quinta-feira, 7 de junho de 2012

REVENDO VELHOS TEMPOS

Lembranças do passado que vivi

Edgard Catoira, da CartaCapital

Tenho acompanhado a disputa entre jornais e revistas. Claro que não tomo partido – mas sempre me reservo o direito de ficar revoltado quando sou surpreendido pela divulgação de que a Veja, sob a direção do Mino, (1968/74), tenha cedido em qualquer situação à pressão dos poderosos da ditadura.
Lendo hoje o texto do Mino, friamente, relato o que vivi ao compartilhar a trajetória dele em Veja.
Trabalhei na revista desde antes de ela ir para as bancas. A primeira capa, uma foice e um martelo, foi produzida por mim. Para se ter ideia de como a época era perigosa, quando fui incumbido de preparar a capa, parti, com total sigilo, para comprar as ferramentas. Fui a uma loja do Itaim Bibi, São Paulo. Quando comprava os tamanhos ideais da foice com o martelo, fui agredido por um cliente da loja, que, aos berros, me acusou de comunista. Paguei rapidinho e saí. Não podia polemizar porque acabaria ficando público que aquela seria a capa da esperada revista semanal que estava sendo lançada na semana seguinte.
 
Em dezembro de 68, quando eu assumia a sucursal de Salvador, a revista, que tinha na capa uma foto de Costa e Silva fardado, sentado numa cadeira do Congresso vazio, com seu quepe ao lado, foi apreendida. E editado o Ato Institucional V, que jogava o país nas trevas. A partir daí, a censura que era feita por militares foi transferida para um intelectual. Segundo o Ministério da Justiça, a redação era esperta e conseguia enganar o censor e aquela a foto da capa era uma montagem. Não era.
 
Não cabe narrar aqui e agora o sofrimento de gente com quem convivi, entre artistas, professores e jornalistas, porque não é o caso. Quero falar é do Mino e de sua postura nessa época.
 
O fato é que, em 1973, fui chamado para trabalhar na redação, em São Paulo. Por coincidência, o Mino fala dessa fase, em que Armando Falcão seria ministro da Justiça do general Ernesto Geisel, que sucederia o general do momento, Emílio Garrastazu Médici.
 
Como Mino contou em seu texto que está na CartaCapital desta semana e neste site, antes mesmo de assumir, o futuro ministro chamou-o imediatamente para dizer, amistosamente, que a liberdade voltaria para a revista.
 
Nesse período, porém, ninguém ainda poderia escrever que o próximo presidente seria Geisel. E assim foi feito, mas, aproveitando minha chegada ao novo cargo, Mino, na seção de abertura da revista, a carta ao leitor, ironizava a ditadura, contando que já estava escolhido o nome do novo secretário de redação, mas que ainda não podia ser publicado. Na semana em que se anunciou oficialmente o nome do presidente, Mino anunciou o meu também. Os leitores se divertiam.
 
Daí em diante, eu estava no centro do furacão. Era eu quem recebia os avisos do Ministério da Justiça sobre os assuntos proibidos a cada dia. Aliás, era também uma bela pauta: os documentos citavam assuntos relevantes, inéditos. Era eu também que tinha que me entender – mal, diga-se – com o censor, Richard Bloch. Nós nos odiávamos. Acho bom que todos saibam também a que nível chegava a censura. Um dia, uma foto de Ney Matogrosso, que ilustraria o alto de uma página de Shows, foi vetada. Perguntei ao censor a causa da censura. Ele respondeu que ela era erótica demais. Como o artista estava sem camisa, de jeans, deitado esticado numa poltrona, com ar debochado, me irritei e tentei manter a ilustração. Ele não abriu mão. E eu o insultei, dizendo que ele achava a foto imoral porque não se garantia como homem.
 
Foi também nesse período que, enquanto o Mino escolhia fotos para uma matéria sobre anjos e demônios, chegou aviso de censuras a trechos de uma matéria de política. Em geral, elas eram sempre reescritas, e a revista passou a ser conhecida como a que escrevia nas entrelinhas. Nesse dia, Mino resolveu publicar figuras de demônios onde tinha censura. O desgaste com o governo era infernal. Tentava-se, de todo jeito, calar o Mino.
 
Pelo diretor responsável da editora, Edgard de Silvio Faria, eu tomava conhecimento de tudo que ocorria. Ele e Mino não se falavam à época e eu era a ponte entre ambos. Aprendi, na pele, muito sobre traição. O próprio diretor da editora, em Brasília, com apoio do ministro Falcão, chegou a tramar para tirar o Mino da revista. Chegou a acusar gravemente o jornalista, dizendo que levantara que Mino era um codinome. O nome real do “infiltrado” dirigente da redação era Demétrio.
Desagradável para os conspiradores foi constatar que no RH da editora o nome do jornalista era Demétrio e que Mino, seu apelido desde criança, era o que ele usava, e usa até hoje profissionalmente – e pelo qual todos os amigos o conhecem. Enfim, faziam qualquer coisa para tirar a força daquele incômodo inimigo do Estado. E, claro, pressionavam a direção da empresa para tirar o Mino, que não se deixava acuar e se rebelava cada vez mais.
 
O próprio Falcão, que afirmara ser amigo e admirador do jornalista, agora segurava a liberação de um financiamento milionário, já aprovado pelo governo, para um grande projeto da empresa, enquanto Mino não fosse afastado. A crise era forte, os ânimos estavam prestes a explodir.
 
Na verdade, em 74 aconteceu uma epidemia de meningite em São Paulo. Como o governo não tinha vacina, proibiu a divulgação da notícia. Cinemas, escolas e teatros infantis continuavam suas atividades e as crianças transmitiam o mal. Mandei minha família para o interior. Mas não aguentei enfrentar problema de não noticiar o que acontecia. Procurei um apoio psicológico e achei melhor me afastar da redação e fiquei trabalhando na agência de notícias da editora, que ficava ao lado da revista. E continuei a acompanhar a crise entre a revista, seu diretor e os donos da editora.
 
Para meu desespero, o Mino estava na lista das pessoas que deveriam desaparecer na noite de 25 de outubro de 1975, quando a ditadura matou Vladimir Herzog. A notícia corria pelo sindicato dos jornalistas de São Paulo e foi confirmada por autoridades que também tomaram conhecimento dessa lista. Acolhi-o, inclusive, em minha casa, uma vez que ele estava sendo procurado nessa caça às bruxas. O telefone tocou a madrugada inteira. Entre amigos, o cardeal Paulo Arns e até o general Golbery do Couto e Silva ligaram, conferindo se estava tudo bem.
 
Como o Mino saiu da revista, ele já descreveu. Eu, estressado, queria voltar para a Bahia. Só não fui porque Edgard de Silvio Faria, entendendo meus sentimentos, conseguiu me arranjar um cargo na sucursal de uma revista que ia ser aberta no Rio, a TV Guia, que teve vida curta. E até hoje permaneci aqui.
 
Voltei a trabalhar com o Mino, em revistas que ele mesmo criou para ter como sobreviver, e, mesmo depois do fim da ditadura, sempre vi o jornalista lutando por uma liberdade que não sei se alcançaremos, abrindo guerra contra qualquer tipo de imposição, tanto de ideias, quanto econômicas.
 
Agora, como todos seus leitores, acompanho este D. Quixote através da revista que ele mesmo criou e lançou. Sempre respeitando suas ideias. Como ele aceita as minhas que alguns leitores daqui já conhecem bem – e chegam a perguntar como o Mino admite os textos de um repórter como eu…
 
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Limito-me a dizer que foi excelente ler Veja. Quando saiu o número 1 eu tinha 15 anos. Recordo-me de que achei a revista cara e com excesso de publicidade (as páginas de anúncios superavam com folga as com matérias jornalísticas). Mas o texto era de primeira, e ler Veja tornou-se um salutar hábito. Anos depois eu tinha pilhas e pilhas da revista, que li até 2005, por aí - mas bem antes disso eu já me vinha desfazendo do acervo. C'est fini. Como dizia o pessoal d'O Pasquim: "Tsc, tsc!".  

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