domingo, 2 de fevereiro de 2025

QUERIDO ESTUDANTE NEGRO

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"O livro da escritora, pesquisadora e ativista Bárbara Carine, lançado em fevereiro de 2024, é escrito em formato de cartas da protagonista para um amigo também negro de melhor condição financeira." 


Por João Felipe Carvalho (Rev. Piauí)

Era uma tarde de março quando me sentei em frente à psiquiatra para encontrar uma medicação capaz de resolver minha indisposição física e mental. Durante a consulta, ouvi dela a recomendação de um livro “feito para a minha situação de vida”, ou seja, um jornalista, já, mas que ainda não defendera a monografia. O título da obra reverberou. Querido estudante negro. “Eita, é pra mim”, pensei.

O livro da escritora, pesquisadora e ativista Bárbara Carine, lançado em fevereiro de 2024, é escrito em formato de cartas da protagonista para um amigo também negro de melhor condição financeira. A autora escreve o que ela mesma chama de “autobiografia ficcional” para transmitir ao leitor as tensões sociais e raciais enfrentadas pela personagem. Não importa tanto quais das situações Carine realmente vivenciou, e sim que todas as tensões nas cartas são vivenciadas por pessoas negras. As ocorrências vão de piadas no jardim de infância sobre o cabelo da protagonista até o isolamento de uma universitária em meio ao mar branco e elitista de estudantes que não enfrentam a carga de trabalhar, estudar, pagar contas e tentar sobreviver (tarefa difícil, visto que a taxa de mortalidade de homens negros é quatro vezes maior que a de homens brancos).

Com exceção das duas últimas cartas, Carine recorre à simplicidade nas palavras e à sutileza para retratar as situações de um “eu coletivo”. A remetente não precisa de um excesso de detalhes para explicar a razão pela qual um amigo dela no aeroporto é sujeito a uma revista aleatória, ou a falta de representatividade negra no corpo docente das universidades. O motivo já sabemos. O sabor das cartas não amarga, somente, a boca do leitor negro. A psiquiatra que me indicou o livro é branca, e o leitor branco também é convidado a entender o regime de sobrevivência da população negra num país onde a luta para não morrer aumenta a cada dia, sem perspectiva de vitória do povo preto. 

A chegada da protagonista ao patamar de mestra e doutora em Ensino de Química, e professora adjunta do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), não é um final feliz do livro. Para corroborar tal argumento, a própria autora renuncia à vitória individual ainda na apresentação, com o seguinte trecho:

É importante dizer que este não é um livro sobre superação; não há como ser negro em um país tão racista como o nosso e superar a ferida colonial aberta em nós. Engana-se o preto que diz “cheguei lá” e acha que tem uma história de superação para contar e inspirar os outros. Me diga, chegou lá aonde? Será que essa pessoa percebe que se sentou à mesa na sala de jantar da casa-grande enquanto os companheiros, as pessoas que ele mais ama, se alimentam junto aos animais na senzala? Não! Não houve superação; houve incorporação ao sistema que machuca e oprime. A diferença é que agora ele está mais pertinho para ser estudado, vigiado e controlado.

Definitivamente não quero ser o preto na casa-grande enquanto a base de onde vim não desfrutar das pequenas vitórias da luta nossa de cada dia. Essa é apenas uma das várias reflexões proporcionadas pela leitura das cartas de Bárbara Carine.

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Sim, mas tudo tem um começo.  

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