Brasil nunca mais
Por Hildegard Angel
Compartilho com vocês minha dificuldade de agora, ela paralisa e asfixia. Houve tempos em que minha inconsciente juventude permitia que eu colorisse com festas a mais feiosa das vidas. O mais cinzento dos tempos. Não sei o tipo de patologia, mas eu floria exuberâncias onde poucas flores tinham, pintava beleza onde ligeiro traço havia, enaltecia elegância havendo leves sugestões. E todos resplandeciam, e os cenários preciosos emolduravam casamentos, festas, jantares, em que todos almejavam estar, e a vida se tornava mais perfeita para os frequentadores daqueles ambientes ou os apenas leitores de minhas páginas de jornal. Eu tinha o dom.
Compulsivamente, eu maquiava o dia a dia, a night by night, fazendo tudo mais frenético do que de fato, mais e mais encantador. Recepções, bailes, coquetéis, trepidações em boates, foram incontáveis páginas de jornal cobertas com centenas, milhares de fotografias, que se desdobraram em milhares outras, de outros jornais e de outras colunas, emergindo tal e qual em todo o país, no mesmo estilo editorial, na trilha daquela minha viagem, determinada a fazer especial e mágico o mundo da elite brasileira.
Os profissionais da moda me amavam. Seus ateliês viviam agendados, a cada evento noticiado. Eu, filha de costureira, me rejubilava com isso. Os cabeleireiros, cheios. Floristas, banqueteiros, profissionais de festas, todos satisfeitos. A coluna social do sábado fazia o mundo girar, palpitar, gargalhar. Colunas da concorrência empenhavam-se em se igualar, podiam até ser melhores em tudo, porém no capítulo fazer bombar era minha a primazia.
Até mesmo no carnaval. Perguntem ao Amaral: quem fazia anualmente o Baile Borbulhantes, de carnaval, do Hippo? E ao Priolli, a quem ele delegava seu camarote principal, todos os anos, no Baile da Cidade, no Canecão? Ao Recarey, quem ocupava anualmente, com seus convidados, o maior camarote do Baile Oficial da Cidade, quando passou a ser no Scala – e acontecia um baile dentro do baile? E ao Marcio Braga, perguntem: quem inventou o Baile Vermelho e Preto – e apoiou? Ao Phillip Carruthers e à Andréa Natal, quem desde sempre apoiou o Baile do Copa, até ele se tornar um sucesso? E quando Régine Choukroun vinha de Paris promover seu baile de pré-carnaval Le Cirque Fantastique, do Canecão, era em minha casa o coquetel de convidados que o antecedia, com todas as celebridades internacionais que chegavam. Quanto fôlego!
Sem esquecer das escolas de samba. Quando, bem antes do Sambódromo, sugeri ao João Roberto Kelly, presidente da Riotur, um camarote só com os artistas, na época todos duros ou remediados, sem acesso às poucas áreas vip da assistência do desfile das escolas. Kelly providenciou um grande camarote e um ônibus. Para a concentração, o Copacabana Palace cedeu a Pérgula, água, refri, sanduíche e cafezinho. E lá nos reunimos para partir rumo ao primeiro dos camarotes dos artistas. Sucesso absoluto. Naquele tempo, eu acumulava a “Perla Sigaud” com a coluna diária de TV de O Globo – “Por dentro da TV”, na última página do Segundo Caderno, vizinhança ótima, logo abaixo das críticas televisivas do mestre Artur da Távola.
Esse 1º camarote foi épico. Esperadíssima por Grande Otelo, a Mangueira passou triste, xôxa, plumas molhadas, riscando o chão, enquanto chovia a cântaros, Otelo deprimido bebia a cântaros, chorava a cântaros e xingava a Josephine Hélène, a cântaros, também. Ittala Nandi, sem convite, xingava, lá de baixo, a nós todos e a ditadura. A ex-sra. Antonio Pitanga, Vera Manhães, linda, também passava na Sapucaí e, pelo mesmo motivo, xingava geral. E nós sob risco de irmos parar todos no Dops, com tanta xingação, já que apenas uma divisória baixinha de madeira nos separava do Ministro do Exército de Figueiredo, Walter Pires, no camarote ao lado. Foi em 1981, o ano da bomba do Riocentro.
Foram duas décadas de apoteose e vibração para o Rio de Janeiro e, em decorrência, para as demais capitais e as cidades do interior, cujas vidas em sociedade eram regidas pelo colunismo social. Eu era a Perla Sigaud, responsável pelas páginas duplas de sábado, de O Globo, uma referência forte, uma inspiração do colunismo nacional, nos dramáticos anos 70 e 80.
Mesmo nos piores cenários, a vida me inspirava projetos e possibilidades. Havia na época um hino, “Vai passar”, que a nós todos emulava ao primeiro acorde no rádio do automóvel.
Isso foi antes, bem antes de, nos anos 90, passar a me assinar com o próprio nome, no mesmo jornal, as mesmas páginas duplas semanais, depois, a página única diária do Segundo Caderno, e a coluna diária do Jornal do Brasil, e a edição semanal do Caderno H no JB. Sempre borbulhando aos borbotões.
A anunciada dificuldade que tenho a compartilhar com vocês se chama ‘nunca mais’. Nunca mais juventude, nunca mais inconsciência, inconsequência nunca mais. Nunca mais talento de colorir cor de rosa o que cinza está. De me equilibrar bailarina em fios tênues sobre o despenhadeiro escuro. De chorar com a alma e sorrir com a boca. Nunca mais cegueira para não ver a face horrenda da maldade, que agora se agiganta em máscaras disformes, projetando escuridão sobre nossas perspectivas de futuro. Nunca mais “Vai passar”.
Essa a causa de meu profundo entristecimento. O Brasil cinza chumbo de ontem retirou-nos o nosso presente, mas não subtraiu a esperança de um amanhã. O de hoje só nos oferece trevas, sem qualquer amanhecer. Brasil submetido à pena da obscuridade eterna, sob a opressão de religiosos fundamentalistas, que promulgam leis a seu critério e prazer, debaixo do jugo e do taco de falsos moralistas, investidos do papel de censores sem apreciar a arte, sequer conhecê-la, reprimido por movimentos que, de forma violenta, silenciam todos os canais de cordialidade, reflexão e diálogo.
Brasil dos sem memória, dos que desprezam a História, dos que prezam a tortura, enaltecem o estupro, humilham as diferenças. Brasil dos capas pretas, ‘cabeças pretas’, camisas pretas, gravatas pretas. Brasil da grande escuridão. - (Aqui).
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