sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

ODRADEK (UM FILME CONCENTRADO E EXCESSIVO, FASCINANTE E EXTENUANTE)

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"Em dado momento, os atores deixam de lado os personagens para comentar a experiência da filmagem e discutir o conceito de Odradek." 


Por Carlos Alberto Mattos

Desde
 Onde Andará Dulce Veiga?, de 2008, não sabíamos onde andava Guilherme de Almeida Prado. Nesse intervalo, avesso à TV, ele tinha se aventurado num filme para os evangélicos, A Palavra, que não chegou a ser lançado. Mas agora sabemos que não era só isso. Com um roteiro que vinha preparando há alegados 50 anos, ele deu por concluído em fins de 2023 o que talvez seja o projeto de uma vida: Odradek.

O título se refere a um estranho carretel em forma de estrela que tem vida própria, intriga e ameaça um homem no conto As Preocupações de um Pai de Família, de Franz Kafka. Esse objeto sem utilidade nem origem já deu margem a infinitas interpretações psicanalíticas, religiosas e até sócio-econômicas. Guilherme o toma como MacGuffin para tocar adiante os sucessivos confrontos entre um pai (Oscar Magrini) e seus dois filhos (Natalia Gonsales e Pedro Henrique Moutinho) sob os olhares silenciosos e espectrais da mãe (Cinthya Hussey).

Por várias razões, para o bem ou para o mal, Odradek é um filme único no cinema brasileiro. A começar pela duração de quatro horas e meia, equivalente a uma minissérie. Depois, por se configurar não como uma história linear e convencional, mas como um fluxo de monólogos e diálogos dessa família disfuncional que recorre a textos não só de várias obras de Kafka (especialmente Carta ao Pai), mas de diversos autores. Os personagens se seduzem mutuamente, se acusam, relatam sonhos repetidamente entre retumbâncias e ressonâncias sonoras. Aviões de guerra cruzam os ares eventualmente, e explosões assustam à distância. Som e fúria em alto volume – requisito anunciado por um enorme letreiro logo na abertura.

O choque de gerações produz discussões acaloradas entre o pai tirânico, patriarcalista e machista, o filho pintor pollockiano idealista e intimamente frustrado, e a filha sensual, consumista e instigadora. Num longo acerto de contas existencialista, essas pobres criaturas digladiam suas dúvidas, culpas e medos, ao mesmo tempo que clamam por justiça, perdão e denunciam a hipocrisia nas relações familiares. “A luta de classes começa em casa”, brada alguém.


Tudo isso nos vem num fluxo tortuoso, às vezes exacerbado, que chega ao espectador como um desafio a sua capacidade de permanecer conectado por tanto tempo. Enquanto assistia ao filme, eu por vezes me pegava desligado da correnteza verbal e antenado mais com a visualidade extravagante gerida pela fotografia de Rafael Martinelli em Cinemascope Technicolor e a direção de arte de Akira Goto e Juliana Ribeiro. Poucas vezes no cinema brasileiro eu vi um filme tão ambicioso em termos de construção da imagem, seja do ponto de vista técnico, seja artístico. Guilherme o classifica como “uma viagem conceitual, um
 Ano Passado em Marienbad filmado na ótica de Joaquim Pedro de Andrade”.

Tudo se passa numa mansão espetacular do Morumbi, repleta de intervenções pictóricas, físicas ou virtuais. O trabalho do filho pintor parece se expandir por salões, escadas e piscina. Os espaços se convertem numa espécie de galeria de arte, abundante de quadros e instalações. Aqui e ali um humor sardônico se insinua nesse aparato cenográfico, como é o caso da conversa dos personagens numa cadeira quádrupla em forma de suástica, ou o confessionário fingido com duas cadeiras de vime. Sem contar as esferas digitais que flutuam livremente pelos recintos e as súbitas aparições do Odradek criado por Guto Lacaz.

A presença da estrela amarela kafkiana desestabiliza a família e lança a todos numa espiral de indagações e desesperos. Em dado momento, os atores deixam de lado os personagens para comentar a experiência da filmagem e discutir o conceito de Odradek. Num roteiro acalentado por tanto tempo e filmado afinal como um jorro de vontade, Guilherme se deu a liberdade de fazer tudo o que queria, do jeito que queria.

Na abertura, brinca com a avalanche de logotipos que precede os filmes hoje em dia. No intervalo, deixa imagens na tela acompanhando a contagem regressiva de 15 minutos. De repente, a ação se transfere para um arremedo de palco com áudio de claque. A tela às vezes se “dissolve” em forma de pintura líquida. Em outros momentos, o preto e branco e a cor convivem no mesmo quadro. Os personagens assumem figurações alegóricas que remetem a militares, gueixas, pintor renascentista, Cristo e a Compadecida, além das muitas máscaras envergadas pelo pai. Instala-se o que eu chamaria de suspense estético, onde estamos sempre movidos à espera da próxima surpresa visual ou sonora.

Os atores se atiram sem paraquedas na encenação voluptuosa proposta pelo diretor. Natalia Gonsales tem as melhores oportunidades de revelar seu potencial dramático, enquanto Cinthya Hussey consegue se impor sutilmente nesse emaranhado de palavras como uma figura muda e quase imaterial.

Afora o gosto pela intertextualidade demonstrado em filmes como A Dama do Cine Shangai e Perfume de Gardênia, nada nos preparava para essa extravagância que não se enquadra no perfil do mercado e coloca em teste o potencial de absorção do público. Odradek é um espetáculo ao mesmo tempo concentrado e excessivo, fascinante e extenuante.  -  (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).

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De repente, pensei em 'Pocilga', de Pasolini... O alívio vem ao final, o cara já na rua. Dificilmente não.

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