domingo, 29 de outubro de 2017

A CURTA SAGA DE ADILÉIA, NOSSA DOLORES


Passando de passagem pela vida da costureirinha Dolores Duran

Por Sebastião Nunes

Era uma espoleta. Mal entrou em casa foi logo gritando:

– Ganhei! Ganhei! Ganhei! – e correu para abraçar as irmãs, sentadas com as costuras no colo e as mãos povoadas de agulhas e linhas.
– Tá bom, Adiléia, todo mundo sabe que você ganhou – disse a mãe Josepha com um sorriso orgulhoso. – Mas cantar não enche a despensa de comida, é bom ficar sabendo e cuidar da costura.
Ainda com um risinho de felicidade, Adiléia sentou ao lado das irmãs Denise e Solange e pegou a cesta de costura.
– Eu sabia – sussurrou ela, eufórica, para as irmãs. – Eu sabia que ia ganhar!
O que ela ganhou, você precisa saber, foi o primeiro prêmio num programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso. Ela tinha 12 anos e nesse mesmo ano teve de largar a escola para ajudar nas despesas, pois o concurso só dava fama, e assim mesmo restrita à família e à vizinhança. Como uma pedra pequena numa lagoa mixuruca.

VIDA DE SUBÚRBIO
Não era mole para ninguém. A mãe Josepha atendia muitas vizinhas e até gente graúda, ajudada pelas meninas, “bordadeiras de mão cheia”, como se dizia na época. Com o padrasto Armindo, pouco contavam. Um biscate aqui, outro ali, uma pinga aqui, outra ali – o que sobrava eram uns trocados, que ele largava suados na mesa.
Nascida na Rua do Propósito, no bairro da Saúde, centrão do Rio de Janeiro, Adiléia nunca teve vida mansa. “Até parece que foi de propósito”, trocadilhava a mãe, que teve três meninas. “Foi ótimo porque me ajudam muito. Filho homem só dá trabalho e canseira”. E não dava moleza para nenhuma delas, nem mesmo para a artista da família, metida a cantora.
Logo se mudaram para um cortiço mais bem ajeitado, na Piedade. “Bem melhor para a saúde”, foi outro trocadilho da mãe, que nunca se esquecia dos trocadilhos nem da grave febre reumática que quase levou Adiléia quando a garota contava apenas oito anos. Como sequela, um sopro no coração, dos que exigem cuidados.

NASCE UMA ESTRELA
Dizem que na década de 1940 conheceu um casal muito rico, que dava saraus e concertos – foi lá que começou a cantar como gente grande.
Dizem que muita gente do rádio adorou e, assim, acabou convidada para gravar algumas canções.
Dizem que foi o dono da casa, Lauro, que mudou seu nome: de Adiléia, “nome de pobre”, como disse certa noite, para Dolores Duran, inspirado na atriz norte-americana Dolores Moran, que ninguém sabe mais quem foi.
Dizem que, inteligente e esforçada, aprendeu sozinha a cantar em inglês, francês, italiano, espanhol e até em esperanto.
Dizem que a grande Ella Fitzgerald, de passagem pelo Rio, ficou encantada com sua voz, chegando a dizer que a interpretação de Adiléia/Dolores, da canção “My funny Valentine” era a mais bela que tinha ouvido. 
Dizem que desde então começou a cantar em boates e que foi numa delas que o jornalista Fernando Lobo a ouviu e passou a elogiá-la com frequência no jornal. Outro que a jogou para cima foi Antônio Maria.

A ESTRELA SOBE
Claro que Adiléia, nessa altura renomeada Dolores Duran, não podia continuar morando no subúrbio a vida inteira.
Foi assim que se mudou, com a amiga e também cantora Jules Joy, para um apartamento em Copacabana. Nesse tempo ela já cantava na Rádio Guanabara, mas era de bonde que voltava toda noite para casa.
– Cansei – disse ela certa noite para a amiga. – Será que vou passar a vida inteira andando de bonde?
A mãe e as irmãs ficaram tristes, é lógico, afinal além de boa costureira ela tinha sido uma boa filha e ajudava nas despesas.
– Desculpe mamãe, mas não dá mais – disse ela quando anunciou a mudança. – Não dá pra ser costureira e cantora ao mesmo tempo.
Dona Josepha compreendeu. E compreendeu melhor ainda quando viu como os olhos da filha brilhavam, aquelas duas bonitas jabuticabas maduras.

VIDA QUE SEGUE
Certa noite, quando tinha 29 anos, Dolores dormiu e nunca mais acordou.
– Estou muito cansada – disse ela à empregada. – Vou dormir até morrer, nem precisa me chamar como todo dia. – Eram sete horas da manhã.
Antes disso, em 1955, sofreu um infarto, que a manteve 30 dias internada no Hospital Miguel Couto.
Entre a internação e a morte viveu intensamente, como artista noturna que era. Cantava, namorava, bebia, fumava, casava, descasava, chorava, brigava, tinha crises de ciúme, tinha crises de ódio, tinha crises de paixão, tinha crises de criatividade.
Nem mesmo um coração sadio aguenta tanta porrada, não é mesmo?

APÊNDICE ROMÂNTICO
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(Fonte: aqui).

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