sábado, 12 de maio de 2018

O PAÍS DOS CANALHAS, CAPÍTULO 21

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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.
(Em tempo: Clique aqui para ler o capítulo 20).


O país dos canalhas - Capítulo 21 - John Lennon na Terra do Nunca

Por Sebastião Nunes

Acordei a cabeça explodindo. Quarto mais vermelho que o Inferno. Cama tão quente quanto o Inferno. Estômago doía que nem o Inferno. Pernas ardiam como se injetados litros de pimenta nas veias. Comecei a uivar.

Uma voz baixa cantava e uma guitarra pontuava. O vermelho esmaeceu. O calor diminuiu. As dores se atenuaram. Parei de uivar e prestei atenção.

Quem cantava era um cara de 1,80 e cabelo escorrido marrom e olhos castanhos e tipo de hippie e magro como louva-a-deus jejuando. Seus ossos chacoalhavam dentro da roupa branca e folgada. Caminhava como se levitasse. Prestei atenção na música. Ao lado dele uma japonesa-cara-de-paisagem-lunar enfeitava a paisagem-terrestre.
JÁ IMAGINOU?
O cara cantava na minha língua, ora, quem diria:
– Imagine all the people living life in peace…
“Esse cara é doido”, pensei.
Lá fora, uma metralhadora pipocou. Um cara urrou. A sirene de uma ambulância atravessou o céu azul de Brasília. A ambulância explodiu num muro. A metralhadora pipocou e pipocou e pipocou. Pedaços de gente urraram, um de cada vez e depois todos ao mesmo tempo, uns parando antes dos outros, mortinhos da silva, todos os pedaços. Então vieram muitas ambulâncias especializadas no transporte de presunto fresco.

IMAGINE NO RIO DE JANEIRO
Jogaram em cima de nós um punhadinho do pó de pirlimpimpim e num vapt-vupt cruzamos os ares e aterramos na Rocinha, bem no coração do rio-de-janeiro-que-continua-lindo-e-aquele-abraço-e-coisa-e-tal.
O cara doido continuava cantando acompanhado pela guitarra:
“Imagine there's no heaven
            It's easy if you try
            No hell below us
            Above us only sky
            Imagine all the people living for today...”
Lá fora dúzias de metralhadoras pipocaram e dezenas de vozes berraram de dor, raiva ou impotência, destroçadas pelas balas.
A polícia andava para cá e para lá e olhava e nem tchum. Caímos fora, levados pelo vento, eu e o cara doido cantador. Foi junto a japonesa-cara-de-paisagem-lunar.

IMAGINE EM SÃO PAULO
Caímos ao lado de uma fogueira imensa. Mas, já? Festa junina principinho de maio? Desandou o calendário ou desandei eu?
– Não, meu dileto amigo – informou um sujeito de terno, gravata e elegante, que se apresentou como governador. – É só uma operação de desova de pobre de prédio ocupado. Tacamos fogo, eles morrem assados e/ou caem fora, aí fazemos uma licitação superfaturada ou damos de mão beijada pra alguma construtora alevantar um edifício elegantérrimo de ene andares, a seu gosto, é claro que depois de soltar o nosso. De vez em quando fazemos isso, variando o modus operandi pra não dar na vista, sacou?
De tanto falar o coitadinho tava com a língua de fora. Governar é trabalhoso.
A polícia tomava conta para que os pobres não furtassem nada. De fato, reparei, tinha um monte de pobre sentado no chão com moleques pelados em volta.
O cara doido continuava cantando com sua guitarra:
“Imagine there's no countries
            It isn't hard to do
            Nothing to kill or die for
            And no religion too
            Imagine all the people living life in peace…”

IMAGINE NO PARANÁ
Mais uma dose de pó de pirlimpimpim, não do outro, que esse outro é exclusivo da turma do senado e da turma de congressistas e da turma de executivos e da turma do judiciário e da turma dos industriais e da turma da classe média... Cansei. Deixa pra lá.
O cara doido cantou de novo e sua guitarra soou de novo e a cara-de-paisagem-lunar-da-japonesa firme ali do lado.
“You may say I'm a dreamer
            But I'm not the only one
            I hope some day you'll join us
            And the world will be as one...”
“De fato”, pensei, “esse cara tem de ser doido varrido pra cantar uma coisa dessas logo aqui, na terra dos procuradores-generais-que-podem-tudo-e-fazem-tudo-e-mais-um-tantão-de-merda”.

DE VOLTA A BRASÍLIA
Mais pó e voltamos. Debaixo de minha janela o cara doido continuava cantando:
“Imagine all the people living life in peace…”
– Tá danado – falei pra enfermeira Maria das Graças que acabava de entrar no quarto com uma injeção de cocaína em cada mão e uma bandeja cheia de pó na cabeça.
– Tem certeza que é da pura? – indaguei ressabiado.
– Absoluta – disse ela. – É presente dos senadores pra ajudar na convalescença.
– Ah, bom – disse eu. – Aplica aí.
O cara doido continuava cantando debaixo da minha janela. A japonesa-de-cara-de-paisagem-lunar parecia uma pop star. Pirei.
(Continua.  Fonte: Aqui). 

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