sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A SAGA DO POETA ADÃO VENTURA


Preto, pobre e poeta - que puta azar, hein, Adão Ventura?

Por Sebastião Nunes

Vezes sem conta palmilhei, tarde da noite, as ruas do Santo Antônio, bairro de classe média branca de Belo Horizonte. Ao meu lado, o patético poeta negro perseguia inalcançáveis louras de olhos azuis ou verdes, entrevistas numa rua, numa loja, num bar, numa livraria – entrevistas entre sonhos e esperança.
Adão era preto e não sabia. Quase opaco de tão negro, tinha lábios grossos, pés esparramados e a inconsciência do negro recém-forro.
Adão era pobre e fazia de conta que não: bebericava nas mesas do Lucas com a mesma placidez dos brancos remediados e, na hora de pagar, sacava a eterna nota de Cr$100,00, afirmando não ter trocado. Nunca tinha. E nunca pagava.
Adão era poeta, dos bons, e sabia de seu talento para a música dos versos, tanto que publicava poemas surrealistas no vanguardista Suplemento Literário de Minas Gerais, dirigido pelo exigente contista Murilo Rubião.
Adão Ventura tinha muitos amigos no cinturão branco que era então a Zona Sul de Belo Horizonte. Vivíamos, em febre e timidez, a década caótica de 1960.

O BALANÇA MAS NÃO CAI
Algumas vezes – não tantas como exigiria a lenda – subi a pé os 12 andares do edifício da Tupis com Amazonas, no centro de BH. Condenado ao abandono por defeito estrutural que desconhecíamos, permanecia de portaria aberta dia e noite. Sem elevador, sem eletricidade, sem faxina, sem água, sem regras e sem lei – seus moradores eram os corajosos sem-teto daquela época: estudantes, balconistas, pequenos funcionários, camelôs das redondezas, mendigos ocasionais, que saíam de manhã para voltar de noite, nunca mais de uma subida e uma descida por dia que ninguém é de ferro. Só os afortunados, moradores do 4º andar para baixo, se atreviam a mais.
No Balança, Adão convivia com ratos, baratas e restos de comida jogados pelos cantos, ao lado de roupas manchadas, meias furadas, cuecas fedorentas. E muitos livros: Direito, poesia, ensaios e ficção, principalmente poesia, a maioria dos quais oriundos do Suplemento, depois de resenhados com boa (ou má) vontade por Jaime Prado Gouvêa, Humberto Werneck, Luís Gonzaga Vieira, Manoel Lobato, Laís Corrêa de Araújo e tantos outros, principiantes ou não.
No Balança Mas Não Cai Adão era rei como Zumbi em Palmares.

OS PRIMEIROS LIVROS
Em 1970 tive o privilégio de criar a capa do primeiro livro de Adão, de poemas surrealistas e título magnífico: “Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul”, título que valia um poema e até um livro inteiro.
Em 1976 tive mais uma vez o privilégio de desenhar a segunda capa para Adão, ainda de poemas surrealistas e outro título magnífico, embora curto: “As musculaturas do Arco do Triunfo”.
Por que surrealistas?
Porque Adão era negro e não sabia. Tinha pai e mãe vivos, tinha irmãos, primos e sobrinhos, sabia que seus avós foram escravos – mas não sabia que era negro.
Ninguém hoje sabe o que foi ser intelectual negro na década de 1960 em Belo Horizonte. Orgulhosos de suas raízes, os negros de hoje sabem o que querem, de onde vieram e o que aspiram. Naquela época, não. Esmagado pela riqueza dos brancos, pela cultura dos brancos, pela segurança dos brancos, o negro enfiava o rabo entre as pernas e tentava o impossível: passar por branco.
Alguém chamaria tal postura de covarde? Hoje, talvez sim, porque ninguém sabe mais o que foi ser intelectual negro em BH (ou em São Paulo, ou em Curitiba ou em Florianópolis) na década de 1960: o massacre silencioso era completo.

A AVENIDA QUE DIVIDIA O MUNDO
Não será bem verdadeiro, mas talvez seja: a Avenida Afonso Pena, no centro de Belo Horizonte, praticamente cortava em duas a cidade centrífuga: dali para cima, rumo à Zona Sul, era a cidade dos brancos de classe média e dos ricos; dali para baixo, rumo aos bairros periféricos, a cidade de negros, pardos, mulatos e brancos pobres.
Claro: havia os bairros intermediários, fronteiriços, que permitiam e admitiam a miscigenação de cores e empregos ou ofícios de medianos para baixo: os que ganhavam pouco não podiam se dar ao luxo de discriminar, embora a maioria deles se desse ao gosto do preconceito e o exercesse com prazer.
Adão era um dos raros negros no baile cotidiano dos brancos. Por sorte, ou por azar, teve o privilégio da inteligência superior e outro privilégio quase mortífero: força de vontade acima da media, em busca de, como intelectual, se afirmar.
A junção desses dois fatores permitiu-lhe formar-se em Direito numa época em que os doutores de qualquer profissão eram, com raríssimas exceções, brancos.
Mas Adão quis mais: pretendeu se tornar poeta dos bons – como se replicasse, mais de meio século depois, a façanha de Cruz e Sousa na provinciana Desterro, atual Florianópolis, da qual foi salvo pelos amigos influentes e pelo Rio de Janeiro.

ADÃO VENTURA SE DESCOBRE NEGRO
Foram necessários quase 30 anos de confronto para que o beiçudo crioulinho mineiro, neto de escravos nascido em Santo Antônio do Itambé, soubesse que era negro.
E só descobriu porque passou um ano inteiro vivendo nos Estados Unidos.
Mas esse já é outro capítulo de uma velha história.  -  (Fonte: aqui).

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