quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
REPÚDIO À AUSTERIDADE
Je suis grec, mais...
Por Antonio Delfim Netto
A experiência grega é arriscada, mas fascinante. É um exemplo vivo de que só o jogo continuado entre a urna e o mercado é capaz, por caminhos raramente lineares, de colocar a sociedade na vereda civilizatória.
Vereda, porque a estrada virtuosa é estreita e pedregosa. Segui-la exige uma liderança forte, confiável, inteligente e com sorte. O voluntarismo desinformado que às vezes emerge das urnas nunca leva a ela. A tragédia é que as consequências sempre chegam tarde e, nos casos mais agudos, podem levar à interrupção do jogo, pois a graça eleitoral tem limite...
Honestamente, alguém pode pedir a um cidadão que depois de cinco anos de austeridade, sem ver qualquer sinal de esperança, tenha a paciência e a crença religiosa de prosseguir com a duvidosa solução "científica" que lhe foi imposta, no fundo, bem no fundo, pelo poderoso sistema financeiro internacional para proteger seus interesses? Não, porque a austeridade sem esperança briga com a democracia!
A experiência grega é arriscada, mas fascinante
Cansado de tomar o remédio amargo e de aceitar humilhado a reprimenda moralista que "ele comeu demais e agora é hora de descomer" o cidadão grego, em legítima defesa, decidiu-se por uma mudança radical. Felizmente, na minha opinião, ela talvez terá menos voluntarismo do que aparenta à primeira vista.
Alexis Tsipras e seu partido, o Syriza, receberam, através do sufrágio universal, a responsabilidade de devolver aos gregos a sua dignidade, minorar o seu sofrimento e reerguer a sua economia. Depois de 1.800 dias de angústia e desespero, de aceitar o maior socorro financeiro que se conhece (para pagar aos credores), de expiar os graves pecados que seus governos cometeram até 2009, os gregos resolveram jogar tudo para o alto.
Quando ficou óbvio que a trágica "receita" da "troika" (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) não funcionou, e que ele já não tem mais nada a perder, entregou-se ao seja lá o que um ateu quiser...
O PIB grego hoje, é 1/3 menor do que era antes da crise. A sociedade se desagrega diante do desemprego involuntário renitente, que atinge um em cada quatro de seus cidadãos dispostos a trabalhar. E, pior, assiste à destruição da sua geração mais jovem, metade da qual não vê nenhum futuro.
Diante desses fatos cruéis, a redução do déficit fiscal e a inversão do déficit em conta corrente, resultados da tal "receita" foi irrelevante, porque, por falta de crescimento (e, portanto, do emprego), a dívida pública que era de 130% do PIB em 2008, ronda hoje a 180%.
Isso tornou possível a Tsipras mostrar aos gregos que quem a "receita" da troika salvou mesmo, foram os banqueiros credores. Que ela é produto do uso de uma "falsa" ciência e que ele é o portador da "verdadeira", que vai salvá-los.
O novo governo, com o apoio de radicais nacionalistas de direita, assumiu quebrando a louça. Anunciou no seu primeiro dia algumas medidas emergenciais: vai rediscutir a "receita", suspendeu as privatizações (que ajudariam a pagar os credores internos e externos), anunciou um aumento de 30% no salário mínimo e a revisão da dispensa de funcionários públicos. Acendeu a luz vermelha em Bruxelas e em Frankfurt, que vai exigir mais capital para seus bancos.
Tenho dúvidas se o desgravatado Tsipras tem clara consciência da confusão em que se meteu e se será capaz de controlar o seu sucesso político e conformar-se com as limitações do seu voluntarismo na economia. A minha esperança é o seu importante ministro das Finanças, o conhecido economista Yanis Varoufakis, que tem um amplo domínio do "mainstream" e do keynesianismo, além de um bom olho no marxismo, o que lhe dá os nítidos limites do exercício da política social e econômica que terá de discutir com a troika.
Ele sabe que não há saída sem dor e que a solução do problema grego (como o brasileiro), está menos no numerador (controle do crescimento da dívida) e mais no denominador (o aumento do crescimento do PIB e do emprego), o que exige confiança e competitividade. Para entender como pensa Yanis Varoufakis, nada melhor do que ler o seu "Foundations of Economics - A Beginner´s Companion", 1998.
Sou tentado - talvez ingenuamente - a acreditar que o "barulho" inicial foi um movimento da autoridade grega para colocar melhor as peças no xadrez que terá de jogar contra a troika. Aliás, Varoufakis é um especialista em teoria dos jogos.
Os dois contendores têm muito a perder (3/4 dos cidadãos gregos querem continuar na zona do euro). Por um lado, o experimento grego pode estimular cidadãos de outros países a imitá-lo. Por outro, o seu colapso poderá deixá-la sozinha, moralmente ainda mais enfraquecida e destinada a trilhar por muito tempo nas sombras do subdesenvolvimento.
É evidente que existe uma margem de compromisso possível entre os desejos da troika e as necessidades dos gregos. A dose de blefe e de realismo nesse jogo que Tsipras e Varoufakis utilizarão será decisiva para encontrá-la, porque os parceiros não aceitarão a chantagem crua.
Nos meus curtos 87 anos, já vi, sem aviso prévio, muito leão virar gato depois de rugir algum tempo assustando apenas a si mesmo e com os bolsos vazios... (Fonte: aqui).
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