domingo, 11 de setembro de 2022

SEGREDOS DO PUTUMAYO - DIÁRIO PERTURBADOR, FILME EXTRAORDINÁRIO

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Documentário deslumbrante esbarra em condições de divulgação pouco propícias, que muitas vezes condena filmes do gênero ao fracasso de bilheteria


Por Eduardo Escorel - (Revista Piauí)

Meu deslumbramento diante de Segredos do Putumayo (2020), de Aurélio Michiles, é justificado. Tem início no prólogo com as magníficas imagens restauradas provindas de Voyage au Congo (100’, 1927), filme de estreia de Marc Allégret (1900-73). A filmagem em película de nitrato foi feita a partir de 1925 durante a viagem de onze meses do então estreante cineasta francês, acompanhando André Gide (1869-1951) pelas colônias da África Equatorial Francesa e do Congo Belga.

As fascinantes cenas usadas na abertura de Segredos do Putumayo são de construções de argila em forma de obuses que chegam a oito metros de altura. Formam o magnífico conjunto arquitetônico de uma vila dos Massa, na margem do Logone, rio que em parte do seu percurso forma a fronteira do Chade com Camarões. Ao amanhecer, moradores retiram esteiras usadas durante a noite como portas das habitações e três homens pegam milho-miúdo com uma gamela no celeiro.

A seguir, em alguns dos planos, o grupo de adultos e jovens Kotokos acaba de rolar um imenso hipopótamo para fora da água do rio; a jovem Barga olha para a câmera e sorri após desencavar uma imensa mandioca; os muros de pedra da vila dos Kotokos protegem os moradores do calor; a mulher Sara derrama água colhida no poço sobre uma menina e um grupo se banha no rio; na dança de nativas e nativos Dapkas, europeus paramentados participam do coro; dois grupos de Saras, formados por homens e mulheres, parecem disputar uma bola gigante (cena que a legenda original de Voyage au Congo identifica como “o ‘push-ball’”) – acabam levantando uma nuvem de poeira e a cena termina em fade-out.

Essa sequência tem duração de apenas dois minutos e a próxima, feita com fotografias, após a legenda “Congo 1900”, começa com fade-in da missionária britânica Alice Harris (1870-1970) rodeada por dezenas de crianças congolesas. Após essa imagem, o ritmo da montagem se altera de modo brusco. Closes rápidos de colonizadores e nativos se sucedem, todos olhando diretamente para a câmera. Um deles segura uma mão decepada entre os dedos e o desassossego que Segredos do Putumayo causa se instaura, rompendo a atmosfera idílica da bela sequência de abertura. Perturbação que, durante os 83 minutos do filme, aumenta cada vez mais, a partir das imagens seguintes – outras mãos decepadas, crianças e adolescentes mutilados, sem a mão, o pé, por vezes sem as duas mãos, e homens acorrentados pelo pescoço. São fotografias feitas por missionários católicos, Harris inclusive, e entregues a Edmund Morel (1873-1924), jornalista e político britânico. Foram divulgadas na campanha que Morel fez contra a escravidão no Congo, através da sua própria revista, West African Mail, fundada em 1903.

O prólogo termina com legendas informativas que apresentam o irlandês Roger Casement (1864-1916), funcionário britânico na África por vinte anos. Transferido para o Brasil como cônsul, em 1906, foi encarregado de investigar, a partir de 1910, as condições de trabalho da Peruvian Amazon Company que operava na região do Rio Putumayo, tributário do Amazonas. A empresa, formada com capital britânico, extraía e comercializava o látex usado na produção de borracha. “Viajando pelos rios do Putumayo, [Casement] documentou suas experiências em um diário perturbador”, assinala a última legenda do prólogo que tem a duração de quatro minutos ao todo. Nesse breve tempo é apresentada uma síntese perfeita da tensão entre beleza e horror que paira sobre a missão na Amazônia, verdadeiro cerne do documentário que começa em Belém quando Casement intervém pela primeira vez em off através da voz do ator irlandês Stephen Rea, casting perfeito para conduzir a narrativa perturbadora.

                                      (Roger Casement)

Fotografias de Belém retomam por um momento a vertente de 
Segredos do Putumayo dedicada à beleza. Vemos ruas, edifícios, jardins, o “mar verde de mangueiras” e o “esplêndido teatro, em geral fechado”, sinal de que há algo errado. Mas nem a crise da borracha impede “todos de parecerem alegres”, levando uma “vida elegante, usando diamantes e plumas na sala de jantar do hotel”, Casement comenta. Ele faz também um breve histórico do boom da borracha que ligou os pequenos enclaves produtivos, por meio de linhas diretas de navegação, aos centros comerciais dos Estados Unidos e da Europa. Acompanhado por trechos de No País das Amazonas (1922), de Silvino Santos, assinala ainda que a economia industrial da região é “totalmente dependente da economia extrativista da borracha”. Observação que conclui dizendo: “Sabe Deus como isso vai acabar” – mais um sinal de possíveis transtornos no horizonte.

Em 8 de agosto de 1910, Casement anuncia estar a caminho do Peru pelo Rio Amazonas, uns 4800 km rio acima, no sentido Oeste: “Estarei na floresta durante três, quatro, talvez seis meses e não suponho que receberei cartas por muitos meses porque estou indo embora por todo o tempo dos postos civilizados. A formação do país até as encostas dos Andes é inimaginável.” Há reflexos da luz do sol na água ondulante que passa em fusão para uma vista aérea das árvores que formam a extensa floresta até surgir a imensidão do rio.

Faltou mencionar acima contribuições decisivas às sequências descritas e a todo o documentário dadas pela trilha musical de Alvise Migotto, o som ambiente de Miriam Biderman e Ricardo Reis, sem esquecer a excepcional fotografia em preto e branco de André Lorenz Michiles que ganha destaque cada vez maior à medida que Casement avança rumo ao Putumayo.

Os sete minutos e meio do prólogo e da sequência que precede a partida de Belém são alicerces introdutórios firmes sobre os quais Segredos do Putumayo repousa e é edificado com notável solidez. Graças a essa base o documentário pode seguir diversas vertentes complementares ao diário de Casement, incluindo depoimentos, entre os quais o do historiador e professor Angus Mitchell sobre a origem da palavra Brasil que seria irlandesa: “No folclore irlandês, na memória irlandesa antiga, há uma ilha mítica chamada Hy-Brazil que era usada para encorajar os marinheiros a embarcarem em navios rumo ao Oeste, Atlântico adentro. E o nome Brasil era usado, primeiro porque o som da palavra é lindo, mas também por manter esse sentido de uma ilha mítica de eterna juventude onde todos sorriam e eram felizes.

O desconhecimento geral no Brasil a respeito do tema, somado à abrangência de Segredos do Putumayo, talvez responda, ao menos em parte, pelo fato de o documentário de Miquiles não ter recebido de imediato o reconhecimento merecido ao estrear em setembro de 2020 no 25­º Festival É Tudo Verdade. Recebeu Menção Honrosa, é verdade, mas essa láurea mais parece um prêmio de consolação dado por um júri incapaz de justificar de maneira convincente sua escolha de Melhor Filme. Sem desmerecer os outros competidores, a superioridade de Segredos do Putumayo era notória, não havendo termo possível de comparação com os demais. Comentei o filme aqui, pela primeira vez, em 7 de outubro de 2020.

Passados dois anos, Segredos do Putumayo finalmente estreou quinta-feira, 1/9, em dez cidades, incluindo São Paulo com uma sessão por dia em três salas, além de Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, Manaus etc. A amplitude nacional do lançamento, conforme vem ocorrendo com outras produções brasileiras recentes, tem se mostrado ilusória. Sem campanha prévia capaz de tornar o filme mais conhecido e tendo uma sessão por dia em uma sala, é difícil despertar interesse pelo que está sendo oferecido. Época e condições como as atuais, pouco propícias para lançar documentários, de modo geral os têm condenado por antecipação a fracassar na bilheteria.


Acompanhando a estreia do filme vem de ser lançado 
Segredos do Putumayo – O Diário da Amazônia de Roger Casementlivro organizado por Mariana Bolfarine e Laura P.Z. Izarra (São Paulo: Colmeia, 2022). Os textos reunidos ampliam o conhecimento sobre o filme, inclusive de aspectos que Michiles não aborda. Sem ter podido ler ainda todas as contribuições, destaco as de Angus Mitchell, que editou o Diário da Amazônia de Roger Casement, publicado pela Edusp em 2016 (a edição original de The Amazon Journal pela The Lilliput Press é de 1998). Mitchell assina “Desconstruindo hierarquias coloniais, O boom da borracha no Amazonas (onde descolonização e arte se encontram)” e termina sua entrevista dada a Aurélio Michiles em 2019 fazendo a seguinte avaliação: “Casement continua a assombrar, apodrecer, perturbar. Ele continua a reaparecer e a ressurgir, e isso é profundamente desestabilizador e cativante. Foi fascinante observar a maneira pela qual o governo irlandês lidou com Casement em 2016, durante o centenário do Levante da Páscoa e de sua execução em Londres… Na Inglaterra nada aconteceu em 2016… Após quase um século falando incessantemente sobre Casement e os diários por meio de livros publicados, reportagens de imprensa, intervenções parlamentares, filmes e peças de rádio, houve um repentino silêncio.” (...).  -  (Aqui).

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