígio. 

O telejornal e seu espectador

As análises críticas do telejornalismo se concentram principalmente nas manipulações da pauta, edição e na ingerência de interesses político-ideológicos nas angulações das matérias. Mas se esquecem de uma coisa que parece ser tão óbvia que acaba se tornando natural: todo telejornal é feito para ser agradável.


Não importa o seu conteúdo específico, o quanto as notícias sejam boas ou más ou quão profundamente as manipulações dos apresentadores possam nos afetar ideologicamente, no todo é sempre agradável assistir a um telejornal – ritmo, cores, cenografia, a informalidade do “âncora”, os diálogos de bom humor ou de indignação dos apresentadores na bancada, as estudadas 'fisionais' e gestuais, as roupas, imagens limpas etc.
Em seu texto clássico chamado “O Telejornal e Seu Espectador(clique aqui), Robert Stam questiona esse pressuposto de todo telejornalismo: por que o noticiário deve ser agradável? Stam chama a atenção para a natureza ficcional do telejornalismo: o prazer voyeurista do espectador, as noções de teledramaturgia que os apresentadores devem ter ao ler as notícias no teleprompter, matérias com trilhas musicais que pontuam emoções ao melhor estilo das telenovelas, efeitos croma key que colocam jornalistas dentro de quadros sinóticos de previsão do tempo etc.
Partindo-se da premissa que o telejornal é um produto que precisa ser agradável ao espectador (o prazer de se sentir bem informado) e também atrair anunciantes e dar faturamento, o crescente baixo astral nacional começa a entrar em contradição com a própria estética televisiva – como transformar a experiência do informar-se em algo esteticamente agradável se as notícias são cada vez mais aterradoras? Como continuar a oferecer “infotenimento” ao distinto público?


Tiro no pé

Não faz muito tempo, os telejornais - não só da Globo - chegaram a dar um tiro no próprio pé ao fazerem o jornalismo de guerra que levou ao impeachment de 2016, parindo involuntariamente o filho bastardo (e agora renegado) que se transformou num governo auto-destrutivo.
Eram épocas do jornalismo adversativo, no qual nas boas notícias dos governos Lula e Dilma que eram noticiadas, mereciam o contraposto das conjunções coordenadas adversativas para alarmar o espectador com a perspectiva de que o País inexoravelmente caminhava para o buraco: o PIB aumentou. Mas... o desemprego aumentou; A economia aqueceu. Mas... não vai conseguir escoar a produção, e assim por diante. Para criar baixo astral, alarmismo... terroristas nas Olimpíadas... ou o 7X1 da Alemanha sobre a seleção brasileira na Copa como sintoma de um país fracassado e um governo acuado. Cuja presidenta era xingada no jogo de abertura no Itaquerão.
Com o governo do desinterino Temer, pós impeachment, sobreveio a guinada gramatical da grande mídia: o jornalismo adversativo foi substituído pelo dos adjuntos adverbiais de concessão (“apesar de”, “embora”, “em que pese”, “mesmo que” etc.) - “Apesar da crise, cresce a venda de ovos de páscoa...”; “Embora o desemprego seja elevado, o setor de informática é o que mais contrata...”.
Ou então as conjunções adversativas com sentido contrário como no bizarro ao vivo de Tereza Heredia da Globo News, tentando mostrar o “lado bom” da queda da inflação motivada pela deflação causada pela recessão econômica e desemprego: “PORÉM... aumentou o poder de compra dos brasileiros...”.


Muito além dos adjuntos e conjunções

Mas o momento atual é muito diferente: crises políticas diárias e tragédias humanas recorrentes que prometem se repetir no futuro pela opção de um modelo econômico colonial de exploração e exportação de commodities a todo custo social, como ferro, manganês e jovens jogadores pobres movidos pelos sonhos de virar um novo (e rico) Neymar. 
Além da escalada de violência urbana e doméstica, com os exemplos dados pelo clã Bolsonaro que fez abrir as portas do Inferno e do Brasil profundo. 
A recorrente expressão “a boa notícia é que...” nos telejornais é uma estratégia discursiva desesperada, já que as conjunções e adjuntos adverbias já não têm mais força para neutralizar o tsunami de lama das péssimas notícias e baixo astral, análogos ao de Brumadinho.
Por uma década a grande imprensa transformou cada trepidação da Bolsa de valores, cada variação sazonal dos preços de legumes e hortaliças ou de cada flutuação de câmbio em sintomas de uma previsível catástrofe nacional. Conseguiu derrubar um governo e entronar em Brasília sua criatura inesperada. 
Pois agora, o efeito autorrealizável da crise perdeu o controle, colocando em risco um dos principais produtos televisivos: o infotenimento – não importa o conteúdo, o produto telejornal deve ser sempre uma experiência agradável para o telespectador. Para atrair prestígio e anunciantes.
Pelo visto, o dispositivo discursivo “a boa notícia é que...” vai se repetir muitas vezes daqui em diante.  

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