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"O livro da escritora, pesquisadora e ativista Bárbara Carine, lançado em fevereiro de 2024, é escrito em formato de cartas da protagonista para um amigo também negro de melhor condição financeira."
Era uma tarde de março quando me sentei em frente à psiquiatra para encontrar uma medicação capaz de resolver minha indisposição física e mental. Durante a consulta, ouvi dela a recomendação de um livro “feito para a minha situação de vida”, ou seja, um jornalista, já, mas que ainda não defendera a monografia. O título da obra reverberou. Querido estudante negro. “Eita, é pra mim”, pensei.
O livro da escritora, pesquisadora e ativista Bárbara Carine, lançado em fevereiro de 2024, é escrito em formato de cartas da protagonista para um amigo também negro de melhor condição financeira. A autora escreve o que ela mesma chama de “autobiografia ficcional” para transmitir ao leitor as tensões sociais e raciais enfrentadas pela personagem. Não importa tanto quais das situações Carine realmente vivenciou, e sim que todas as tensões nas cartas são vivenciadas por pessoas negras. As ocorrências vão de piadas no jardim de infância sobre o cabelo da protagonista até o isolamento de uma universitária em meio ao mar branco e elitista de estudantes que não enfrentam a carga de trabalhar, estudar, pagar contas e tentar sobreviver (tarefa difícil, visto que a taxa de mortalidade de homens negros é quatro vezes maior que a de homens brancos).
Com exceção das duas últimas cartas, Carine recorre à simplicidade nas palavras e à sutileza para retratar as situações de um “eu coletivo”. A remetente não precisa de um excesso de detalhes para explicar a razão pela qual um amigo dela no aeroporto é sujeito a uma revista aleatória, ou a falta de representatividade negra no corpo docente das universidades. O motivo já sabemos. O sabor das cartas não amarga, somente, a boca do leitor negro. A psiquiatra que me indicou o livro é branca, e o leitor branco também é convidado a entender o regime de sobrevivência da população negra num país onde a luta para não morrer aumenta a cada dia, sem perspectiva de vitória do povo preto.
A chegada da protagonista ao patamar de mestra e doutora em Ensino de Química, e professora adjunta do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), não é um final feliz do livro. Para corroborar tal argumento, a própria autora renuncia à vitória individual ainda na apresentação, com o seguinte trecho:
É importante dizer que este não é um livro sobre superação; não há como ser negro em um país tão racista como o nosso e superar a ferida colonial aberta em nós. Engana-se o preto que diz “cheguei lá” e acha que tem uma história de superação para contar e inspirar os outros. Me diga, chegou lá aonde? Será que essa pessoa percebe que se sentou à mesa na sala de jantar da casa-grande enquanto os companheiros, as pessoas que ele mais ama, se alimentam junto aos animais na senzala? Não! Não houve superação; houve incorporação ao sistema que machuca e oprime. A diferença é que agora ele está mais pertinho para ser estudado, vigiado e controlado.
Definitivamente não quero ser o preto na casa-grande enquanto a base de onde vim não desfrutar das pequenas vitórias da luta nossa de cada dia. Essa é apenas uma das várias reflexões proporcionadas pela leitura das cartas de Bárbara Carine.
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Sim, mas tudo tem um começo.
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