sábado, 16 de dezembro de 2017

A MEDICINA DARWINIANA


A Medicina Darwiniana

Por Felipe A. P. L. Costa

Boa parte da moderna teoria evolutiva [ver aqui] é fruto do trabalho de três autores pouco conhecidos entre nós: os ingleses John Maynard Smith (1920-2004) e William D. [Donald] Hamilton (1936-2000) e o estadunidense George C. [Christopher] Williams (1926-2010). (Curiosamente, autores mais conhecidos do público, como seria o caso de Ernst Mayr [1904-2005] e Stephen Jay Gould [1941-2002], deixaram um legado menos duradouro ou de alcance mais localizado, ou sequer fizeram alguma contribuição original expressiva, como seria o caso de Richard Dawkins [nascido em 1941].)
Autor do clássico Adaptation and natural selection: A critique of some current evolutionary thought (1966), George Williams tinha particular interesse por fenômenos biológicos aparentemente maladaptativos, como a senescência [ver aqui] e a menopausa. Também escreveu sobre o comportamento cooperativo, o altruísmo e a reprodução sexuada.
Nas últimas duas décadas de sua vida, passou a se preocupar com as implicações práticas do darwinismo, notadamente na área médica. Nessa empreitada, esteve ao lado de Randolph M. Nesse (nascido em 1948), médico e pesquisador estadunidense. Os dois propuseram a criação da chamada medicina darwiniana (ou medicina evolucionista), um campo interdisciplinar cujo objetivo é entender como e por que o corpo humano é tão vulnerável a danos, especialmente a doenças.
Em 1991, eles publicaram um artigo e, logo em seguida, um livro, Why we get sick: The new science of Darwinian medicine (1993), ampliando e detalhando a proposta inicial. Juntos, publicariam ainda alguns outros trabalhos. Em todos eles, Williams e Nesse procuraram esclarecer e sedimentar a nova disciplina, chamando a atenção para os benefícios que uma exploração da interface teoria evolutiva/medicina poderia oferecer. Em várias ocasiões, alertaram para uma deficiência que julgavam ser particularmente grave: a ausência de biologia evolutiva nos currículos médicos – e nos currículos da área de saúde em geral.
Ainda segundo eles, a formação tradicional, sem qualquer contato com a teoria evolutiva, deixa os médicos inteiramente desamparados diante de questões fundamentais. Afinal, por que adoecemos? Por que envelhecemos? Por que os seres humanos são como são, e não de algum outro jeito qualquer? O que uma perspectiva evolutiva poderia nos ensinar a respeito da natureza das doenças e seus sintomas? Tal perspectiva poderia transformar a interpretação dos sintomas em algo mais preciso e seguro, notadamente no caso das doenças infecciosas? Que implicações essas melhorias teriam tanto nos procedimentos que comumente são adotados frente a tais sintomas como também em relação ao nosso estilo de vida atual? E assim por diante.
Interpretar corretamente os sintomas não é algo de todo trivial nem desprovido de consequências. Veja o caso da anemia, condição caracterizada pelo baixo nível de ferro (hemoglobina) no sangue circulante. Na chamada anemia de doença crônica, uma anemia associada a processos inflamatórios, infecciosos ou cânceres, a deficiência pode ser um mecanismo de defesa, não uma patologia.
Nas palavras de Williams (1998 [O brilho do peixe-pônei], p. 131-2; grafia original):
[p. 131-2] Até aqui, o que é bom e o que é ruim podem ser bastante óbvios, mas considere aquela infecção por [bactérias] Streptococcus. Os sintomas podem ser uma dor de cabeça, uma dor de garganta, febre, anemia e dificuldade para falar provocada por uma laringite. [...] A febre e a anemia são coisas que você está fazendo às bactérias, não o que elas estão fazendo a você. [...] O paciente que parece anêmico talvez tenha todo o ferro necessário para os processos essenciais, mas recolheu grande parte do que estaria normalmente em circulação e a guardou no fígado, onde as células de Streptococcus não a alcançam.
[p. 132] [...] [S]e um exame de sangue mostra que os seus níveis de ferro estão baixos, o seu médico pode lhe receitar um suplemento, exatamente o que o estreptococo precisa para ajudá-lo a vencer as suas defesas. A medicina não se preocupa muito com o que é adaptativo ou mal adaptativo para o paciente ou para o patógeno. Ao contrário, está obscecada por um conceito ingênuo de normalidade. Se algo a seu respeito é anormal, deve ser corrigido de modo que você fique normal.
Diagnósticos mais bem informados podem sugerir a adoção de procedimentos mais eficazes, alguns até contraintuitivos. Considere a chamada hipótese da higiene (ou dos velhos amigos), segundo a qual a exposição a parasitas (e.g., vermes) durante a infância modularia o funcionamento do sistema imune, evitando que este mais tarde venha a reagir mal, como ocorre em doenças alérgicas e autoimunes. Portadores de certas deficiências imunológicas têm sido tratados de modo experimental por meio da ingestão de ovos de parasitas. Os resultados dessa inusitada terapêutica são promissores e parecem justificar o otimismo dos estudiosos.  -  (FonteAQUI).
[Nota: adaptado d’O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017) – para detalhes, inclusive sobre a aquisição do livro por via postal, ver aqui ou aqui.]    

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