domingo, 7 de maio de 2017

O VOO DE BELCHIOR


"No passado, as famílias orgulhavam-se de confiar a educação de seus filhos a um internato, geralmente de organizações religiosas. Partiam muito cedo. Aos 12 anos, já me encontrava nas clausuras do Seminário Seráfico de Messejana, próximo de Fortaleza, na primeira série ginasial. Sistema educacional duro, horário britânico até para o banho, orações, leitura, faxina e silêncio.

Quem se internava em seminário despedia-se das regalias mundanas, inclusive do afeto feminino. Raras as visitas de familiares. Quando se abriam as trincheiras da sexualidade, na adolescência, nem os apelos angelicais nos continham dos plácidos sonhos eróticos. E os padres diziam que tudo era pecado. A maioria desistia da vocação de celibatário. Lá fora, notabilizava-se em invejáveis profissões, resultado da excelente formação recebida. “Se não brilharem como padres, brilharão como cidadãos lá fora”- costumava dizer avançado Frei Higino.

Um dia, encontro um jovem, Belchior, ensino médio, em visita a Frei Higino, nosso diretor espiritual, bastante popular, por ministrar palestras ao estilo dos estudantes. O frade nos estimulava a ler João Mohana, Michel Quoist e tantos outros que revolucionavam aquela geração. As visitas de Belchior se repetiam.

Quando terminamos o antigo ginásio, transferiram-nos para o convento de Guaramiranga, na Serra de Baturité. Ali, um ano completamente isolado do mundo, entregue à oração, estudos espirituais e desfrute da paradisíaca serra. Belchior, fascinado com a nova experiência de vida monacal, solicitou a Frei Higino que nos seguisse.

Durante aquele ano, Belchior alegrava o recreio com humoradas imitações dos colegas, recitação de poemas de sua autoria e ao toque de violão. Adaptava histórias franciscanas ao dia a dia de nosso grupo. Seguia com rigor certas lições, como no se dirigir aos superiores, de cabeça baixa e frases decoradas. Eu disputava com ele quem sabia mais frases decoradas da Bíblia. Eu perdia. Anos depois, Belchior veio a Teresina para show. Frei Hermínio convidou para visitar nosso velho colega no Luxor Hotel. Provocou risos ao imitar minhas ingenuidades de outrora.

Terminado o noviciado, partimos para o Curso Clássico (médio) em Parnaíba. Ao contrário, Belchior, seguiu para Filosofia, em Sobral, de onde saiu sem concluir o curso. Abandonou o seminário, iniciou e não concluiu medicina, seguindo o mundo artístico.  Convidara-me, uma vez, para um dia com a sua família.

Era assim Belchior. As inteligências de águia voam tão alto que se perdem nas trilhas das nuvens e ventos. Viram aves de arribação. Abandonam estudos, família, filhos, esposa, pagamento de salário da banda, carros nos estacionamentos, as roupas nos hotéis, quitação de hospedagens e lanches. Permaneceu apenas com a segunda esposa, que, segundo amigos próximos, fê-lo pirar. A águia nunca aprendeu o voo de volta. Adormeceu para sempre na poltrona de uma mansão de amigo, que o acolhera, apiedado com a sua liseira existencial."





(De José Maria Vasconcelos, post intitulado "Belchior de batina, genialidade e insensatez".
Vasconcelos, cronista, professor e blogueiro, é autor de "Escorregões no Português", 'guia prático para você nunca mais derrapar na hora de escrever e de falar' - AQUI -, publicado em abril de 2015).                                 ................

ADENDO        


Do jornal O POVO, de Fortaleza:

"Cultura: Após a morte do amigo dos tempos de infância, o arquiteto e poeta Fausto Nilo conversou com O POVO sobre a vida de extremos e coragens de Belchior

Fausto Nilo, 73, deixou sozinho a sala onde o corpo do amigo de infância estava sendo velado, na entrada do teatro do Dragão do Mar. Era começo de noite da segunda-feira, 1º de maio. Dez anos antes, ali perto, haviam tido sua última conversa. Um papo ligeiro sobre as “coisas da vida”, como gosta de dizer. O arquiteto tinha acabado de deixar o palco onde havia se apresentado no centro cultural. Belchior, que assistira ao show, deu uma passada no camarim apenas pra avisar que já estava de partida. Fausto o encontraria horas depois, namorando num banco da praça, a mesma onde, naquela segunda, centenas de pessoas se apinhavam numa fila para se despedir do cantor e compositor. O amigo era assim, lembra Fausto em entrevista ao O POVO, a primeira que deu logo após o triste reencontro com o autor de Paralelas: “Ele tinha um lado São Francisco e um lado muito luxuriante”.

O POVO - Como conheceu Belchior e de que maneira se tornaram amigos?
Fausto Nilo – Eu evitei muito de falar sobre isso (a morte do amigo) porque a desorientação foi muito grande com a notícia. Independentemente do nosso encontro na universidade em torno da música, Belchior foi um amigo de quase infância. Ele foi meu companheiro do Liceu no ginasial, eu tinha 14 anos e ele tinha 10 e meio. Ficamos amigos porque era um menino que sabia latim como nenhum outro da turma, conhecia romances franceses, trechos enormes, e também conhecia a bíblia. Não tinha mais interesse, mas ele persistia com aquilo. Isso chamou muito a minha atenção. Era uma época em que nós, os meninos de uma cidade pequena, estávamos atrás de encontrar outros além do futebol. O Cláudio Pereira era dessa turma, o Barbosa Coutinho, o Valmir Teles, que é ator e vive no Rio de Janeiro. Nós formamos, então, esse grupo, que tinha interesses muito especiais, embora com diferenças. Esse é o Belchior que eu conheci e que durante toda a vida foi meu grande amigo. Ele nunca deixou de ir na minha casa por mais de três meses, só agora nesse último intervalo, com essa saída (refere-se ao isolamento do cantor e compositor). E nossa conversa era muito livre, nem se falava muito sobre música, a gente falava sobre as coisas da vida que a gente observava. Nunca faltou assunto. Não tô sentindo a morte. Acho que ele vai bem. Era um cara resiliente, isso nem me preocupa. É só nós e o fato.

OP - Caetano disse que Belchior fazia músicas dessas que não morrem.
Fausto – Acho que sim. O mais difícil na carreira de um poeta popular de canções é fazer músicas que não morrem. Para a grande maioria, é impossível. (...) "        

(Para continuar a leitura da entrevista com Fausto Nilo, clique AQUI).     

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