terça-feira, 31 de dezembro de 2019

2019 A PARTIR DE UM RETORNO AO PASSADO

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O propósito deste Blog era o de 'fechar' o dia tão somente com cartuns e vídeos, mas resolvemos abrir uma exceção para o artigo abaixo, de autoria do advogado Fábio de Oliveira Ribeiro.
Antes, nossos agradecimentos aos que nos dão a honra de visitar este atento e esperançoso Blog. Feliz Ano Novo!
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."Estudar o passado é uma boa maneira de interpretar melhor o que está ocorrendo no presente."


2019, um ano de estelas e 'requerimientos' 

Por Fábio de Oliveira Ribeiro 

O único fundamento jurídico da conquista do Novo Mundo foi o Tratado de Tordesilhas assinado em 1494 por Reino de Portugal e a Coroa de Castela. Esse documento garantia a divisão pacífica das terras que fossem descobertas, mas ele regia apenas as relações entre portugueses e castelhanos não fazendo qualquer menção aos eventuais habitantes do Novo Mundo.
Como regular as relações entre invasores e nativos? Portugueses e castelhanos empregaram técnicas jurídicas distintas.
Quando a embaixada de Tomé Pires desembarcou na China a tarefa dele em Beijing (meados de 1520) foi muito dificultada, pois os enviados malaios tinham prevenido os chineses de que os portugueses eram “…ladrões que mantinham o costume de erigir uma estela e de construir uma casa nas terras das quais queriam se apoderar. Era assim que haviam procedido em Malaca.” (A águia e o dragão, Serge Gruzinski, Companhia das Letras, São Paulo, 2015, p. 144)
Ao chegar no Brasil o escrivão Pero Vaz de Caminha descreveu a terra e os homens que existiam nela na Carta enviada ao Rei de Portugal. No primeiro parágrafo do documento ele adjudica o Novo Mundo àquele que será considerado seu legítimo possuidor.
“Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.”
A opinião que os índios tinham ou poderiam ter acerca da posse da terra que eles habitavam não é mencionada. Eles não são iguais aos portugueses e não tem os mesmos direitos que os súditos do Rei de Portugal. A relação de sujeição entre invasores e invadidos é pressuposta logo no primeiro parágrafo da Carta de Pero Vaz de Caminha. Os índios não tem direito de manifestar sua própria vontade. Eles nem mesmo foram consultados pelo escrivão.
À medida que as estelas de pedra e as casas foram sendo erguidas no litoral pelos portugueses as terras dos índios começaram a ser adjudicadas e exploradas pelos colonos. O conflito inevitável entre eles e os nativos foi resolvido com o uso da força, pois os portugueses consideravam justa a sua pretensão. Eles eram súditos do Rei, os índios não. O Rei tinha direito à terra outorgado pelo Tratado de Tordesilhas e confirmado pela Carta de Pero Vaz de Caminha. A posse da terra desfrutada pelos colonos derivava dos regulamentos régios e era, portanto, legítima.
Os castelhanos legitimaram a conquista usando uma técnica mais cruel e sofisticada: o Requerimiento. Esse documento, uma injunção dirigida aos índios, “…É obra do jurista real Palacios Rubios, e data de 1514;é um texto que surge da necessidade de regulamentar as conquistas, até então um pouco caóticas. A partir de então, antes de conquistar uma região, é preciso dirigir-se aos habitantes, fazendo-lhes a leitura desse texto. Quiseram ver aí o desejo da coroa de impedir guerras injustificadas, de dar certos direitos aos índios; mas essa interpretação é generosa demais.” (A Conquista da América, Tzvetan Todorov, Martins Fontes, São Paulo, 2010, p. 212).
O Requerimiento deveria ser lido na presença dos índios. O fato deles não entenderem castelhano era considerado irrelevante. Além disso, o documento não exige que o texto fosse traduzido por um intérprete. A diferença qualitativa entre castelhanos e índios também é pressuposta. Os primeiros têm o direito de enunciar o Direito, os demais devem se sujeitar mesmo que não tenham entendido a mensagem.
“…Se os índios ficarem convencidos após essa leitura, não se tem o direito de fazê-los escravos (é aí que o texto protege os índios, concedendo-lhes um status). Se, contudo, não aceitarem essa interpretação de sua própria história serão severamente punidos, ‘Se não o fizerdes, ou se demorardes maliciosamente para tomar uma decisão, vos garanto que, com a ajuda de Deus, invadir-vos-ei poderosamente e far-vos-ei a guerra de todos os lados e de todos os modos que puder, e sujeitar-vos-ei ao jugo e à obediência da Igreja e de Suas Altezas. Capturarei a vós, vossas mulheres e filhos, e reduzir-vos-ei à escravidão. Escravos, vender-vos-ei e disporei de vós segundo as ordens de Suas Altezas. Tomarei vossos bens e far-vos-ei todo o mal, todo o dano que puder, como convém a vassalos que não obedecem a seu senhor, não querem recebê-lo, resistem a ele e o contradizem.’” (A Conquista da América, Tzvetan Todorov, Martins Fontes, São Paulo, 2010, p. 213)
A tensão gerada pela conquista do Novo Mundo nunca foi dissipada de maneira democrática. Entre colonos e índios não havia nem igualdade, nem espaço político, nem possibilidade de comunicação. Quando a comunicação ocorria ela era precária, pois os índios não partilhavam os referenciais culturais daqueles que produziam os discursos destinados a garantir a dominação dos invasores sobre os invadidos. Na maioria das vezes os europeus eram apenas aventureiros que queriam enriquecer e não demonstravam qualquer interesse pelo universo simbólico dos indígenas.
O esforço genuíno de aprender e descrever a língua dos índios, como ocorreu no caso do Tupi a partir de 1549, subordinava a comunicação com os índios à necessidade de catequizá-los e amansá-los para que o empreendimento colonial pudesse obter sucesso sem o uso de violência. Os jesuítas não queriam preservar a cultura indígena, mas substituí-la por outra. As capitanias hereditárias em que os portugueses desistiram da lida e passaram a viver como os índio e entre eles foram submetidas a um novo processo de colonização para garantir a implantação da Coroa Portuguesa no Novo Mundo.
A conquista da terra significou a destruição do espaço em que as culturas dos índios podiam existir de maneira autônoma. No caso dos castelhanos essa destruição incluiu obviamente a demolição de diversos monumentos erguidos por incas e astecas. Os livros que eles haviam produzido foram queimados.
De maneira geral, podemos dizer que os portugueses e castelhanos repetiram no Novo Mundo aquilo que os romanos haviam feito na Hispânia e na Lusitânia quinze séculos antes. Entretanto, uma diferença importante entre esses dois episódios não pode deixar de ser mencionada. Os romanos eram tolerantes do ponto de vista religioso. Roma civilizava suas províncias preservando o culto aos deuses locais. Obsedados por uma religião monoteísta intolerante, por bem ou por mal os portugueses e os castelhanos destruíram quase todas as formas de expressão religiosa diferentes com as quais eles entraram em contato.
Estudar o passado é uma boa maneira de interpretar melhor o que está ocorrendo no presente. De fato, não é possível compreender o ressurgimento do autoritarismo no Brasil e na Bolívia sem levar em conta a história da conquista do Novo Mundo. Nesses dois países o neoliberalismo se afirma inclusive e principalmente como um ódio programático aos índios e, é claro, à igualdade jurídica entre eles e aqueles que se consideram legítimos donos do Estado.
Sempre que aparece na televisão e faz um pronunciamento, Jeanine Áñez ignora a constituição do seu país e diz o Direito como se estivesse lendo o Requerimiento de Palacios Rubios. A ditadora boliviana representa uma minoria e só conseguirá se manter na presidência se excluir a maioria indígena das eleições. Bolsonaro depende dos ruralistas e também não conseguirá permanecer no cargo se não fincar uma estela de pedra em cada um dos territórios indígenas cobiçados por causa da madeira, dos minérios e da imensa produtividade no momento em que forem incorporados à produção de alimentos por seus novos donos.
A intolerância religiosa caracterizou a conquista do Novo Mundo. Ela renasceu no exato momento em que o neoliberalismo se uniu aos evangélicos para destruir qualquer possibilidade dos índios serem tratados como seres humanos com direito à preservar sua própria cultura em áreas demarcadas garantidas pelo Estado. Os Sistemas de Justiça da Bolívia e do Brasil foram criados para legitimar a apropriação da terra pelos colonos e para garantir a hierarquia entre eles e os índios.
Nesse momento, os juízes brasileiros e bolivianos que apoiam as bestialidades administrativas praticadas por Jair Bolsonaro e Jeanine Áñez estão mais preocupados em manter e desfrutar seus privilégios. Eles não correrão riscos para garantir os direitos humanos de pessoas pobres, feias e de pele escura que falam línguas diferentes. Muitos deles consideram os índios seres inferiores que podem ser desprezados, maltratados e exterminados. A violência estatal organizada que se voltou contra os índios ou que se recusa a protegê-los dos seus inimigos ruralistas brancos e evangélicos somente será freada se os crimes cometidos contra indígenas forem forem investigados pelo Tribunal Penal Internacional. Os juízes latino-americanos também deverão ser julgados.  -  (Aqui).

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