domingo, 3 de julho de 2022

DE HUMANI CORPORIS SHOW

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A história do estabanado professor de Manaus que caiu na espetaculosa indústria de corpos humanos transformados em esculturas


Por Angélica Santa Cruz

Não é fácil achar uma vaga para estacionar na frente da agência dos Correios do Le Bon Marché, uma pequena galeria comercial de Manaus. Na tarde de 21 de outubro de 2021, no entanto, o professor de anatomia Helder Bindá Pimenta deu sorte e encontrou um lugar bem diante da porta. Parou o seu Hyundai HB20 prateado e desceu carregando uma caixa de papelão sob o braço direito. Tinha a barba aparada, vestia uma camiseta preta e andava de modo casual, tranquilão. Foi direto para o guichê, declarou que o embrulho continha “material de silicone” e despachou pela remessa internacional. Saiu da agência, deu ré no carro e foi embora. Dois dias depois dessa cena banal, o pacote foi levado até um galpão a 4 km dali, onde fica o Centro de Tratamento de Cartas e Encomendas dos Correios (CTCE) – um ponto de distribuição de todas as mercadorias que entram e saem de Manaus. Em uma triagem de rotina, no dia seguinte, a caixa de papelão passou pelo raio X. E foi aí que a sorte do professor Bindá Pimenta começou a virar. Na tela do monitor apareceram quatro figuras com áreas pintadas de laranja e verde, as cores que sinalizam material orgânico. Um dos materiais parecia uma mão humana e as formas dos dedos eram bem perceptíveis. Os outros três tinham contornos circulares e estavam ligados a cordões espessos. Lembravam placentas.

Por acaso, investigadores da Polícia Federal faziam naquele momento uma diligência de rotina no CTCE e foram avisados pelo operador do raio X que ali estava uma caixa com um conteúdo estranhíssimo. Como era domingo, os agentes federais pediram para o funcionário dos Correios tirar o material do fluxo regular de remessas internacionais e, no dia seguinte, levá-lo à sede da Polícia Federal. Assim foi feito. Por causa do sigilo de correspondência garantido por lei, os plantonistas da PF só poderiam abrir o pacote diante do remetente ou com autorização judicial. Então, telefonaram para o número de celular que Bindá Pimenta anotara no comprovante de envio postal. O professor atendeu à ligação. Garantiu que não tinha conhecimento de nenhuma encomenda enviada em seu nome e avisou que não poderia falar naquele momento, porque estava dando aula. Duas horas depois, os policiais ligaram de novo e, desta vez, intimaram o professor a ir até o prédio da polícia para prestar esclarecimentos. Bindá Pimenta confirmou que iria. “Hoje mesmo!”, disse. E não deu as caras – nem atendeu nenhum dos sete telefonemas da PF no dia seguinte.

Com autorização da Justiça, o material foi enviado, então, para uma perícia. Um mês depois, o laudo atestou: “Trata-se de uma mão e três placentas, oriundas de ser humano.” E completou: “Passaram por algum processo de conservação, […] sem aspecto de decomposição ou putrefação.” A mão e as placentas, de fato, estavam com uma textura de plástico e cheiravam a nada. Com os tendões expostos e as pontas dos dedos enegrecidas e voltadas para dentro, a mão lembrava aquelas que saem subitamente de túmulos em filmes de terror. As placentas, marrons, estavam envoltas em cordões umbilicais de tamanhos diferentes. Pareciam brinquedos de Halloween.

A polícia então foi atrás de Bindá Pimenta, que deixara uma coleção quase risível de pistas. Na ficha de despacho da mercadoria nos Correios, o professor colocou o número verdadeiro de seu celular. No endereço, indicou o local da Escola Superior de Ciências da Saúde da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), onde é de fato professor-assistente e coordenador do Laboratório de Anatomia Humana e Plastinação, um método de conservação de cadáveres. No campo da assinatura, escreveu “Helder”, com sua caligrafia arredondada. Peritos ainda se deram ao trabalho de cotejar com a grafia padrão do professor, usada em documentos oficiais. Concluíram no laudo que o “Helder” do remetente era o mesmo “Helder” dos documentos oficiais. Mais do que isso: os policiais compararam fotografias do professor encontradas na internet com as imagens do circuito interno de tevê da pequena agência dos Correios, que o filmou desde o instante em que ele estacionou o carro bem na frente da porta. Era a mesma pessoa – tudo semelhante, “formato do nariz, cobertura capilar e formato da sobrancelha” e, para eliminar qualquer dúvida, um “elemento individualizador importante, que é uma verruga na lateral do nariz”.

Naquele mesmo dia em que deu um perdido nos plantonistas da PF, o professor correu para eliminar de suas redes sociais todos os rastros que poderiam associá-lo ao conteúdo da caixa com órgãos humanos e, especificamente, à técnica da plastinação. Excluiu de sua conta pessoal no Instagram qualquer referência ao método de conservação de cadáveres. Limou seu nome do perfil do Laboratório de Anatomia da universidade, o @plastinaçãouea, e de outro, que atualizava de vez em quando, chamado @anato.gram. As providências chegaram tarde demais. Os investigadores haviam tirado cópias das telas de todas essas contas.

Com um jeitão mezzo órgão humano mezzo objeto de silicone, a mão e as três placentas deixaram os policiais admirados. “Ninguém aqui tinha visto antes um negócio desses. Percebemos que obviamente eram peças plastinadas, pelo ramo de atuação do professor. Mas não sabíamos ainda como esse material se comportava e se, por exemplo, o órgão conservado poderia, no destino, passar por algum procedimento capaz de fazê-lo voltar a ter uma funcionalidade no corpo humano”, diz Eder Spinola Rocha, o delegado da Superintendência Regional de Polícia Federal no Amazonas responsável pela Operação Plastina, como foi batizada a investigação. Por cautela, a PF resolveu pedir a prisão temporária de Bindá Pimenta sob suspeita de tráfico internacional de órgãos. O Ministério Público Federal achou que não havia indícios suficientes para caracterizar esse crime e mudou a tipificação para contrabando, por suspeita de comercialização de material proibido. Pediu uma busca e apreensão na casa de Bindá Pimenta e outra no departamento de anatomia da UEA, para recolher mais evidências. A juíza federal encarregada do caso concordou e determinou também o afastamento do professor de suas funções públicas, por trinta dias, e sem prejuízo de seus vencimentos. No dia 22 de fevereiro deste ano, quatro meses depois que a caixa de papelão foi interceptada, naquele cabuloso horário das batidas da Polícia Federal – seis da manhã –, agentes vestindo coletes pretos baixaram nos dois endereços. 

departamento de anatomia da UEA é composto por um corredor com duas salas principais. A maior delas tem quatro macas de dissecação, pias distribuídas em uma grande bancada de alumínio e paredes cobertas do chão ao teto com azulejos brancos – onde Bindá Pimenta costumava fazer projeções durante as aulas que ministrava para alunos dos cursos de medicina, enfermagem e odontologia, que vestiam jalecos e sentavam em banquetas. Na outra sala, bem menor, fica uma mesa e uma estante com manequins anatômicos que mostram partes do corpo humano. Não é um lugar para quem tem casca fina. De vez em quando, é possível ver bacias retangulares cheias de órgãos humanos boiando em formol, em vias de preparação para serem mostrados aos estudantes. Na busca e apreensão, os policiais levaram um computador, duas peças plastinadas – próstata e parte pélvica – e dois comprovantes de postagem internacional. Um deles tinha data de 14 de abril de 2021 e número de rastreio: 07779772 8 BR. Era endereçado para a mesma pessoa que receberia o pacote com a mão e as três placentas: um designer indonésio chamado Arnold Putra.

No apartamento do professor, em um condomínio com dois prédios no bairro de Nossa Senhora das Graças, os policiais a princípio não encontraram nada que pudesse ter relação com o caso. Até que procuraram dentro da mochila do investigado. Acharam um feto e um rim, ambos plastinados. O feto era maleável, como uma espátula de silicone. “Meio, assim… fofo, sabe?”, descreve o delegado Spinola Rocha. O rim era horrendo, tostado. Intimado para uma oitiva na sede da Polícia Federal, Bindá Pimenta colaborou. Entregou seu celular para perícia técnica, franqueou a senha de suas redes sociais e disse aos policiais que já havia enviado três encomendas para o indonésio Arnold Putra: em duas remessas, mandou quatro fetos de aproximadamente vinte semanas e, na terceira, um pulmão de cachorro – cujo código de rastreamento batia com o 07779772 8 BR encontrado pela polícia. Os fetos voaram dos céus de Manaus até Cingapura, mas o pulmão de cachorro ficou encalhado em um galpão da alfândega em Manaus porque os fiscais desconfiaram do conteúdo da caixa ao vê-la no raio X, mas não acharam que era caso de pedir uma investigação com urgência. Aos investigadores, o professor disse que recebeu 300 dólares por cada encomenda enviada, pagos pelo designer indonésio via PayPal.

A Operação Plastina deixou Manaus em ebulição por pouquíssimo tempo. No mesmo dia da busca e apreensão, a UEA afastou o professor por trinta dias e formou uma comissão de sindicância para apurar o caso. Dois dias depois, os corredores da instituição já eram dominados por outro assunto: uma renhida eleição para reitor. Procurada pela piauí, a universidade afirmou que não vai falar sobre o assunto até a conclusão das investigações e enviou uma nota informando que concluiu um processo administrativo disciplinar e enviou à Secretaria de Estado de Administração e Gestão do Amazonas (Sead) com a recomendação de que ele seja punido com a demissão. A Polícia Federal aguarda o resultado de uma perícia no celular e nas contas bancárias de Bindá Pimenta para concluir as investigações. Mas já descarta qualquer crime muito aterrador. “Ele não é um traficante que sequestra pessoas, mata, arranca os órgãos e manda para fora, para que sejam utilizados em quem está necessitando. É um professor comum, educado, tranquilo que, não sabemos ainda por qual interesse, acabou envolvido nisso aí. Provavelmente, achou que não ia dar em nada. Por ver esses órgãos plastinados todo dia, acaba lidando com aquilo como um objeto comum…”, avalia o delegado Spinola Rocha.

Em seu depoimento, o professor contou que uma das placentas que plastinou e tentou mandar para Cingapura fora doada por sua cunhada. A polícia não perguntou, nem ele esclareceu, de onde veio o pulmão de cachorro. Os outros órgãos e fetos faziam parte da coleção do departamento de anatomia da UEA. Além do problema óbvio de ter subtraído partes de um acervo que pertence a uma universidade pública, o professor agora deve colocar o Ministério Público Federal e a Justiça do Amazonas diante da questão legal, e mesmo ética, que acompanha a técnica da plastinação desde que foi inventada: afinal, quais são os limites na comercialização de pedaços de humanos transformados em esculturas de plástico?

Ninguém elevou a exposição do corpo humano morto em tantas ordens de magnitude quanto o alemão Gunther von Hagens, o criador da plastinação. Aos 77 anos, com seus traços miúdos, pequenos olhos azuis e um sorriso cheio de dentes, típico de quem tem lábios muitos finos, Von Hagens está sempre com um chapéu fedora preto, que começou a usar para cobrir a calvície, mas, com o passar dos anos, virou também uma homenagem aos anatomistas do Renascimento, como o holandês Nicolaes Tulp (1593-1674), imortalizado por Rembrandt no quadro A Lição de Anatomia. No auge da controvérsia criada pelo uso que fez de sua invenção, Von Hagens foi chamado pela imprensa internacional de Doutor Morte e Doutor Frankenstein e comparado àqueles personagens soturnos do expressionismo enfumaçado do cineasta Fritz Lang. Hoje, espiando com o distanciamento do tempo, Von Hagens evoca mesmo é uma das caricaturas dos filmes de Tim Burton. E tem uma história e tanto.

Nasceu em 1945 em Alt-Skalden, uma cidade polonesa que fazia parte da antiga Alemanha Oriental e agora se chama Skalmierzyce. Cresceu em Greiz, na região alemã da Turíngia. Recebeu diagnóstico de hemofilia e, quando tinha uns 6 anos, passou sete meses internado em um hospital, onde entreouvia os médicos conversando sobre suas chances de sobrevivência. Gostava de observar órgãos de animais. Aos 10 anos, tentou dissecar um novilho natimorto na fazenda de um tio, mas só obteve autorização para analisar o coração do bicho – o que fez com bastante cuidado. Em 1965, começou a estudar medicina em Jena, ainda na então Alemanha Oriental, e virou um ativista estudantil. Em 1969, tentou fugir para a Alemanha Ocidental e foi preso. Um ano depois, entrou em uma leva de prisioneiros políticos comprados pela Alemanha Ocidental e conseguiu concluir sua formação, agora na cidade de Lübeck. Acabou indo parar na Universidade de Heidelberg, onde fez doutorado e passou a trabalhar como professor no Instituto de Anatomia e Biologia Celular e no de Patologia.

Ali, o médico teve uma ideia simples, genial – e meio doida. Em meados dos anos 1970, observando uma daquelas lâminas em que os tecidos humanos são preservados, Von Hagens pensou: “Em vez de colocar o silicone em volta do tecido, porque não o colocar dentro do próprio tecido?” Começou a fazer testes até que, em janeiro de 1977, conseguiu injetar silicone em um rim de maneira perfeita. Batizou sua técnica de plastinação, escreveu um artigo imediatamente publicado para a análise dos pares e patenteou a ideia. No ano seguinte, ainda na Universidade de Heidelberg, abriu a Biodur Products, empresa que vende equipamentos de plastinação para instituições de ensino. Aos poucos, a técnica foi se espalhando entre anatomistas de universidades, porque resolve o problema recorrente da falta de cadáveres – que devem ser doados por outras instituições – e da necessidade de conservá-los em soluções fétidas de formol. Mas, aferrado à tese de que poderia deixar uma contribuição revolucionária para o chamado edutainment (o entretenimento educativo), o alemão resolveu expandir o alcance de seu método.

Em 1989, mostrou algumas de suas peças em uma escola em Heidelberg e ficou surpreso com as filas formadas por leigos interessados em espiar o corpo humano por dentro. No ano seguinte, conseguiu plastinar o primeiro cadáver inteiro. Da cabeça aos pés. Preservou outros e decidiu mostrá-los para o grande público. No caminho, colheu admiração, repulsa e dores de cabeça. Em 1993, fundou o Instituto de Plastinação, uma entidade de gestão privada. Quatro anos depois, saiu da Universidade de Heidelberg e abriu imensos laboratórios de plastinação de corpos em lugares como Dalian, no nordeste da China, e Bishkek, no Quirguistão, uma ex-república soviética. Neles, processou cadáveres de vários estágios da jornada humana – de embriões a idosos. Todos destinados a exposições que correram por 120 cidades da África, Ásia, Europa e Estados Unidos, às vezes simultaneamente, e foram vistas por mais de 50 milhões pessoas. Nunca expôs na América Latina.

O método inventado por Von Hagens troca os líquidos do corpo humano por um polímero capaz de conservá-lo. Normalmente, usa-se silicone, mas pode-se utilizar também poliéster ou resina epóxi. É um rito industrial que transforma um morto em uma escultura e acontece em seis etapas. O primeiro passo é a técnica convencional de embalsamamento, que interrompe a decomposição do cadáver injetando formol no sistema arterial. Em quatro horas, as bactérias são dizimadas e o corpo fica pronto para a segunda fase, a da dissecção anatômica. Nela, a pele e o tecido adiposo subcutâneo são removidos. Com a ajuda de pinças, bisturis e tesouras, o tecido que envolve órgãos, músculos, tendões, nervos e vasos é também retirado, tudo com o máximo de cuidado. Uma dissecção impecável, que exige extraordinários conhecimentos de anatomia, pode levar de 500 a mil horas. Finalizada essa fase, começa a plastinação propriamente dita.

Para extrair a água que compõe 70% do corpo, o cadáver é mergulhado em um banho gelado de solvente, como a acetona. Depois, é aquecido aos poucos até chegar à temperatura ambiente, uma medida que também remove as gorduras solúveis que ficam entranhadas nos tecidos. Essa etapa pode levar entre três e quatro meses. No quarto passo, o cadáver é colocado em uma câmara a vácuo, preenchida com o silicone. A acetona evapora e vai sendo substituída pelo silicone – que começa a ferver e invade todas as células do corpo. O processo dura entre 2 e 5 semanas. Na quinta etapa, o cadáver sem pele, agora flexível por ter sido tomado pelo silicone, fica maleável e pode ser colocado em diferentes poses ou simular movimentos – o que é feito com a ajuda de fios manejados com agulhas ou pinças e blocos de espuma. Dependendo da complexidade da escultura a ser feita com os restos mortais, essa fase pode levar meses. Na sexta e última etapa, o cadáver, na pose desejada pelo escultor, é colocado em uma câmara hermética – uma tenda de plástico construída à sua volta – para ser endurecido com gás, luz ou calor. E, enfim, o corpo humano é transformado em um objeto asséptico, rígido ao toque, incorruptível. É um aperfeiçoamento, em níveis sem precedentes de precisão e durabilidade, de métodos do século XVIII, como o usado pelo anatomista francês Honoré Fragonard, que, acredita-se, empregava cera misturada com terebintina em suas preservações.

Von Hagens plastinou como um endiabrado. Consolidada sua técnica, deu um jeito de colocar pigmentos especiais nos músculos dos cadáveres e deixá-los coloridos e ainda mais escultóricos. Descobriu também como fatiar os corpos em lascas finas e translúcidas, ou em cortes diagonais. Com uma perícia de outro mundo, cristalizou pessoas mortas, sempre sem pele, de modo a exibir a posição exata que seus órgãos teriam se tivessem sido congelados em vida durante um movimento específico. Esculpiu defuntos na posição de quem corre, pula, toca instrumentos, dança, joga basquete, anda de skate, lança dardos ou joga pôquer em volta de uma mesa – em uma referência ao filme 007 – Cassino Royale, da série James Bond.

O médico-escultor atingiu níveis artísticos de precisão. Em alguns casos, puxou tecidos musculares dos cadáveres para criar efeitos específicos – e os preservou sorrindo, fazendo caretas, passando a língua sobre os lábios. Cada plastinação é feita de modo a chamar a atenção para o funcionamento ou a complexidade de algum aspecto do corpo humano. Para mostrar o sistema vascular e os músculos, o alemão plastinou dois homens nas mesmas posições desenhadas pelo flamengo Andreas Vesalius (1514-64), o pai da anatomia moderna, no livro De Humani Corporis Fabrica (Da estrutura do corpo humano), publicado em 1543. Esculpiu uma pessoa segurando a própria pele, também plastinada, exatamente como numa ilustração feita pelo anatomista castelhano Juan Valverde de Amusco (c. 1525-c. 1587) no compêndio A História da Composição do Corpo Humano, de 1560. Preservou um cadáver inspirado na escultura O Pensador, de Auguste Rodin (1840-1917) – desta vez para demostrar a complexa estrutura da espinha dorsal.

Von Hagens plastinou um homem morto colocado em cima de um cavalo morto, uma homenagem à peça anatômica mais famosa do francês Fragonard, mas com detalhes quase extranaturais de anatomia comparativa – observando os dois, salta aos olhos como o cérebro humano é grande e o do animal, pequeno; ou como os músculos do homem são diminutos e delicados e os do cavalo, imensos e fortes. Mostrou o cadáver de uma gestante com o ventre cortado ao meio, exibindo o feto de oito meses – uma imagem tão impactante que o bebê plastinado foi roubado por duas mulheres com problemas mentais, quando exibido pela primeira vez, em 2005, em Los Angeles. Esculpiu um corpo masculino e um feminino colocados na posição de uma relação sexual. A mulher morta, com botas pretas e unhas pintadas. O homem, sentado em uma cadeira e segurando a parceira post mortem pelos quadris.

Interessado em mostrar a anatomia do coito de mais um ângulo, Von Hagens plastinou outro casal morto. Dessa vez, o corpo da mulher foi eternizado sentado de costas sobre o parceiro. A plastinação desse casal, que não se conheceu em vida e morreu na casa dos 50 anos, consumiu mais de 4 mil horas de trabalho. Os dois foram convertidos em silicone com as bocas abertas, em uma simulação de orgasmo. Em 2009, durante uma exposição em Augsburgo, na Alemanha, o prefeito mandou cobrir essa escultura humana. O médico se recusou – e optou por serrar o casal ao meio. Em algumas cidades da Europa, as exposições provocaram protestos por parte da Igreja Católica. A cada vez que os casais em cópula eram criticados, Von Hagens argumentava: “Eles não têm nada a ver com pornografia, não se prestam a estimular ninguém sexualmente. E ensinam os visitantes mais do que qualquer aula de biologia.”

Von Hagens esculpiu o corpo do seu melhor amigo, vítima de um tumor no fígado. Atormentado por pesadelos, levou três vezes mais tempo do que o normal para dissecá-lo. Ao final, concluiu que ver uma pessoa que amava atravessar a barreira da morte, de modo tão cru, foi uma boa maneira de superar o luto. Ao todo, seu laboratório plastinou cerca de duzentas pessoas, cujas identidades jamais são reveladas, e centenas de órgãos. Em todo esse acervo, além dos pigmentos usados para colorir os músculos, só os olhos dos cadáveres são artificiais – porque a córnea humana fica totalmente opaca ao passar pelo processo e tira parte do apelo escultural das peças. Para muitos anatomistas, ao permitir que os leigos vejam em detalhes o que há no corpo, embaixo da pele, Von Hagens trouxe a primeira evolução relevante no conhecimento da anatomia humana em séculos.

O alemão espalhou suas esculturas pelo mundo, em exposições itinerantes ou permanentes. O debate sobre os limites bioéticos desse roadshow de plastinados acabou batendo à sua porta. Durante anos, as exibições provocaram reações nas autoridades em diversos países, geralmente acionadas por grupos religiosos revoltados com a profanação do corpo humano em troca de interesses financeiros. Em 2008, a cidade de Seattle e o estado do Havaí, nos Estados Unidos, baniram essas mostras. Em 2010, a Suprema Corte da França declarou ilegal a exibição comercial de restos humanos e proibiu eventos do gênero no país. Dois anos depois, a Suprema Corte de Israel tomou decisão semelhante. No geral, as proibições saíam quando as mostras estavam acabando, prontas para ir para outro lugar, e já tinham sido vistas por milhares de espectadores fascinados. Entre as crianças, o sucesso era imenso.

Encantado com a própria invenção, Von Hagens rebatia as críticas com argumentos vigorosos. Afirmava que suas mostras exibiam apenas corpos de pessoas que se inscreveram no programa de doações que ele próprio lançou ainda no início dos anos 1980 – e hoje conta com 19 416 inscritos que cederam seus restos mortais para a educação do público. Destes, 2 481 já morreram. Insistia que a missão de sua empresa era mostrar para leigos o potencial e os limites do corpo e, sobretudo, contribuir para o debate sobre o sentido da vida. Von Hagens é ateu. Acredita que cadáveres conservados podem ajudar a mostrar que, afinal de contas, somos todos matéria. Mas reforça que, mesmo para os que creem em alguma transcendência, essas esculturas fúnebres podem apontar para a evidência de que a vida precisa ser vivida em sua plenitude, aqui e agora. Uma mistura, digamos assim, entre memento mori e carpe diem.

Sua lista de problemas era imensa. Na Alemanha, Von Hagens foi investigado por evasão fiscal e pela suspeita de que, no laboratório da China, estava usando corpos de prisioneiros políticos executados. Acabou absolvido de todas as acusações. Mas apareceu a concorrência. Outros grupos, principalmente chineses, copiaram rapidamente a sua técnica e começaram a fazer exposições rivais – que viraram uma febre mundial. Uma das mostras organizadas por empresas criadas na cola do alemão, a Corpo Humano: Real e Fascinante, passou pelo Brasil em 2007. Foi organizada por um anatomista norte-americano aposentado e a empresa Premier Exhibitions. O fornecedor dos corpos era o médico Hong-Jin Sui, ex-gerente do laboratório criado por Von Hagens em Dalian. Indignado, o alemão acusou o chinês de ter criado às escondidas sua própria operação de plastinação, enquanto trabalhava para ele e aprendia o que podia. Em 2006, já havia outras dez fábricas de corpos plastinados, apenas na China – e dezoito exposições que reproduziam sua ideia.

Apesar das cópias chinesas em seus calcanhares, ele reafirmou sua cruzada para “democratizar a anatomia” e construiu uma animada fábrica de plastinação. Lançou livros, vídeos e bichinhos de pelúcia que exibem órgãos internos. Hoje sua empresa mantém um site que vende produtos plastinados para estudos acadêmicos. Em 2006, fechou seus laboratórios em outros países e abriu um único, imenso, em uma fábrica abandonada em Guben, na Alemanha, bem na fronteira com a Polônia. Ali, funciona também o Plastinarium, um espaço com uma exibição permanente de corpos plastinados. Assim que entram no prédio, os visitantes espiam cinquenta técnicos dissecando órgãos em mesas de alumínio e manejando instrumentos com zelo de ourives. Com um só ingresso, que custa 12 euros, o público pode ver corpos humanos e, em outra frente aberta nos últimos anos pelo cientista, a ala de animais plastinados.

Em 2010, Von Hagens anunciou que havia sido diagnosticado com mal de Parkinson. Foi se afastando dos holofotes e parando de dar entrevistas. Em 2018, assinou um artigo reflexivo no jornal inglês The Guardian. Relatou sua luta contra a doença – que já o impede de falar, limita seus movimentos e não o deixa tocar violino, uma de suas paixões. Explicou por que deseja ser plastinado quando morrer: “Nesta fase da minha vida e da minha doença, às vezes gostaria de poder suspender minhas convicções e abraçar a ideia de uma divindade e de uma vida após a morte. Kierkegaard disse que a religião era o grande consolo de sua vida. Mas não acho que haja um continuum além da morte. Cada corpo morto que vi me mostrou a ausência da alma. Eu acredito que nada resta de nós depois que morremos. Meus críticos alegam que violei a santidade dos mortos. Eu digo que não há violação em dar a um humano falecido uma identidade pós-mortal – e a decomposição também não é sagrada. O corpo pós-mortal é de confronto. Nos força a deixar de lado nosso repúdio inconsciente e consciente da morte. Todos nós morremos um pouco, todos os dias.”

Um de seus três filhos, Rurik von Hagens, agora gerencia o laboratório em Guben. Em entrevista à piauí, contou que seu pai já deu sugestões para a plastinação do próprio corpo. “A ideia mais recente dele é a de que gostaria de ser plastinado de corpo inteiro, usando seu chapéu preto e em pose de boas-vindas aos visitantes que entram na exposição. Mas também já expressou a vontade de ser preservado em várias fatias, para que o maior número de pessoas possa aprender com o seu corpo, em vários lugares e ao mesmo tempo. De qualquer forma, só é possível saber o melhor jeito de preservar o corpo por meio da plastinação quando o processo começa”, disse. E completou: “Mas não estamos planejando que ele seja plastinado tão cedo. Meu avô, o pai dele, tem 105 anos! E os dois são parecidos, gostam de se manter saudáveis.”

"Valeu, galerinha!”, agradeceu o professor Bindá Pimenta em tom emocionado, no vídeo gravado para um grupo de 170 alunos que se mobilizaram para ajudá-lo a virar um especialista em plastinação. Em 2016, pouco depois de assumir a coordenação do laboratório de anatomia da UEA, ele teve que lidar com a falta de cadáveres para explicar todo o engenho da máquina humana aos seus estudantes. Há tempos vinha lendo e assistindo a vídeos sobre o método criado por Gunther von Hagens. Pensou, então, em participar de um curso sobre a técnica na universidade norte-americana de Toledo, em Ohio, onde poderia ser treinado pelo brasileiro Carlos A. C. Baptista. Um dos primeiros médicos a instituir a técnica na América do Sul, quando ensinava na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Baptista é professor em Toledo desde 1987.

A UEA, porém, não tinha verbas, nem interesse especial em enviar seu coordenador do departamento de anatomia para o treinamento. Os jovens alunos de Bindá Pimenta, então, abraçaram a causa. Venderam rifas de um estetoscópio Littmann, objeto de desejo entre estudantes da área de saúde, e arrecadaram cerca de 4,5 mil reais. Foi o suficiente para pagar a inscrição de Bindá Pimenta no curso e cobrir parte dos seus custos de viagem. O professor ficou tão comovido que mandou fazer uma camiseta estampada com a lista dos nomes dos universitários que participaram do projeto. Desembarcou nos Estados Unidos com a camiseta nas mãos – e gravou o rápido e comovido agradecimento à “galerinha”.

Na Universidade de Toledo, Bindá Pimenta encontrou um departamento ultraequipado, com cerca de duzentos cadáveres frescos, embrulhados em sacos brancos e acomodados em enormes estantes refrigeradas. Em Manaus, a UEA mantém uma média de oito cadáveres em estoque, quase todos sedimentados – como os anatomistas se referem ao enrijecimento dos corpos de pessoas mortas há bastante tempo. O professor ficou encantado com o curso que fez com mais trinta pessoas, entre elas docentes da USP e das universidades federais de Brasília (UnB), Espírito Santo (Ufes), Bahia (UFBA) e Rio Grande do Sul (UFRGS).

A primeira peça que Bindá Pimenta conseguiu plastinar foi um pequeno pedaço do sistema nervoso, fatiado fino como um carpaccio e depois acomodado entre duas lâminas transparentes. Vestindo uma bata cirúrgica amarela, posou para fotos segurando sua primeira obra, com um sorriso de ponta a ponta. Quando voltou a Manaus, louco para corresponder à expectativa dos alunos que o ajudaram na missão de ter peças do corpo humano conservadas e manipuláveis para as aulas de anatomia, logo se deparou com a realidade brasileira. Para fazer a plastinação em seu laboratório, precisaria de uma bomba a vácuo, uma válvula, um manômetro e uma câmara para colocar peças não muito grandes – como um antebraço. A conta desse kit básico, vendido pela Biodur Products, a empresa de Gunther von Hagens, ficaria em uns 3,5 mil dólares. Sem chances.

Bindá Pimenta improvisou um sistema próprio, com materiais que foi achando na universidade. No laboratório de bioquímica, encontrou um dissecador – uma espécie de pote que lembra uma bomboneira de vidro. Tomou emprestada uma bomba a vácuo com um colega do departamento de farmácia. E, para substituir as válvulas e conexões entre a câmara e a bomba, montou uma gambiarra com uma mangueira de fogão e um manômetro. “O sistema inteiro custou 185 reais!”, contava, nas projeções que fazia em aulas e em apresentações online.

A versão tropicalizada do kit básico passou por seu primeiro teste plastinando um rim. O resultado foi pavoroso, uma evocação das quimeras gestadas nos laboratórios dos cientistas malucos da ficção. O órgão acabou murcho, tostado como carvão. O professor precisou aguentar a chacota de outros docentes. Até que acordou no meio de uma madrugada, quando percebeu que esquecera de cumprir um detalhe de uma das etapas do processo. Guardou o rim chamuscado como lembrança de que o sucesso vem do que se aprende com os fracassos – foi essa peça que a Polícia Federal encontraria depois em sua mochila. Tentou de novo. Na segunda plastinação solo, escolheu um feto de aproximadamente doze semanas. Dessa vez, deu certo. O feto, cujo tamanho não passa de um quarto da palma da mão, rodou entre alunos, encantados com o resultado. Bindá Pimenta trocou informações com professores de anatomia de outras universidades públicas e soube que o silicone nacional, muito mais barato, dava conta do recado. A partir daí, começou a plastinar com fervor – mas sem o conhecimento profundo de anatomia, sem a perícia, sem a imaginação e, principalmente, sem os recursos do médico alemão.

Aos poucos, o departamento de anatomia da UEA foi ganhando um pequeno acervo de órgãos plastinados. A coleção virou a principal atração da Feira de Anatomia Humana, evento anual organizado na universidade para levantar recursos para o laboratório. Na mais recente, em 2019, alunos de Bindá Pimenta mostraram animadamente pernas, braços e pedaços de órgãos humanos aos visitantes, em sua maioria estudantes do ensino médio. Com ingressos que custavam 10 reais, a feira arrecadou 15 mil reais e contou com a cobertura da imprensa local. “Para quem gosta de anatomia, é uma grande oportunidade, porque a gente tem aqui um grande acervo de peças naturais, plastinadas e feitas com impressora 3D. Na feira, a gente realiza dissecação ao vivo também”, explicou Bindá Pimenta, em uma entrevista para a televisão.

Cada vez mais arrebatado pelo tema, o brasileiro começou a falar sobre o assunto em palestras para alunos de outras faculdades. Queria mostrar que, quando se quer muito, é possível driblar a escassez de recursos das instituições de ensino. No mundo inteiro, há cerca de quatrocentas instituições com laboratórios de plastinação, pelas contas da Biodur Products, que fornece materiais para todas elas. No Brasil, são pelo menos doze – e alguns dos professores que se dedicam ao método formam uma espécie de comunidade virtual, que troca experiências e organiza pequenos seminários. Bindá Pimenta passou a participar desse movimento. Abriu um canal no YouTube e contas nas redes sociais, que depois seriam monitoradas pela Operação Plastina. Por isso, atraiu a atenção do designer Arnold Putra.

Em meados de 2020, em plena pandemia, o indonésio começou a conversar com o professor brasileiro em mensagens privadas enviadas pela função Direct do Instagram. No começo de 2021, o brasileiro despachou seu primeiro pacote para o endereço fornecido pelo estilista, o edifício 6 do Ardmore Park, um complexo de arranha-céus no District 10, uma região que fica no alto de uma colina nas proximidades do Jardim Botânico de Cingapura. Na versão que contou à polícia, Bindá Pimenta disse que Putra se identificou como um estudante de biomedicina interessado em saber o resultado da plastinação feita com poucos recursos em Manaus – por isso, pediu para ver algumas amostras. Entre os investigadores da Operação Plastina, a história não colou.

Há cinco anos, Putra começou a aparecer na imprensa asiática como um extravagante jovem estilista, dono de uma marca de roupas de couro. Em 2017, a Tatler Indonesia, uma das oito versões asiáticas da revista inglesa de estilo de vida, incluiu-o na lista dos maiores colecionadores de carros do país. Justificou a escolha de modo eloquente: “Seu estilo consistente e sua afinidade com os luxos da vida o tornaram uma verdadeira celebridade online. Destacando-se em meio à prodigalidade, estão seus carros. Arnold tem tudo. O Bentley azul-bebê, o Rolls-Royce rosa e o Range Rover chocolate aveludado compõem uma coleção exclusiva, completada com um McLaren P1, supercarro que vai de 0 a 100 km/h em apenas 2,8 segundos.”

Dois anos depois, Putra foi apontado pela mesma publicação como integrante do “Top 5 dos Ícones de Estilo da Ásia”. E, em 2020, foi selecionado para estampar uma edição especial da revista sobre os 116 jovens “mais poderosos, influentes e estilosos da Ásia que, juntos, estão fazendo um mundo mais bonito, generoso, criativo e sustentável”. Putra está na fotografia de uma das quatro capas. Veste calça preta de couro salpicada com ilhoses e jaqueta com o colarinho aberto de modo a deixar entrever uma tatuagem no lado esquerdo do peito. O texto trouxe um epítome do personagem: “Arnold Putra se descreve como um designer de moda, mas está rapidamente se tornando muito mais do que isso. Sua conta no Instagram é repleta de fotos em que ele aparece, em diferentes locais, usando roupas excêntricas que refletem uma personalidade ousada e provocativa. Em um post na Etiópia, usa uma roupa branca e uma enorme cruz, cercado por sacerdotes ortodoxos e peregrinos durante o Festival de Meskel [celebração que comemora a exumação da cruz de Cristo]. Em outro post, aparece com sadhus [nome dado aos ascetas hinduístas] na Índia, durante um evento sagrado no Rio Ganges. E, em outro, ele sai com motoristas do Grab [um aplicativo de entregas popular no Sudeste Asiático], vestindo uma jaqueta de entrega em contraste com um par de botas Balenciaga.”

Há quatro anos, o indonésio foi perfilado pelo site inglês Highsnobiety como parte de uma série chamada #GramGen – dedicada a retratar “os personagens mais radicais da cultura jovem, que criam tendências e geram controvérsias pelo senso de moda de vanguarda e pela personalidade genuína nas redes sociais”. Na entrevista, Putra declarou que nasceu e cresceu em Jacarta, capital da Indonésia, e depois se mudou para Los Angeles, onde fez faculdade – ele estudou na Universidade Loyola Marymount, uma instituição de ensino católica. E revelou que, como atividade principal, era dono de uma corretora de investimentos.

A julgar por sua hipereditada conta no Instagram, Putra se movimenta em um mundo rutilante. Saboreia pratos finalizados com trufas do tamanho de rochas lunares, dispostas em grandes lascas que guardam certa semelhança com o naco de sistema nervoso da primeira plastinação de Bindá Pimenta. Aparece fumando charutos cubanos refestelado em uma chaise longue no The Marq On Paterson Hill, condomínio de luxo em Cingapura. Usa peças assinadas por casas de alta costura, posando em cenários kitsch inspirados na estética de fenômenos pop como o game Crash Bandicoot ou como o dangdut, um gênero de música popular indonésia. Prepara viagens formatadas para fazer bonito no Instagram com dois anos de antecedência. Os destinos, de preferência, devem ser aldeias remotas com rituais fúnebres, onde ele possa acentuar o contraste com seus looks urbanos, caros e coloridos. Os apetrechos que usa para compor as fotos precisam vir de lugares que ele entende como “exóticos”.

Em 2016, Putra postou uma foto diante de uma pirâmide estilizada. Vestia uma jaqueta com tufos brancos aplicados nos ombros que, segundo explicou, eram “pelos de urso polar” e segurava delicadamente uma bolsa “feita com língua de jacaré e alças de coluna humana com osteoporose”. O post passou batido até que, em 2020, viralizou. Acossado por críticas que ficaram entre os assuntos mais comentados no Twitter, Putra afirmou que a coluna vertebral – que pertencera a uma criança que sofria da doença que degenera os ossos – fora comprada de uma empresa canadense certificada. Avisou que aquilo era apenas arte, do tipo que incomoda. No começo desse ano, durante a Semana de Moda de Paris, o indonésio foi mais longe. Combinou um colete da grife Balenciaga com um uniforme da Pemuda Pancasila (PP), organização paramilitar de extrema direita que, entre outubro de 1965 e março de 1966, ajudou a expurgar milhares de simpatizantes do comunismo na Indonésia. A aparição do designer vestindo a farda da milícia envolvida em um genocídio – em fotos ao lado de celebridades como o estilista californiano Rick Owens e o rapper Kanye West – provocou o previsível toró de reações. Mas o presidente da ala jovem do Pemuda Pancasila, Aulia Arief, ficou deliciado. Soltou um comunicado agradecendo a publicidade inesperada e convidando o designer a conhecer o grupo. “Vestindo o nosso uniforme, Arnold trouxe a ideologia Pancasila para o mundo”, comemorou. 

arte é, em larga medida, feita de morte. Em grandes obras, as últimas consequências são exibidas, lamentadas, confrontadas. O universo artístico também é pródigo em retratar o grande final em detalhes literais – de todas aquelas pinturas de crucificados da Idade Média ao quadro Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo (1843-1905). Nesse caldo, artistas provocadores abrem polêmicas e testam limites. Em 1991, o inglês Damien Hirst posou para a fotografia em preto e branco With Dead Read, em que aparece sorridente ao lado da cabeça decepada de um homem. Em 2007, voltou à carga com a obra For The Love of God, um crânio, cravejado de diamantes, de alguém que viveu no século XVIII. Em 2008, o artista alemão Gregor Schneider construiu uma instalação chamada End – uma espécie de cômodo preto, sem a quarta parede – e anunciou que procurava um paciente terminal para morrer nela, diante do público, em uma exposição sobre a beleza da morte. A sugestão provocou tanta indignação que ele desistiu. De vez em quando, algumas dessas cirandas em torno da morte viram casos de polícia. Um dos mais notórios é o do artista britânico Anthony-Noel Kelly. Em 1998, ele foi considerado culpado por comprar na surdina partes de corpos humanos, vendidas por um funcionário da Faculdade Real de Cirurgiões da Inglaterra, e usá-las como moldes de esculturas exibidas na London Art Fair, um evento anual de arte contemporânea. Foi condenado a nove meses de prisão, por contrabando.

a linha do tempo da moda, o uso de elementos fúnebres também aparece em vários pontos. “Existe um certo fascínio, ao longo dos séculos e em diversos momentos, por lidar com essa questão do invencível, que é a morte”, conta João Braga, professor de história da moda, da arte e da joalheria e membro da Academia Brasileira de Moda. Às vezes, usam-se só representações. No período do Renascimento, apareceram joias em ouro e marfim em formato de pequenas caveiras e caixões – símbolos usados ali como lembrete de que o plano terreno é transitório. Outras vezes, restos mortais preservados entraram na jogada. Na Belle Époque, a taxidermia virou tendência e as mulheres usavam acessórios feitos com pássaros empalhados. “Só nos Estados Unidos, foram mortos pelo menos 5 milhões de aves para fazer chapéus”, diz Braga. Na cena contemporânea, os teóricos apontam a cultura gótica dos anos 1970, que disseminou uma atitude introspectiva, com os macambúzios cultos a cemitérios e o uso do preto como linguagem – embora no gótico raiz que inspirou essa tendência, o da Baixa Idade Média, as roupas fossem coloridas, lembra Braga. E, nos anos 1980, inúmeros estilistas passaram a usar padronagens de caveiras. A princípio, elas eram uma reflexão em torno da ameaça da Aids. Depois, foram incorporadas pelas ruas, como mais uma estampa.

Seria preciso uma notável boa vontade para encaixar a extravagância de Arnold Putra em uma manifestação cultural ampla. O mais plausível é enquadrá-lo em outra cultura, a de tentar se destacar na imensa nuvem de sussurros das redes sociais. Quando o episódio da encomenda interceptada em Manaus veio à tona, o chefe da Divisão de Relações Públicas da Polícia Nacional da Indonésia, o general Dedi Prasetyo, disse em uma entrevista em Jacarta que pediria mais informações sobre o caso às autoridades brasileiras. Até o momento, o escritório da Interpol no Brasil não recebeu a consulta.

Putra não respondeu ao pedido de entrevista da piauí. Na única vez que se pronunciou sobre o assunto, por meio de uma nota enviada por seu advogado para o site asiático Coconuts, não fez referência às encomendas despachadas em seu nome pelo professor de Manaus. Mas reclamou, em termos gerais: “Além de uma espinha e algumas costelas para fazer aquela bolsa e uma outra peça de roupa, nunca usei ou possuí órgãos humanos para criar itens de moda ou obras de arte. É lamentável que o desejo de incentivar percepções negativas ou ‘controversas’ da minha obra esteja direcionando a opinião de um público que deveria ser livre para decidir e não apenas ser persuadido a condenar o artista.” O indonésio não é o primeiro estilista a ter atração por peças humanas plastinadas. Em 2011, o armênio Eduard Howhannisjan promoveu um desfile em que modelos esqueléticas, com maquiagem de caveira, andavam por entre cadáveres conservados diante de cem convidados no Postbahnhof, um espaço para eventos em Berlim. O cenário do desfile foi uma das exposições de Gunther von Hagens.

Bindá Pimenta tem 37 anos, é casado e pertence a uma família muito ativa na Igreja Adventista do Sétimo Dia, denominação evangélica que segue doutrinas como a do “estado inconsciente dos mortos” – a crença de que a alma morre junto com o corpo. Quando entraram em seu apartamento em fevereiro, os agentes federais ficaram espantados com a quantidade de panfletos, livros e cadernos com material de divulgação da denominação cristã. O professor estudou a vida inteira em escolas mantidas pela congregação e se formou em fisioterapia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Depois fez mestrado em ciências biomédicas na Universidade Federal do Piauí (UFPI) e é agora doutorando em ciências morfofuncionais na Universidade Federal do Ceará (UFC).

Além dos trinta dias em que ficou afastado do trabalho por decisão judicial, Bindá Pimenta amargou outros trinta de suspensão, a pedido da comissão de sindicância formada pela UEA. Passado esse castigo, no início de maio, voltou às atividades acadêmicas. Agora, o pedido de demissão feito pela instituição será analisado pelo governador do Amazonas, como determina o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do estado – mas o governador deve esperar a conclusão das investigações feitas pela Polícia Federal antes de acatá-lo. Enquanto isso, o professor recebe seu salário integralmente. Ganhou até uma promoção automática, prevista no plano de carreira da universidade.

No retorno ao trabalho, o professor se queixou com outros docentes por ter aparecido nos programas policiais como traficante de órgãos. Mas garantiu que está tranquilo. Entre os colegas, é considerado um sujeito simpático e comprometido, do tipo que não parece ter grandes esqueletos no armário – embora já tenha sido flagrado por um raio X antes. Em 2017, voltando de Miami, desembarcou do voo 995 da American Airlines no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Quando sua bagagem foi escaneada, o monitor acusou oito aparelhos eletrônicos dentro dela. Um auditor da Receita Federal abriu a mala. Não encontrou as mercadorias e perguntou onde estavam. Bindá Pimenta negou que estivesse levando os produtos. O fiscal resolveu esvaziar e revirar a mala – até que topou com as traquitanas escondidas debaixo do forro. Como teria deixado de pagar 9.817,59 reais em impostos, acabou acusado de crime de contrabando. O processo durou apenas quatro meses. O Ministério Público Federal de São Paulo considerou que o valor sonegado não justificaria a mobilização do aparato judicial para julgá-lo. Também argumentou que de acordo com a lei da época, que dispunha sobre crimes de ordem tributária, econômica e relações de consumo, as execuções de débitos fiscais inferiores a 10 mil reais deveriam ser arquivadas. E foi o que aconteceu. Bindá Pimenta escapou por pouco. Agora, espera se safar de novo de seu pequeno delito.  -  (Fonte: Revista Piauí, edição de jun/22 - Aqui).

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