Tristezas do Jeca: agonia e morte de dois escritores marginais brasileiros
Por Sebastião Nunes
A cancela gemeu. Comprida trilha estreita, pavimentada de pedras irregulares, conduzia à pequena casa em ruínas. Entrei. Bafo de mofo.
Entrou comigo a multidão tristonha de fantasmas arrependidos. Fantasmas de poetas, ficcionistas, cineastas, músicos, atores, fotógrafos, pintores.
Lá dentro, em cima da cama tosca de madeira carcomida, o velho cabeludo estertorava. Sangue coagulado empapava a camisa branca puída. Hemoptise, buraco de bala ou faca, hemorragia gástrica. Eu não sabia o quê. A morte rondava.
Aos 69 anos – era julho de 2007 – José Agrippino de Paula agonizava.
VERSÃO NÚMERO DOIS
– Zé Agrippino será disparado o melhor de sua geração – disse o polígrafo Mário de Andrade. – Os novos terão de comer muita poeira para alcançá-lo.
– Nem tanto ao vento – divergiu o polivalente Oswald de Andrade, que dava uma boiada por uma briga. – “Panamérica” é uma obra-prima, mas não gosto de “Lugar público”. De qualquer forma ele estará condenado eternamente ao limbo.
– Concordo – disse o poeta Sebastunes Nião, que preferia alegoria a realismo. – O que é que “Lugar público” tem de tão bom assim?
Em volta dos ambíguos delirantes, os fantasmas magros do poeta Ascânio Lopes Quatorzevoltas, morto de tuberculose aos 22 anos, e do ficcionista Rosário Fusco, morto de cirrose (ou algo parecido) aos 67, flutuavam em lençóis de retalhos multicoloridos. Fantasmas carnavalescos. Fantasmas brincalhões.
VERSÃO NÚMERO TRÊS
Na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, João Antônio Ferreira Filho, numa ressaca – seria mesmo ressaca? – que vou te contar, jogava milho para os pombos.
– Come chocolates, pequena; /Come chocolates! /Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. /Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. /Come, pequena suja, come! /Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! /Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, /Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida – arremedava ele Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, poeta que considerava afrescalhado demais para o seu gosto de marginal radical.
Dezoito dias passados, em outubro de 1996, 15 dias depois de apagar, o cadáver fedorento foi encontrado no caótico apartamento da Praça dos Paraíbas.
VERSÃO NÚMERO QUATRO
Zé Agrippino, de sandálias de couro, bolsa a tiracolo, caça puída, cabelos desgrenhados e barba grande, recostava-se numa parede da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, chupando uma guimba apagada. Tocava ao mesmo tempo, numa gaita de boca, a melancólica “Movimento dos barcos”, da dupla Macalé/Capinan.
Obra-prima. Confere aí:
Tinha lido a tarde inteira e os olhos doíam. Pulando de uma enciclopédia para outra, anotara a biografia de pelo menos 30 artistas importantes, que pensava usar para compor o livro que andava matutando.
Era 1966 e ele tinha a vida inteira pela frente. Para quê?
VERSÃO NÚMERO CINCO
– Cada louco com sua mania – disse Mário de Andrade, sobre as opiniões dos divergentes.
– Quanto a mim, gosto igualmente dos dois.
– Quanto a mim, gosto igualmente dos dois.
– Quanto mais experimentalista é um artista, mais aberto ele é – disse, de forma dogmática, Sebastunes Nião.
– Ou não – divergiu Oswald de Andrade. – Sartre dizia que...
– Ah, não – interrompeu Mário. – Sartre de novo, não.
– Se pelo menos fosse Camus... interferiu Sebastunes Nião.
VERSÃO NÚMERO SEIS
João Antônio abriu a porta do apartamento e entrou. Suava frio. As pernas não ajudavam, de modo que se deitou na cama e ficou matutando.
Teria ficado ali para sempre se, 15 dias depois, o fedor de seu corpo apodrecido não atraísse o porteiro.
– Era um cheiro horrível – disse o porteiro. – Nem parecia cheiro de escritor famoso. Como pode feder tanto uma criatura de Deus?
VERSÃO NÚMERO SETE
O peito do velho escritor José Agrippino de Paula se imobilizou. Fiquei olhando o defunto cabeludo. Já tinha morrido quase que totalmente em vida. Quem ainda se lembrava dele? Dois ou três gatos pingados. A reedição dos livros, teimosia pura, não ajudou nada. Ficou por isso mesmo.
VERSÃO NÚMERO OITO
Para isso serve ser artista, quando serve: fazer um pouco de estardalhaço durante algum tempo e depois fechar-se em si mesmo e esperar a morte.
– Olá, dona Morte, tudo bem? – disse o velho escritor diante da morte.
– Tudo bem, meu caro – respondeu a Morte. – Você está pronto? Sua obra já foi. Agora é a sua vez.
Comendo farinha do desprezo Valêncio Xavier ria. E tossia, a tosse enjoada da grippe que pegou durante “O mez da grippe”, de sua autoria. - (Fonte: aqui).
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