domingo, 4 de junho de 2017

LIVRO EM FOCO: A CIDADE DE DEUS (LIVROS VI - VIII)


A Cidade de Deus (Livros VI - VIII) - Santo Agostinho



"É fácil crer que se deu uma resposta quando na realidade o que se quis foi não estar calado. Que é que há de mais palavroso do que a vacuidade? E lá por que ela pode, se quiser, gritar mais alto do que a verdade — nem por isso terá mais poder que a verdade.”
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     “A realidade é que nunca seremos capazes de lhe agradecer a dádiva de sermos, de vivermos, de contemplarmos o Céu e a Terra, de possuirmos inteligência e razão para procurarmos Aquele que todos estes bens criou. E todavia, acabrunhados pelo peso dos nossos pecados, desviados da contemplação da sua luz, cegos pelo amor das trevas, ou seja, da iniquidade, não fomos completamente abandonados — mas enviou-nos o seu Verbo, o seu único Filho, que, na sua carne de nós assumida, nasceu e sofreu para que soubéssemos quanto Deus amou o homem e ficássemos purificados de todos os pecados por esse sacrifício sem igual e, com a caridade do Espírito Santo, difundida em nossos corações, chegássemos ao eterno descanso e inefável doçura da sua contemplação. Que corações, que línguas poderão ter a pretensão de lhe prestarem condignas ações de graças?”
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“Ao tratarmos da chamada teologia natural, temos que lidar, não com quaisquer homens (pois já não se trata da teologia fabulosa ou civil, isto é, a do teatro e a da cidade, das quais uma exalta ostensivamente os crimes dos deuses e a outra põe a descoberto os seus mais criminosos desejos, desejos, portanto, mais de demônios maléficos do que de deuses), mas é com filósofos que devemos discutir, com aqueles cujo nome proclama o amor da sabedoria.
     Ora se a Sabedoria é Deus por quem tudo foi feito, como o demonstraram a autoridade divina e a verdade, verdadeiro filósofo é o que ama a Deus. Mas porque a própria coisa assim chamada não existe em todos os que se gabam deste nome (realmente nem todo aquele que se diz filósofo é por isso amigo da verdadeira sabedoria).”
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     “Cedam estas duas teologias — a fabulosa e a civil — aos filósofos platônicos que reconhecem o verdadeiro Deus como autor das coisas, fonte luminosa da verdade, dispensador da felicidade eterna. Cedam ainda a tão grandes pensadores que chegaram a conhecer um Deus tão grande, esses outros filósofos cujo pensamento, escravo do corpo, não admite para a natureza senão origens corpóreas: a água, segundo Tales; o ar, segundo Anaxímenes; o fogo, segundo os estoicos; segundo Epicuro, os átomos, isto é, corpúsculos, pequeníssimos, indivisíveis e imperceptíveis; e tantos outros que não vale a pena citar, para quem os corpos, simples ou compostos, inanimados ou vivos mas, todavia, corpos, são causas e princípios das coisas. Realmente, alguns deles, tais como os epicuristas, acreditaram que as coisas vivas podiam ser produzidas por coisas não vivas; outros pensaram que é do vivo que provêm os vivos e os não vivos, mas que todo o corpo provém de outro corpo. Quanto aos estoicos, consideraram o fogo, um dos quatro elementos que constituem o mundo visível, como dotado de vida e de sabedoria e consideraram-no como tendo fabricado o Mundo, de maneira que, segundo eles, era realmente um deus.
     Estes e outros que tais não conseguiram elevar o seu pensamento acima dos fantasmas que os seus corações, submetidos aos sentidos carnais, imaginaram. Realmente, tinham dentro de si o que não viam e imaginavam que viam fora de si o que não viam, embora, na realidade, não o vissem, mas apenas o imaginassem. E isto, realmente, à vista do pensamento, já não é corpo: é antes a imagem do corpo. E a faculdade que vê na alma a imagem dum corpo não é nem esse corpo nem a imagem desse corpo: e ela que vê e julga se essa imagem é bela ou disforme, é, sem a menor dúvida, melhor do que a imagem julgada. Esta faculdade é a inteligência do homem, a natureza da alma racional que, sem dúvida, não é um corpo, pois que esta imagem do corpo quando é percebida e apreciada no ato do pensamento, já não é ela mesma um corpo. Ela não é, portanto, nem terra, nem água, nem ar, nem fogo; não é nenhum destes quatro corpos chamados os quatro elementos de que vemos ser composto o mundo corpóreo. Ora se a nossa alma não é um corpo, como é que será um corpo Deus criador da alma?
     Que estes filósofos cedam, portanto, aos platônicos. Cedam-lhes também os que se envergonharam de dizer que Deus é um corpo, mas nem por isso deixam de pretender que as nossas almas são de natureza idêntica à d’Ele. Não se sentem chocados com a mobilidade tão grande da alma, que não se poderá atribuir, sem incorrer em impiedade, à natureza de Deus. Dirão: é pelo corpo que a natureza da alma esta sujeita a mudanças; por si mesma ela é imutável. Poderiam dizer também: é pelo corpo que a alma é ferida porque esta por si mesma é invulnerável. Na verdade, o que não esta sujeito a mudança, nada o pode mudar; por isso é que o que pode mudar por intermédio do corpo, alguma coisa o pode mudar e, então, já não pode em rigor chamar-se imutável.”
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Pensamento de Platão acerca da chamada filosofia física.
     Estes filósofos que, pela sua fama e glória, vemos colocados merecidamente acima dos demais, compreenderam que Deus não é corpo e por isso é que, na busca de Deus, transcenderam todos os corpos. Compreenderam que em Deus Soberano nada é mutável, e por isso é que, na procura de Deus Soberano, transcenderam toda a alma e todo o espírito mutável. Compreenderam, além disso, que em todo o ser que muda, toda a forma que o faz ser o que é, qualquer que seja a sua natureza e os seus modos, não pode ela própria existir senão por Aquele que é verdadeiramente porque é imutavelmente. E daí que, quer seja o corpo do Mundo inteiro, a sua estrutura, as suas propriedades, o seu movimento regular, os seus elementos escalonados do Céu à Terra e todos os corpos que ele encerra;
     quer seja toda a vida: a que sustenta e mantém o ser, como nas árvores; a que, além disso, possui sensibilidade, como nos animais; a que acrescenta a tudo isto a inteligência, como nos homens; ou a que, sem necessidade de mantimentos, se mantém, goza de sentimentos e de inteligência, como nos anjos,
     não pode manter o seu ser senão d’Aquele que simplesmente é. Para Ele, efetivamente, ser não é uma coisa e viver outra, como se pudesse ser sem viver; para Ele viver não é uma coisa e compreender outra, como se pudesse viver sem inteligência; para Ele compreender não é uma coisa e ser feliz outra, como se pudesse ter inteligência sem a beatitude. Mas para Ele viver, compreender, ser feliz, tudo isso para Ele é ser.
     Devido a esta imutabilidade e a esta simplicidade, os platônicos compreenderam que Deus fez todos os seres e por nenhum pôde ser feito. Realmente observaram que tudo o que existe é corpo ou vida, que a vida é coisa superior ao corpo, que a forma do corpo é sensível e a da vida é inteligível. Puseram, portanto, a forma inteligível acima da forma sensível. Ora nós chamamos sensível ao que pode ser percebido pela vista e pelo tato do corpo; inteligível ao que pode ser captado pelo olhar do espírito. Não há efetivamente beleza corpórea quer na estrutura do corpo, nos seus traços por exemplo, quer num movimento, como é o canto, que não tenha o espírito por juiz. Mas este espírito não poderia ser juiz, se nele não houvesse essa beleza mais perfeita, sem o volume da massa, sem o ruído da voz, sem a extensão do lugar e do tempo. Quanto ao próprio espírito, se, também ele, não fosse mutável, um não seria melhor do que outro ao ajuizar acerca da beleza sensível: nem o mais vivaz, o mais esperto, o mais exercitado ajuizaria melhor do que o mais lento, o menos esperto, o menos exercitado — e até o próprio espírito, embora uno, ao evoluir ajuíza melhor depois do que antes de se desenvolver. Não há dúvida de que é mutável o que é capaz de mais e de menos. Daí facilmente concluírem homens engenhosos, doutos e experientes nestas matérias, que a primeira forma não se encontra nos seres em que ela se evidencia mutável. A seus olhos o corpo e a alma aparecem com mais ou menos forma, de maneira que se lhes chegasse a faltar toda a forma, deixariam totalmente de ser. Viram, pois, que existe um ser no qual reside a primeira forma, imutável e, consequentemente, incomparável; julgaram muito justamente que é aí que se encontra o princípio das coisas, o qual não poderá ter sido feito e pelo qual tudo terá sido feito.
     Assim, é o próprio Deus que lhes desvenda o que de Deus pode ser conhecido, quando a inteligência deles perscruta, através das Escrituras, as suas perfeições invisí­veis, o seu eterno poder e a sua divindade (Rom. I, 19-20) — Ele por quem todos os seres, mesmo os visíveis e temporais, foram criados. Fica exposto assim o que se refere à parte chamada física, isto é, a natural.
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     “Segundo Platão, o bem supremo consiste em viver conforme a virtude — o que só pode ser alcançado por quem tem o conhecimento de Deus e procura imitá-lo: não há outra causa que possa torná-lo feliz. Também não hesita em dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se segue que o desejoso de sabedoria (que o mesmo é que dizer: o filósofo) só se torna feliz quando começa a gozar de Deus. Certamente que se não é feliz pelo simples fato de que se goza do que se ama, (muitos de fato são infelizes por amarem o que não deviam amar e mais infelizes ainda por dele gozarem). Todavia ninguém é feliz se não goza do que ama. Mesmo aqueles que amam o que não deve ser amado não se julgam felizes por amarem, mas por gozarem. Portanto, quem goza daquele que ama e ama o verdadeiro e supremo bem — quem senão o mais desgraçado negará que esse é feliz? A esse verdadeiro e supremo bem dá Platão o nome de Deus. Por isso é que diz que filósofo é o que ama a Deus; e porque a filosofia tende para a vida feliz, é gozando de Deus que quem o ama é feliz.”
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     “Realmente, a respeito do único e verdadeiro Deus construtor do mundo, muitas coisas Hermes Trismegisto diz que correspondem à verdade; e não compreendo como é que tal cegueira do coração o leva a afirmar que os homens estão sujeitos aos deuses que (é ele que o confessa) pelos homens foram feitos, e a deplorar a supressão futura desta sujeição — como se houvesse alguma coisa mais deplorável para o homem do que ser dominado pelas suas próprias ficções. Porque a verdade é que é mais fácil a um homem deixar de ser homem, adorando como deuses as obras das suas mãos, do que às suas obras tornarem-se deuses pelo culto que um homem lhes presta. Realmente, a um homem de tão elevada dignidade, se não é inteligente é mais fácil descer à categoria dos brutos do que a obra do homem ser preferida à obra de Deus feita à sua semelhança, isto é, ao próprio homem. É precisamente por isso que o homem se afasta daquele que o fez quando acima dele coloca o que ele próprio fez."


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A Cidade de Deus - Livros VI a VIII  -  Santo Agostinho
Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições: J. Dias Pereira
Páginas: 270  -  Seleção de Doney  -  AQUI

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