terça-feira, 1 de maio de 2018

SOBRE SEMELHANÇAS E SILÊNCIOS (OU OS PENSADORES E O TEMPO)


Sobre semelhanças e silêncios

Por Fernando Horta

Uma das capacidades mais impressionantes da História é atentar para os silêncios, as faltas e as supressões. Muita gente acha que apenas o que é encontrado, descrito ou mencionado faz parte da História, mas a verdade é que historiadores com alguma experiência e prática atentam para o que não deveria estar ali, o que está faltando e mesmo o que está diferente. Este método comparativo pelo seu inverso é muito útil e foi descortinado primeiramente pelo positivismo. Quando se fala em positivismo perto de um historiador mais novo ele tem náuseas e passa a declamar textos de como o positivismo é inútil e foi um projeto politicamente engajado do século XIX. É verdade, mas toda a metodologia do uso de fontes (ou quase toda), tem o dedo dos positivistas. A chamada “crítica interna e externa do documento” é desenvolvida por esta escola de pensamento e, até hoje, se mantém.
Ao se deparar com uma imagem do Cristo crucificado, por exemplo, um historiador pode dizer com quase certeza em que momento ela foi produzida simplesmente verificando se há ou não sangue retratado na figura. Ora, é impossível que a crucificação não tenha produzido sangue, mas durante o trecento e o quatrocento (séculos XIV e XV) a percepção histórica dominante era de que a natureza divina de Cristo deveria ser enfatizada. Sangue, portanto, era muito humano. Os Cristos desta época são invariavelmente brancos, limpos, cravejados de lanças, feridas, flechas, coroas e sempre com um semblante de paz. Sempre transmitindo serenidade, não importa se lanças lhe perfurem o corpo ou espinhos o rosto, a figura exala uma superioridade não terrena. Quando vemos um Cristo ensanguentado, com expressão desfigurada pela dor, sujo, escuro, em posição não ereta, temos que esta figura foi produzida durante o cinquecento (XVI), sob a influência do protestantismo.
E neste momento você está tentado a fechar o texto e deixar de ler porque ou não é historiador ou não tem interesse numa discussão de arte renascentista. Mas, mais importante, não entende o que esta discussão tem a ver com os problemas que enfrentamos hoje no Brasil.
Pois, deixe-me colocar a discussão no nosso momento político e dar um sentido a ela.
Nunca lhe passou pela cabeça perguntar por que, afinal, os grandes intelectuais que escudam o surgimento desta neodireita digital são obscuros economistas e filósofos do final do século XIX e início do XX?
Nas discussões de todo o século XX sempre se falou de Maquiavel, Adam Smith, Ricardo, Montesquieu, Rousseau, Marx, mas ... ninguém falava em Mises, Hayek e Ayn Rand, por exemplo. Eles ressurgem exatamente agora, do nada. Por quê?
Não é sem razão que isto aconteceu. Todos são figuras de terceiro escalão, no mínimo, da história da ciência. Suas contribuições foram há muito desacreditadas e colocadas de lado. O movimento de recolocar estas figuras no centro do debate não é natural, não é fruto de “reavaliações” ou “revisitas” ao pensamento destas pessoas. É resultado de um intenso financiamento. E, pela mesma técnica do sangue nas imagens de Cristo, podemos dizer que quem patrocinou estes intelectuais em seus tempos originais são as mesmas pessoas que voltam a se utilizar deles, em pleno século XXI.
Hayek é um economista conservador-reacionário que recebeu um prêmio Nobel em 1974 por seus trabalhos econômicos que são, majoritariamente, escritos durante a segunda guerra ou logo após ela. Um vácuo de quase 30 anos. Ainda, Hayek divide o seu prêmio Nobel com o sueco Gunnar Myrdal, que tinha ideias completamente opostas às de Hayek. No meio da guerra fria, com a imensa crise capitalista da década de 70, a ascensão das críticas ao “sistema”, os responsáveis pelo Nobel decidiram dar um novo caminho ao pensamento do mundo apontando Myrdal. O capitalismo financeiro mundial exigiu um nome conservador. Hayek foi retirado do seu ostracismo científico. Era parte da conservadora “Escola de Chicago” e, nascido na Áustria, havia trabalhado com Mises, o que lhe conferia um pedigree conservador respeitável. Hayek escreveu um livro chamado “Road to Serfdom” (“O caminho para a servidão”) que foi publicado com dinheiro do governo americano e distribuído em todas as partes do mundo no início da Guerra Fria. Com argumentos rasos e uma visão política distorcida, o livro foi usado como fomentador do medo ao “coletivismo” na América, e um dos grandes responsáveis pelo extermínio dos sindicatos e outras associações de trabalhadores na época. Era constantemente citado nas investigações do McCarthismo para atacar os depoentes. É deste livro que sai a famigerada ideia do “nazismo de esquerda”, que 99% dos jovens reacionários de hoje repetem sem nunca terem lido o livro.
Ludwig von Mises foi um economista do século XIX que devotou imensa energia no ataque ao marxismo. Toda a história de Mises tem ligação com os regimes fascistas europeus. Em suas principais obras pode-se ver críticas a todas as “ditaduras de esquerda” e duas citações a Franco ou Salazar. Mises afirmava que o fascismo era a salvação da propriedade privada e preferível em momentos em que a “democracia liberal” estivesse em perigo. As posturas políticas de Mises e Hayek contaminavam totalmente seus estudos econômicos e, exatamente por isto, eles foram abandonados no início da década de 60. Friedman, um neoliberal da Escola de Chicago, afirmava que a Escola Austríaca (de Mises e, em alguma medida Hayek) não era científica, não trabalhavam com dados, não se atinham à realidade. Daí, não seriam merecedoras de crédito, ainda que ele pudesse concordar com algumas de suas ideias.
Ayn Rand é uma russa emigrada para os EUA, fugindo do socialismo. Seu nome real é Alisa Zinov'yevna Rosenbaum. Típico padrão usado como propaganda pela política externa norte-americana, no início da Guerra Fria. Rand não é considerada pela imensa maioria da academia uma “filósofa”, muito em função péssima forma com que trata suas argumentações. Alguns a consideram uma “escritora”, mas ainda com imensas ressalvas a sua produção. De novo, os livros de Rand foram publicados com dinheiro do contribuinte americano e distribuídos em escolas e pelo mundo afora, fazendo parecer que Rand era um consenso que nunca foi. As obras de Rand, Hayek e Mieses fizeram parte de um esforço da política externa dos EUA, entre 45 e 60, para se opor à produção crítica que aflorava no mundo todo. Especialmente as produções dos socialistas franceses e ingleses eram vistas como um perigo ao mundo ocidental e a Guerra Fria transformou falhos e desconhecidos pensadores em “heróis da liberdade”.
Mais adiante, no final da década de 60 e início de 70 surgiriam os nomes de Foucault e Bourdieu, por exemplo. Arqueologia do Poder é de 1969 e Vigiar e Punir de 1975. A discussão era completamente trazida em outros termos. Em micro-poderes, formas de resistência e espaços de reprodução. A esquerda se modernizava com a Escola de Frankfurt e trazia toda uma nova forma de discutir os micro-espaços, as linguagens, memória e pertencimento e toda a sorte de assuntos que dialogavam com o mundo da época. Hayek, Mises, Rand, Rothbard e outros eram pomposamente colocados no lixo, eis que seus temas (ordem, natureza humana, leis, liberdade, individualismo e etc.) se viam inconsistentes ante ao passo atrás dado pelos anos 70. Não se tratava mais de discutir a “natureza humana” e sim entender como se forma cada indivíduo em suas próprias concepções e identidades. Não era mais possível uma discussão sobre “liberdade”, uma vez que esta nunca de fato existiu e era sempre submetida às condições históricas e psicológicas de cada um. Assim como o evolucionismo marxista sofria nas mãos de Adorno, Horkheimer e Habermas, esta direita obtusa e antiga perecia sob os novos temas filosóficos e históricos dos que se negavam a jogar o jogo político da Guerra Fria.
Por que, então, estes superados teóricos voltaram à tona no século XXI?
Entre 1945 e 1960, 86% de toda a pesquisa feita nas ciências sociais, históricas ou econômicas nos EUA era financiada pelo Estado. Os números não mudaram muito de lá para cá. Muitos cientistas sociais, precisavam se adequar ao padrão do “livre pensamento” nos EUA. Muitos livros são escritos por encomenda, outros são catapultados pelo dinheiro público para moldar o pensamento de toda uma sociedade. “A revolução dos bichos”, de Orwell e o próprio “Caminho da Servidão”, de Hayek, são exemplos claros desta estratégia. Mesmo Hannah Arendt e seu “Origens do Totalitarismo” levam, hoje, a desconfiança de terem sido produtos pagos, dentro de uma lógica de guerra cultural. O conceito de “totalitarismo”, hoje totalmente desacreditado, já na década de 60 não era mais usado academicamente nos EUA, embora seguisse, por exemplo, como uma arma de propaganda política.
Como vemos, o “livre pensamento” não é tão livre assim, especialmente se ele for induzido por milhões de cópias impressas com dinheiro público ou de propaganda de grandes empresários. Assim como a moda, as ideias que ressurgem fora de seu contexto original falam muito dos interesses que por trás delas estão. Esta ideia de “liberdade” aparece no Brasil com maciços investimentos de think tanks estrangeiros e até alguns brasileiros.  Marchezan em Porto Alegre e Doria em São Paulo receberam milhares de livros de “doação” para ficarem em escolas públicas. Todos da mesma linha de pensamento. Ao mesmo tempo que gritavam contra a “dominação comunista”, apoiavam aulas de “empreendedorismo” que levaram inúmeros dos nossos jovens a trabalharem de graça e até terem prejuízo com pirâmides, amway ou herbalife. (Nota deste blog: Think tanks = instituições dedicadas a produzir e difundir seu ideário [seus conhecimentos e estratégias]).
Na Venezuela, Chavez publicava e entregava de graça para a população “Dom Quixote”, “Contos” de Machado de Assis e “100 anos de solidão”, de Gabriel García Márquez. No Irã, o aiatolá Khamenei, em 1999, afirmava que “Os miseráveis”, de Victor Hugo, era “uma das maiores demonstrações de sabedoria” e dizia que “todos deveriam ler”. É difícil, senão impossível, encontrar uma pessoa educada na antiga URSS ou mesmo na Rússia de hoje que não fale três ou quatro línguas e tenha lido os grandes clássicos da literatura universal. Cuba tem zero de analfabetismo e mais livrarias por habitante que o Brasil.
Talvez, a “liberdade” de pensamento no ocidente não seja tão livre assim e o “controle sobre a cultura” nos regimes difamados pelo mesmo ocidente não seja tão controlado.
Há uma diferença entre eu não concordar com suas ideias e eu não as conhecer. E esta é toda a diferença hoje no Brasil.  -  (Fonte: Aqui).

(Fernando Horta é historiador).

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