segunda-feira, 30 de novembro de 2015
PETROBRAS: DISSECANDO REVELAÇÕES SENATORIAIS
"Pelo teor das gravações que chegaram ao conhecimento público, o senador Delcídio do Amaral (PT-MS) fez por merecer sua prisão, apesar de alguns juristas dizerem que houve precipitação na decisão. Isso porque, de acordo com a Constituição, parlamentares só podem ser presos em flagrante – pode-se até questionar se há excessos nas prerrogativas parlamentares, mas atualmente é o que está em vigor na Carta Constitucional brasileira.
Outra questão é se a prisão irá ajudar ou terá atrapalhado as investigações. Na prática, Delcídio foi preso por falar demais e sua prisão imediata acaba por silenciá-lo. Daqui em diante, o senador se limitará a só falar o que os investigadores já sabem e, pelo jeito, vem aí um novo acordo de delação premiada.
A melhor investigação recomendava monitorá-lo algum tempo antes de prendê-lo para obter provas mais conclusivas, armar o flagrante em ação controlada e, assim, pegar outros envolvidos e obter evidências de eventuais crimes ainda não elucidados ou mesmo desconhecidos.
Mas Delcídio produziu uma combinação fatal para si mesmo: falou em influir politicamente na decisão de ministros do STF e citou um banqueiro bilionário (que era André Esteves, do BTG Pactual) ter em mãos a cópia de um acordo de delação premiada do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, que deveria estar em sigilo absoluto.
Tudo isso somado certamente levou os ministros do STF citados à conclusão de que se esta gravação chegasse à imprensa antes de prendê-lo eles próprios estariam sob suspeição diante da opinião pública. Como agravante, o risco de dossiês secretos virem a ser usados com fins escusos, inclusive como informação privilegiada no mercado financeiro. Daí o imediatismo da prisão, mesmo controversa do ponto de vista constitucional.
Apesar de a prisão silenciar as conversas de bastidores de Delcídio sobre malfeitos na Petrobras, a gravação feita por Bernardo Cerveró, filho de Nestor, da reunião que teve com o advogado Edson Ribeiro, que defendia o ex-diretor, e do chefe de gabinete de Delcídio, Diogo Ferreira, contém informações suficientes para tirar da gaveta o que podemos chamar de "petrolão tucano". Tudo aponta para concluir-se que o esquema de corrupção na diretoria internacional da Petrobras após 2003 ser uma transposição vinda da diretoria de Gás e Energia na gestão de Delcídio, durante o governo tucano de FHC.
Já está claro que, com o apoio de Delcídio, Cerveró foi para a Diretoria Internacional em 2003. E levou com ele gerentes da diretoria de Gás e Energia que agora são investigados na Lava Jato e que aparecem ligados a escândalos do passado mal investigados até hoje.
Delcídio foi diretor de Gás e Energia da Petrobras entre 1999 e 2001. Nestor Cerveró foi seu braço direito na época. Eram gerentes nesta diretoria Luis Carlos Moreira da Silva e Cezar de Souza Tavares. Foram designados naquele tempo para representar a Petrobras no conselho de administração da Termorio S.A., empresa criada para construir e operar a termoelétrica Leonel Brizola, em Duque de Caxias, cujo maior fornecedor de equipamentos foi a Alstom.
Na conversa gravada, Delcídio manifestou preocupação com a possibilidade de Cerveró delatá-lo por questões relacionadas a contratos da Alstom com a Petrobras.
Apesar de fazerem parte apenas do conselho de administração da termoelétrica, posto que não tem função executiva, os dois gerentes viajaram para a Suíça junto com o presidente da Termorio em junho de 2002 para participar de negociações do contrato da Alstom, conforme descrito em ata de reunião da diretoria registrada na Junta Comercial do Rio de Janeiro. Na 20ª fase da Operação Lava Jato, os dois foram alvos de mandados de busca e apreensão por evidências de terem recebido propina na compra da Refinaria de Pasadena, nos EUA.
Luis Carlos Moreira da Silva foi levado por Cerveró para ser gerente-executivo de desenvolvimento de negócios da diretoria internacional. Cezar de Souza Tavares se aposentou e abriu a empresa Cezar Tavares Consultores, que foi contratada pela diretoria de Cerveró para atuar na negociação dos contratos de compra da Refinaria de Pasadena. Em 2008, após Cerveró sair da diretoria Internacional, Moreira também se aposentou e virou sócio na consultoria de Tavares, mesmo movimento feito por outro investigado, Rafael Mauro Comino, igualmente "transposto" da diretoria de Delcídio para a Internacional de Cerveró.
No diálogo gravado, Delcídio dá a entender que tinha uma combinação para Cerveró não falar sobre envolvimento dele com a Alstom e questiona o rascunho da delação mostrado por André Esteves conter isto. Bernardo e o advogado Edson confirmam que Cerveró e Moreira (eles não citam o nome completo) tinham dinheiro na Suíça, recebido da Alstom, e foram descobertos lá há algum tempo, mas conseguiram arquivar o processo fazendo acordo confidencial com o Ministério Público de lá. O dinheiro ficou com o governo suíço mas, no Brasil, ninguém soube de nada.
Os procuradores da Lava Jato tiveram conhecimento da trama informalmente quando estiveram na Suíça mas, segundo o advogado Edson, não têm como usar esta informação de forma legal no Brasil, já que, depois do acordo, os procuradores suíços não podem mais fornecer estes dados oficialmente.
Pausa para uma observação: se for verdade esta narrativa, que justiça podre era essa dos suíços? Descobriram dinheiro com indícios de ser roubado dos cofres públicos brasileiros e fizeram acordo para ficar com o dinheiro em troca de silêncio?
Gestões temerárias
(Clique na imagem para ampliá-la).
Mas voltando ao "petrolão tucano": a diretoria de Delcídio foi responsável pela assinatura dos contratos lesivos à Petrobras para construção e operação de usinas termelétricas, no governo FHC, em consórcio com empresas estrangeiras como Enron, El Paso e com a brasileira MPX, de Eike Batista.
Processo de tomada de contas especial do TCU – TC 032.295/2010-3 – registra nos contratos que a Petrobras assumiu sozinha riscos desfavoráveis ao erário público (leia-se: ruins para a estatal e bons para os sócios privados nos consórcios) para a construção das termelétricas.
O texto do acórdão descreve um contrato draconiano, cuja única garantia tinha os sócios privados, de que teriam seus lucros devidamente recebidos – o que obrigou a estatal a pagar aos consórcios R$ 2,8 bilhões. A Petrobras (leia-se, o povo brasileiro) ficou com este prejuízo, enquanto os sócios privados foram generosamente remunerados. Pior do que isso, durante cinco anos a Petrobras pagou aos sócios juros de 12% ao ano, mais do que os sócios pagavam ao BNDES pelo dinheiro que tomaram emprestado para investir.
Desenhando: se a Petrobras tomasse diretamente empréstimo no BNDES para construir as termelétricas sem sócio nenhum, em cinco anos pagaria o empréstimo, com juros muito menores e ficaria dona sozinha das usinas.
Mesmo identificando e reconhecendo tudo isso, o acórdão do TCU de 16 de julho de 2014 (quando a Lava Jato já bombava) acatou a defesa e não puniu ninguém da diretoria da Petrobras da era tucana.
Foram alvo desta tomada de contas além de Delcídio e Cerveró, Henri Philippe Reichstull, Ronnie Vaz Moreira, Francisco Gros, Rogério Almeida Manso da Costa Reis, José Coutinho Barbosa, Geraldo Vieira Baltar, Albano de Souza Gonçalves, João Pinheiro Nogueira Batista,Jorge Marques de Toledo Camargo, Antônio Luiz Silva de Menezes, Irani Carlos Varella.
Um trecho do acórdão do TCU resume a decisão: "(...) ainda que tenha faltado prudência por parte dos administradores da Petrobras, os gestores devem ser eximidos de responsabilidade por não ser razoável exigir-lhes que, com as circunstâncias favoráveis de mercado, descumprissem os compromissos políticos e sociais que haviam assumido e desistissem da oportunidade de negócio que se apresentava. Fica demonstrada a inexigibilidade de conduta diversa por parte dos gestores da Petrobras, excluindo sua a culpabilidade".
Deixa ver se entendi: em uma linguagem menos embromada, como a diretoria tinha "compromisso político" com o governo tucano ficou tudo liberado para fazer outra imprudente "privataria" com a Enron, El Paso e MPX. É isso?
Detalhe: em 2001 e 2002, quando ocorreram estes fatos, o ministro das Minas e Energia era José Jorge que posteriormente foi senador pelo PFL de Pernambuco. Em 2014, José Jorge era conselheiro do TCU. Hoje aposentado, à época ele declarou-se impedido de votar neste processo. Conclui-se, portanto, que ele tinha interesse direto no assunto."
(De Helena Sthephanowitz, no site Rede Brasil Atual, post intitulado "Ao falar demais, Delcídio revelou a transposição do 'petrolão tucano'" - aqui.
Torna-se, além de incompreensível, enigmático o fato de o horizonte temporal estabelecido pelos condutores da Lava Jato contar com o ano de 2003 como marco inicial.
Nota: Outra abordagem sobre o assunto pode ser lida AQUI).
Nota: Outra abordagem sobre o assunto pode ser lida AQUI).
SOBRE DEAN ACHESON, CULTOR DA CARTA DOS DIREITOS DOS EUA
O que Dean Acheson teria a ensinar ao Judiciário brasileiro
Por Luis Nassif
Em junho de 1952 o Rio recebeu a visita do Secretário de Estado norte-americano Dean Acheson.
Dean G. Acheson era uma figura portentosa, da melhor tradição de Yale. Ele havia sido discípulo do grande constitucionalista Louis D. Brandeiss, primeiro juiz judeu da Suprema Corte americana, de 1916 a 1939. Recém-formado, chegou a trabalhar com Franklin Delano Roosevelt, em seu primeiro governo. Pediu demissão quando Roosevelt resolveu manobrar com ouro para desvalorizar o dólar.
Serviu como assistente de secretário de quatro Secretários responsáveis pela política externa norte-americana: Cordel Hull, Edward R. Stettimius Jr., James F. Byrnes e o General George Marshall.
A relação de feitos era enorme. Em 1939 chefiou uma comissão incumbida da desburocratização do Judiciário. Em janeiro de 1941 o relatório foi classificado pelo “New York Times” como “um marco na história da reforma administrativa”. Também ajudou a criar a UNRRA – a grande organização incumbida de realocar refugiados de guerra, responsável pela colocação de 8 milhões de pessoas. Chefiou a delegação americana na conferência de Atlantic City, e depois foi eleito por unanimidade presidente do Conselho.
Em 1944 foi um dos representantes dos Estados Unidos na Conferência de Bretton Woods, autor do relatório Acheson-Lilenthal, que serviu de base para o Plano Baruch de controle da proliferação nuclear.
Acheson foi melhor apreciado postumamente. Foi o principal redator do plano Marshall, da doutrina Truman, e mentor da intervenção no Líbano. Ditou a política externa americana de janeiro de 49 a 52. Mas nos tempos do macartismo era considerado de esquerda.
Sua visita ao Rio, trazido pelo embaixador Walther Moreira Salles, foi uma celebração da melhor tradição democrata norte-americana.
O diário “A Noite” celebrou com uma edição especial. Nas páginas internas, sob o título “Uma Carta dos Direitos dos Estados Unidos”. No Brasil da Lava Jato, uma boa lição esquecida:
(Clique na ilustração, para ampliá-la).
(Fonte: aqui).
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Ressalto o comentário de André Araújo:
Dean Acheson foi um dos Six Wise Men, título de um livro célebre de Walter Isaacson e Evan Thomas onde são narradas as carreiras interligadas de seis personagens que criaram o poder imperial americano no Século XX. Acheson é um deles, juntamente com John Mc Cloy, Robert Lovett, George Marshall, Averrel Harriman, Charles Bohlen e George Kennan.
Essas grandes personalidades serviram ao seu País com grande visão e inteligência. Acheson teve importante papel no começo da Guerra Fria; tenho suas memórias, PRESENT AT THE CREATION - My Years in the State Department, editora W.W.Norton de 1969, quase 800 páginas.
Eram homens sábios que sabiam balancear princípios e necessidades, uma percepção prática sem fanatismos ou olhar estreito. Homens dessa qualidade fazem hoje muita falta nos Estados Unidos, hoje um viveiro de mediocridades no governo; uma baixa de qualidade impressionante e que parece ser universal.
domingo, 29 de novembro de 2015
A LAVA JATO NO SUNDAY TIMES
The Sunday Times, o jornal de maior circulação no Reino Unido aos domingos, publicou reportagem de uma página sobre a Lava Jato.
Diz o jornal que Sérgio Moro é visto como um herói do povo, capa de revistas, e especula acerca de suas pretensões políticas.
Ao abordar as táticas de investigação adotadas pelo juiz e “sua jovem equipe de procuradores”, a reportagem cita um advogado que diz que Moro e sua equipe são intocáveis, inclusive nos métodos utilizados. Lembra “um punhado de líderes empresariais politicamente conectados presos durante meses sem julgamento”. E menciona as denúncias “supostamente vazadas para a imprensa antes mesmo que os acusados tenham sido informados”.
A reportagem acusa os condutores do processo de tentar obter colaborações de presidiários em troca de sua liberdade, e menciona um parecer elaborado pela Blackstone Chambers, entidade inglesa dedicada ao direito público, com ênfase em direitos humanos, sugerindo que o comportamento dos procuradores pode ser uma violação da Constituição do Brasil e de vários tratados internacionais.
Segundo o jornal, os advogados britânicos especialistas em direitos humanos ressaltaram que não estão analisando nenhum caso individual, mas levantando preocupações de que “princípios fundamentais da liberdade e da presunção de inocência foram minados pela investigação de Moro”.
Segundo o jornal, os advogados britânicos especialistas em direitos humanos ressaltaram que não estão analisando nenhum caso individual, mas levantando preocupações de que “princípios fundamentais da liberdade e da presunção de inocência foram minados pela investigação de Moro”.
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A corrupção tem de ser investigada e punida com todo o empenho, em todos os âmbitos, em todo o período em que se desenvolveu e independentemente da agremiação política envolvida. A apuração das falcatruas relacionadas à Petrobras - que completará prolongadíssimos 2 anos no próximo mês de março - exclui o período anterior a 2003, envolve medidas colidentes com dispositivos constitucionais e tem seus méritos embotados também pelo fato de constituir ponto isolado no cenário conspurcado pela corrupção no Brasil: todos os holofotes estão direcionados para ela; o marasmo acolhe a punição das malfeitorias praticadas por outros.
Nota: Clique AQUI para ler a coluna dominical do analista Jânio de Freitas, da Folha de São Paulo, reproduzida no Jornal GGN. Uma vez mais, evidencia-se a impertinência da decisão dos patrocinadores da Lava Jato de excluírem da ação o período anterior a 2003.
Nota: Clique AQUI para ler a coluna dominical do analista Jânio de Freitas, da Folha de São Paulo, reproduzida no Jornal GGN. Uma vez mais, evidencia-se a impertinência da decisão dos patrocinadores da Lava Jato de excluírem da ação o período anterior a 2003.
DA SÉRIE CERTAS PALAVRAS
Meninxs, eu vi!
Por Sírio Possenti (Do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas)
A pretexto de incluir todos os gêneros, o colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, passou a adotar, em comunicados oficiais, uma grafia que elimina Os e As em palavras como “alunos” e “alunas”, substituindo essas letras por X: “alunxs”. A opção faz parte de uma pletora de casos em que se pretende corrigir aspectos da língua e de textos, supostamente por serem ofensivos, excludentes ou inexatos.
Na categoria nos inexatos está, por exemplo, a intervenção (basicamente da Rede Globo, mas que pegou) visando corrigir a expressão “risco de vida” por “risco de morte”. A ideia é que risco para a vida não é risco de vida, que significaria risco de viver.
A análise da expressão, sem considerar seu domínio semântico mais amplo, corre o risco de ser falsa. No mínimo, deveriam ser levadas em conta construções como “arriscar a vida”, que significa 'correr risco de perder a vida' (análoga a “arriscar o salário nos cavalos”, que significa, evidentemente, 'correr risco de perder o salário...'). É o que se pode ver nos bons dicionários (Houaiss registra "arriscar: expor a risco ou perigo") e mesmo em outras línguas (como risquer la vie, em francês, cf. Petit Larousse). Em suma: ninguém arrisca a morte, ninguém arrisca perder o que não tem. Por isso, só se corre risco de vida.
Outras correções são tão ou mais bobas que esta. Por exemplo, “quem tem boca vaia Roma”, por “vai a Roma”; “batatinha quando nasce, põe a rama pelo chão” por “se esparrama pelo chão”; “matar a cobra mostrar a cobra”, em vez de “mostrar o pau” etc.
Sabe-se que as línguas mudam. Em geral, fazem isso seguindo forças mais ou menos ‘ocultas’. Políticas linguísticas dificilmente interferem em questões como o sentido das palavras ou de textos, pequenos ou grandes. Elas podem registrar, inibir ou incentivar. Mas não criam nem desfazem fatos.
Os casos acima mencionados podem ser considerados, além de tudo, erros de análise. Provérbios não são literais: “quem tem boca vai a Roma” significa que, perguntando, pode-se chegar a qualquer lugar (não se trata de boca, mas de fala, nem de Roma, mas de qualquer lugar).
Questão de gênero
A norma do colégio D. Pedro II é do mesmo tipo: propõe uma escrita artificial (não foi inventada no colégio) que evitaria discriminação. A solução tem vários problemas, a despeito das boas intenções – o inferno, como se sabe...
A primeira questão, obviamente, é como ler estas palavras (nem preciso explicar o problema). Ou se quer que sejam apenas vistas ou lidas em voz baixa (como alun@s)?
Já o problema de fundo é a própria questão de gênero, ou seja, a relação biunívoca que haveria entre gênero gramatical e gênero social (o antigo sexo). É fácil ver que nem sempre esta relação se mantém. ‘Lua’, ‘cisterna’, ‘arte’, ‘galho’, ‘intelecto’, e acho que também ‘anjo’, nada têm nada a ver com sexo. A questão só se torna potencialmente problemática quando se trata de humanos. Mas considere ‘criança’...
No entanto, animais podem servir como passagem de um extremo a outro. Quando dizemos “bois”, discriminamos as vacas? É sexismo falar ‘dos’ tigres de Bengala e ‘dos’ ursos polares? Acho complicado.
É comum que se fale de animais genericamente por meio da palavra gramaticalmente masculina: (carne de) porco, (asa de) frango, (costela de) boi etc.
Quando se trata de humanos (as mulheres são humanas, nesta versão do politicamente correto?), em certa medida, a questão é a mesma: a palavra gramaticalmente masculina designa o gênero (no sentido relacionado a espécie); a palavra feminina designa uma parte, uma parte específica. “Os alunos devem...” refere-se a todos os discentes; “as alunas devem”, só às discentes do sexo feminino. O problema não são as formas “alunos” e “alunas”, mas o que se diz que devem...
Uma coisa é lutar para que certas palavras marcadas negativamente sejam trocadas por outras, mais amigáveis. Outra é querer resolver o problema no interior da gramática.
Palavras marcam certas culturas. Eventualmente, culturas definem seu gênero: ‘arte’ é feminino em português (a arte), masculino em espanhol (el arte). Não é fácil sustentar que, em um caso, se trata de feminino ou de masculino para além do gênero gramatical. É um fato neutro, provavelmente, quanto a qualquer laivo de sexismo.
Mas a tese a ser levada em conta é a de John Martin. Se o leitor digitar o nome do linguista e a palavra “gênero”, encontrará seu célebre (entre alguns linguistas) artigo (http://people.ufpr.br/~borges/publicacoes/notaveis/Genero.pdf ) chamado justamente “Gênero?” . Tem quatro páginas e deveria provocar uma revolução.
Sua tese é que não há masculino e feminino em português, mas apenas palavras marcadas e não marcadas quanto ao gênero. O que impressiona em sua breve e certeira argumentação é que se usam formas masculinas tanto relacionadas a nomes não femininos (“Pedro é alto”) quanto em todos os casos em que não há nome com o qual relacionar, por exemplo, um predicado:
“navegar é preciso” (nunca ‘precisa’)
“aqui faz frio” (nunca ‘fria’)
“aqui é bom” (nunca ‘boa’)
Que não se diga que “navegar” é masculino. Por favor. Uma boa causa, como o feminismo e a igualdade de gêneros, merece argumentos melhores. (Fonte: aqui).
................
A propósito desse, digamos, preciosismo lapidado pelo colégio D. Pedro II, transcrevo o comentário oferecido pelo leitor Caetano:
Estamos embarcando na nau dos insensatos. Conseguiram algo pior ainda do que o aluno/a: alunx. Ora, sempre o masculino compreendeu o universo, sem qualquer conotação de superioridade, e sim apenas por convenção, por simplicidade. Quando se diz "o homem sente falta da religião", obviamente se refere à humanidade toda e nada há de discriminatório. Sempre existem, entretanto, os cegos seguidores do chamado "politicamente correto", alguns por ignorância, outros por convicção, outros ainda por mera demagogia (basta ouvir discurso de qualquer político rastaquera).
Abolir o "risco de vida" é outra bobagem sem nexo. Diz-se "arriscar a vida escalando montanhas" no sentido de pô-la sob ameaça. Alguém diria "arriscar a morte..."?
sábado, 28 de novembro de 2015
A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
"Quem não o conhecia, conheceu-o e o detestou. Sua conversa, seu tom de voz e sua arrogância foram tão transcendentalmente humanas que poucos roteiristas teriam tamanha criatividade. Em uma tacada, em uma conversa, ele revelou uma sordidez nunca antes vista na história deste país. O cara é senador, cheio de poderes e pompa, líder de um governo cada vez mais alquebrado e que demonstra que nem só de voto vive a legitimidade.
Senador da República, oito intermináveis anos de mandato. Antes de ser senador pelo PT, passeou por outros partidos, foi do inimigo, foi ministro, foi chapa quente, foi tudo, bom de conversa, um grande articulador, como gostam de dizer os analistas políticos, escolhido dentre todos pela Presidenta da República, que o viu como aquele que reunia os méritos e a arte de liderar a infantaria governista no Senado. Em poucos minutos, porém, revelou ser um farsante, mais um farsante, só que um farsante falastrão, canastrão, e, nesse festival do ão, um bocão. Prometeu ao filho de um réu, O Réu, imortal Cerveró, desses que saíram da ficção para a realidade, mundos e fugas, granas, aviões, vida na Europa, cinquenta mil por mês. Disse conhecer os Ministros, ser amigo, disse – sem dizer textualmente – que poderia ajeitar as coisas lá, no Olimpo, onde residem os deuses irrecorríveis. Estava à vontade, desinibido, seguro de si e de sua onipotência senatorial. Um cara horrendo.
Como não festejar que um ser humano de tão baixa qualidade seja preso, levado ao xilindró, com seus ternos de linho, sua arrogância, sua empáfia, seu cabelo armado, que viesse, cedinho, em cana? Junto com ele um banqueiro, único semovente mais odiado que o político, e um advogado (esse, preso, nos Estados Unidos da América, para dar o glamour folhetinesco que faltava). O trio medonho preso por ordem do Olimpo. Gritamos gol e nem era da Alemanha, era gol nosso, tupiniquim. Horas depois, um Senado inteiro, envergonhado e constrangido, de rabo entre as pernas e assustado, votava por ampla margem à manutenção da prisão do companheiro, do chapa e do ex-amigo, com direito a mais um momento de humilhação, o PT, quem te viu quem te vê, tentou desesperadamente passar o voto secreto, uma imoralidade em si mesma, quando se trata do voto parlamentar. Não precisávamos disso. O senador dormiu a primeira noite na cadeia, homologadamente preso, por vontade do Legislativo e do Judiciário, através de suas Casas Superiores.
Nas horas que corriam, um sentido ambivalente nos tomava, um misto de alívio e de terror. Alívio porque nossa fúria foi rapidamente satisfeita, e terror porque a prisão foi assustadoramente ilegal.
O parlamentar no Brasil é protegido pelo art. 53, da Constituição, que traça um sistema de garantias, fundamental para funcionamento do regime democrático, ainda que se corram riscos calculados. Um deles está em que desde a expedição do Diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável (§ 2º). Isso é tão sagrado que essas garantias, assim como outras, subsistirão durante o estado de sítio só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços da Casa respectiva (§ 8º). Por mais que o Ministro Relator tenha insistido que houve flagrante, disse-o valendo-se do argumento de autoridade, o mesmo capaz de impor pela força afirmar-se que o quadrado é redondo. Porém, ainda que tomássemos o exercício da autoridade, faltaria o segundo quesito, o da inafiançabilidade do crime. A prisão, tal como foi decretada, desrespeitou a Constituição.
Porém, mais grave ainda, é que os juízes, Ministros da Suprema Corte, que decretaram a prisão, estavam impedidos de fazê-lo pela singela razão de que foram vítimas das difamações provavelmente proferidas pelo Senador. Nessa situação bizarra, a vítima julgou e mandou prender seu agressor, o que representa ofensa ao mais palmar dos princípios de direito, a imparcialidade do juiz. Imagine o amigo se o dono do carro que você amassou na rua fosse a mesma pessoa que julgasse a indenização que ele mesmo propôs; imagine se o juiz que julgasse a guarda dos filhos fosse também o pai em litígio... foi o que ocorreu: os Ministros, que se sentiram gravemente ofendidos julgaram o ofensor; resultado: cana; recuamos séculos e, obliquamente, tornamos privada a Justiça Pública.
Resumindo: não houve flagrante, o crime não era inafiançável e os juízes estavam impedidos. O mais preocupante é que não há juízes acima daqueles que o fizeram para corrigir o abuso. O Supremo, Guardião da Constituição, teve seu dia de desrespeitá-la explicitamente. Quem nos protege do vacilo do Guardião? Ninguém.
Quando um sistema de garantias se transforma em um sistema de conveniências, a democracia acaba indo para o ralo e todos os agentes públicos ficam com suas autonomias barateadas na ponta de iceberg que pretende afundar o Titanic da impunidade, mas que pode afundar toda a frota democrática, construída tão sofridamente.
Meu medo é que a euforia de hoje seja a ressaca de amanhã, quando pouco restará a ser feito. Por pior que seja o Senador, que ele seja julgado e eventualmente punido, com seus direitos assegurados, por mais odioso que ele seja, pior e mais odioso é jogar tudo para cima, relativizando garantias constitucionalmente asseguradas, é começar a destruir o que já temos de tão pouco: o Estado Democrático de Direito."
Tardelli é Procurador de Justiça aposentado - 1984/2014 -, atuou em casos como o de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
(De Roberto Tardelli, post intitulado "Por mais odioso que Delcídio seja, pior é começar a perder o que já temos", publicado no Jornal GGN - aqui.
Ratifico comentário de minha lavra, inserido ao final do post "Para não entender a prisão de um senador pelo STF - III" - aqui).
PARA ALÉM DO BIG BROTHER
O Google e o gênio maligno
Por Gustavo Gollo
Uns séculos atrás, Descartes imaginou um gênio maligno, desses saídos de uma garrafa, a se divertir iludindo-nos, criando um mundo onírico, ilusório, no qual pensaríamos viver, com o intuito exclusivo de se divertir com a farsa.
A conjectura tinha um apelo mais retórico que real; tinha o propósito de dissipar qualquer dúvida eventual acerca da realidade de um mundo que nos tivesse sido presenteado por um deus sumamente bom.
Foi Philip Dick quem nos revelou, em fins do milênio passado, a possibilidade da matriz, de um mundo computadorizado indistinguível do real, no qual, provavelmente, estamos vivendo.
A malignidade do gênio cartesiano se resumia em sua natureza cômica, tratava-se de um ser divertido e curtidor, mas sem nenhuma graça aos olhos de muitos.
Os novos tempos nos acenam com malignidades inimagináveis, talvez, às criaturas pias de outros tempos, embora tamanha perfídia, como de costume, advenha de nossa própria natureza.
O engenho humano criou inúmeras maravilhas, estamos cercados por elas. Mas também criou a dominação, a escravidão, a tortura e muitos outros males. A dominação, o poder, é a origem de uma parcela considerável das mazelas humanas.
Com o propósito da dominação foi idealizado um programa de computador muito simples, mas custoso, quase impensável devido aos custos assombrosos. O programa consistia em interceptar todas as informações geradas na imensa internet, e descarregá-las em um recipiente (um disco) no qual poderiam ser vasculhadas, esquadrinhadas em busca de indícios de conspirações. A simplicidade do projeto consistia em aplicar as ferramentas tradicionais de busca no texto imenso obtido com a descarga da totalidade da rede. A dificuldade se baseava na imensidão do projeto. Descarregada toda a rede, bastaria procurar pelos indícios desejados, palavras como “bomba”, “explosivo” ou qualquer outra sob a mira do abelhudo, como nomes próprios, hábitos ou curiosidades idiossincráticas do próprio xereta. Esse programa surpreendente permitia bisbilhotar comunicações sobre pessoas, projetos, planos, e virtualmente qualquer assunto tratado através da rede. Tratava-se de projeto secreto de espionagem, guardado a sete chaves. A ideia verdadeiramente genial, ou maligna, consistiu na abertura do segredo. Entregava-se a ferramenta a todo o público, que se lambuzaria com a novidade. A glutoneria pela informação geraria os lucros astronômicos que financiariam com sobras a manutenção e o crescimento do empreendimento descomunal. Imersos, todos, na mesma sopa informacional, enredados, todos, na mesma teia descomunal e complexa, entregávamos aos bisbilhoteiros, com minúcias, satisfação e candura, todos os nossos hábitos; os que reconhecíamos e muitos outros. Tem certeza que sua câmera está desligada agora? Seu microfone? O microfone de seu telefone?
A conjectura tinha um apelo mais retórico que real; tinha o propósito de dissipar qualquer dúvida eventual acerca da realidade de um mundo que nos tivesse sido presenteado por um deus sumamente bom.
Foi Philip Dick quem nos revelou, em fins do milênio passado, a possibilidade da matriz, de um mundo computadorizado indistinguível do real, no qual, provavelmente, estamos vivendo.
A malignidade do gênio cartesiano se resumia em sua natureza cômica, tratava-se de um ser divertido e curtidor, mas sem nenhuma graça aos olhos de muitos.
Os novos tempos nos acenam com malignidades inimagináveis, talvez, às criaturas pias de outros tempos, embora tamanha perfídia, como de costume, advenha de nossa própria natureza.
O engenho humano criou inúmeras maravilhas, estamos cercados por elas. Mas também criou a dominação, a escravidão, a tortura e muitos outros males. A dominação, o poder, é a origem de uma parcela considerável das mazelas humanas.
Com o propósito da dominação foi idealizado um programa de computador muito simples, mas custoso, quase impensável devido aos custos assombrosos. O programa consistia em interceptar todas as informações geradas na imensa internet, e descarregá-las em um recipiente (um disco) no qual poderiam ser vasculhadas, esquadrinhadas em busca de indícios de conspirações. A simplicidade do projeto consistia em aplicar as ferramentas tradicionais de busca no texto imenso obtido com a descarga da totalidade da rede. A dificuldade se baseava na imensidão do projeto. Descarregada toda a rede, bastaria procurar pelos indícios desejados, palavras como “bomba”, “explosivo” ou qualquer outra sob a mira do abelhudo, como nomes próprios, hábitos ou curiosidades idiossincráticas do próprio xereta. Esse programa surpreendente permitia bisbilhotar comunicações sobre pessoas, projetos, planos, e virtualmente qualquer assunto tratado através da rede. Tratava-se de projeto secreto de espionagem, guardado a sete chaves. A ideia verdadeiramente genial, ou maligna, consistiu na abertura do segredo. Entregava-se a ferramenta a todo o público, que se lambuzaria com a novidade. A glutoneria pela informação geraria os lucros astronômicos que financiariam com sobras a manutenção e o crescimento do empreendimento descomunal. Imersos, todos, na mesma sopa informacional, enredados, todos, na mesma teia descomunal e complexa, entregávamos aos bisbilhoteiros, com minúcias, satisfação e candura, todos os nossos hábitos; os que reconhecíamos e muitos outros. Tem certeza que sua câmera está desligada agora? Seu microfone? O microfone de seu telefone?
Talvez nos assustemos com a possibilidade de estarem bisbilhotando nosso telefone; compreendemos essa possibilidade. Desconhecemos as complexas determinações de padrões muito além de nossa compreensão, articuladas por máquinas gigantescas e poderosíssimas a bisbilhotar ininterruptamente os nossos hábitos. Não tenha dúvida de que certas peculiaridades de seu comportamento são conhecidas e previstas em muito mais detalhes do que você mesmo imagina. Você pode, por exemplo, e com muita facilidade, ser guiado até um determinado site, em um momento estabelecido, para clicar em certo ponto. Tenha certeza de que algumas previsões sobre o seu comportamento têm sido feitas com enorme precisão, até as respostas a suas dúvidas terão sido previstas. O futuro promete uma precisão ilimitada de nossos padrões de comportamento. Seremos controlados muito mais precisamente que ratinhos de labirinto. A imagem de um gato brincando com um ratinho ilustra com precisão a condição em que nos estamos metendo.
Temo um artefato que tenha sido criado com propósitos escusos, idealizado pelo poder, com vistas à dominação. O temor ao monstro será proporcional à familiaridade que se tenha com ele; os que não conseguirem distinguir sua face não o temerão.
Se percebêssemos a face do monstro imenso a nos perscrutar intimamente em tempo integral nos aterrorizaríamos. (Fonte: aqui).
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A partir do que, abraçados à ignorância e à alienação - e cada vez mais convencidos de estar em boa companhia -, exclamamos a plenos pulmões: Bem-aventurados os desplugados!
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Internet. Espionagem. Big brother. Google.
PARA (NÃO) ENTENDER A PRISÃO DE UM SENADOR PELO STF (III)
Prisão de senador Delcídio do Amaral materializa o Estado de exceção
Por Fernando Hideo I. Lacerda
A prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral representa o descortinar de um Estado de exceção, verdadeira antítese do Estado de direito, a partir da materialização de um processo penal no qual os direitos e garantias fundamentais de um grupo são explicitamente violados e a separação das funções do poder é colocada em xeque.
No presente artigo, pretende-se análise da nova modalidade de prisão criada ao arrepio da Constituição Federal e da legislação processual penal pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão da lavra do ministro Teori Zavascki. Trata-se do que podemos chamar de prisão cautelar de congressista em situação de flagrância: um híbrido entre a prisão em flagrante e a prisão preventiva, aliada à desconsideração da imunidade parlamentar,jabuticabalmente forjada no contexto de um processo penal de exceção.
Dessa forma, independentemente de uma análise detalhada acerca da (in)existência concreta dos pressupostos utilizados como fundamento para a decretação da prisão no caso concreto, as linhas que se seguirão cingem-se a uma abordagem desta modalidade de prisão cautelar jurisprudencialmente construída pelo Supremo Tribunal Federal sob a ótica processual penal e suas implicações perante o Estado de direito.
A existência de um Estado de direito pressupõe dois elementos básicos, quais sejam, a delimitação interdependente das funções do poder e o respeito aos direitos fundamentais. A partir da violação desses pressupostos exsurge a figura do Estado de exceção, lapidarmente definido por Pedro Serrano como “a contrafação do Estado de direito” [1] e situado por Giorgio Agamben “como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. [2]
Incialmente, cumpre destacar que a prisão cautelar do senador Delcídio Amaral foi pleiteada pelo Ministério Público Federal explicitamente na forma de prisão preventiva, requerendo o afastamento (travestido de flexibilização) das normas constitucionais pertinentes, em prol da criação de uma nova hipótese de prisão preventiva destinada aos congressistas.
Em sua manifestação, o procurador-geral da República reconhece que a Constituição Federal apenas autoriza a prisão de congressista em flagrante por crime inafiançável. Nesse sentido, afirma que a “regra prevista no dispositivo é, aparentemente, absoluta, e a exceção, limitadíssima. Com efeito,a prisão cautelar não é cabível na literalidade do dispositivo”. [3]
Todavia, propõe a superação da interpretação literal da Constituição Federal a fim de que seja decretada a prisão preventiva de congressista, uma vez presentes três pressupostos: (i) clareza probatória “em patamar que se aproxime aos critérios legais da prisão em flagrante”, (ii) pressupostos legais da prisão preventiva e (iii) inafiançabilidade do crime. [4]
Ora, trata-se de verdadeira sentença de morte ao artigo 53, § 2º, da Constituição Federal, que não faz qualquer ressalva ao dispor que “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”.
Com efeito, não há espaço para qualquer interpretação (além da literalidade) apta a autorizar a transcendência da expressão “flagrante de crime inafiançável” aos pressupostos imaginados pelo Ministério Público Federal, notadamente a existência de uma suposta clareza probatória que se aproxime aos critérios de flagrância, seja lá o significado que tal expressão possa assumir.
Isso porque esta interpretação criativa (para dizer o menos) causa evidente prejuízo ao sujeito a quem se imputa a prática delitiva, o que é vedado pela legislação processual penal, que apenas admite a interpretação extensiva e aplicação analógica, jamais um “interpretação sistemática” que contradiga o conteúdo explícito da Constituição Federal.
A acusação propõe explicitamente a violação de uma garantia fundamental assegurada pela Constituição Federal, o que não chega a surpreender se observarmos a postura de alguns membros da instituição no passado recente e suas “10 medidas de combate à corrupção”, que visam ao fim de direitos e garantias individuais em nome de um suposto combate [5].
Trata-se, dia após dia ― notadamente após os protestos e manifestações ocorridos no país em junho de 2013 ―, da construção de um processo penal de exceção a partir de referências a um combate em que o “corrupto” figura como inimigo.
Conforme destacado por Zaffaroni, este inimigo que dá origem ao processo penal de exceção “só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho” e sua construção se verifica a partir da “distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas)”, levando à construção de um sistema que pressupõe a existência de “seres humanos que são privados de certos direitos individuais”. [6]
Desse modo, a partir da distinção de um grupo identificado como inimigo passa-se à violação de seus direitos e garantias fundamentais, circunstância que assume a mais nítida repercussão diante da persecução criminal. Além disso, no caso da criação de uma nova forma de prisão cautelar por um órgão do Poder Judiciário direcionada a um membro do Poder Legislativo, há ataque ao próprio equilíbrio e interdependência das funções do poder.
No contexto de um verdadeiro Estado de direito, outra solução não caberia ao Supremo Tribunal Federal senão refutar a nova modalidade de prisão preventiva proposta pelo representante máximo do Ministério Público Federal, forjada a partir da violação de uma norma constitucional que simultaneamente se consubstancia em garantia individual e limite à separação das funções do poder.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal atendeu ao pleito do Ministério Público Federal, a partir da criação de novos ― e distintos daqueles originalmente propostos em manifestação assinada pelo procurador-geral da República ― fundamentos, requisitos e pressupostos.
Sem embargo, cumpre destacar uma vez mais que a decretação da prisão preventiva de congressistas, a partir da superação da norma constitucional, estaria fundamentada pelo Ministério Público Federal em três pressupostos, quais sejam (i) clareza probatória similar à flagrância, (ii) requisitos da prisão preventiva e (iii) inafiançabilidade.
De plano, salta aos olhos que a decisão de lavra do ministro Teori Zavascki não decretou a prisão preventiva ou em flagrante (o que seria ainda mais absurdo, dada a natureza pré-cautelar da medida) do senador Delcídio do Amaral. Ao contrário da redação utilizada em decisão proferida pelo ministro no mesmo dia, que determinou expressamente as prisõestemporária e preventiva de André Esteves e Diogo Ferreira [7], no caso do senador Delcídio do Amaral a decisão limita-se a decretar a sua prisãocautelar.
Que prisão, afinal, seria esta?
Ao enfrentar a questão do artigo 53, § 2º, da Constituição Federal, o ministro Teori Zavascki propõe expressamente o afastamento da norma constitucional em uma “situação excepcional”, trazendo à colação voto da ministra Carmen Lúcia no qual se afirmou que “à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional” [8] a sinalizar com clareza ímpar e assustadora a existência de um Estado de exceção, que ensejaria a existência de medidas típicas de um processo penal de exceção.
Tão ou mais assustadores são os fundamentos apresentados para a decretação desta nova modalidade de prisão cautelar forjada pelo Supremo Tribunal Federal, em uma verdadeira “excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional” [9].
Em primeiro lugar, embora não tenha adotado o conceito de clareza probatória similar à flagrância proposto pelo Ministério Público Federal, considerou-se que o senador Delcídio do Amaral estaria em “estrito flagrante”, em razão do crime de organização criminosa (artigo 1º, caput, da Lei 12.850/2013) ser permanente. [10]
Trata-se de equívoco na tipificação da conduta, uma vez que o próprio Ministério Público Federal imputou ao senador Delcídio do Amaral a prática do crime previsto no artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850/2013, que jamais poderia ser considerado crime permanente, pois é lição elementar que as condutas impedir ou embaraçar são instantâneas.
Em segundo lugar, o conceito de crime inafiançável apresentado na decisão em questão é totalmente deturpado. Na decisão, afirma-se que “a hipótese é de inafiançabilidade decorrente do disposto no artigo 324, IV, do Código de Processo Penal”. [11].
Ora, deve-se distinguir o rol de crimes inafiançáveis ― previstos no artigo 323 do Código de Processo Penal e artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV da Constituição ― da situação de inafiançabilidade prevista no artigo 324, IV, do mesmo diploma, sob pena de tomarmos todos os crimes ao qual caiba prisão preventiva por inafiançáveis.
Portanto, é evidente que a expressão “crime inafiançável” apresentada pela norma constitucional remete ao rol de crimes inafiançáveis previstos no artigo 323 do Código de Processo Penal e artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV da Constituição, sendo equivocado estender esse conceito às situações do artigo 324 do Código de Processo Penal, que não tratam de crimes inafiançáveis, mas situações subjetiva ou sistemicamente consideradas em que não se deve conceder fiança, bem por isso as matérias diversas estão disciplinadas em artigos distintos.
Em terceiro lugar, talvez a situação mais preocupante no contexto da separação dos poderes em um Estado de Direito, destaca-se o caráter atentatório contra a interdependência dos poderes que a decretação da prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral aparenta ostentar.
Na manifestação apresentada pelo Ministério Público Federal afirma-se que o senador teria relatado influência por conversas direta, intenção de diálogo ou promoção de interlocução, perante ministros do STF nominalmente citados, dentre os quais os ministros Dias Toffoli, Edson Fachin, Gilmar Mendes e o próprio Teori Zavascki, havendo inclusive transcrição do áudio capturado [12].
Diante desse argumento, é preocupante a fundamentação da prisão cautelar do congressista em uma situação excepcional, justificada por “linhas de muito maior gravidade” uma vez que não estaria praticando “crime qualquer”, mas sim “atentando, em tese, com suas supostas condutas criminosas, diretamente contra a própria jurisdição do Supremo Tribunal Federal, único juízo competente constitucionalmente para a persecução penal em questão” [13].
Conforme afirma Luhmann, a “desistência da manutenção da separação [dos poderes] acarretaria o colapso do sistema jurídico” [14], ao que podemos concluir com o pensamento de Pedro Serrano, no sentido de que a jurisdição passaria a assumir “não apenas um poder de direito, mas um verdadeiro poder de exceção, de inaugurar originariamente a ordem jurídica, exercendo, em verdade, um poder de caráter absoluto” [15].
O desfecho da decisão proferida pelo ministro Teori Zavascki é no sentido de que “presentes situação de flagrância e os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão cautelar do Senador Delcídio Amaral” [16].
É dizer que, a despeito dos três critérios elencados na manifestação do Ministério Público Federal para a prisão preventiva do congressista ― (i) clareza probatória similar à flagrância, (ii) requisitos da prisão preventiva e (iii) inafiançabilidade ―, a decisão do Supremo Tribunal Federal contentou-se, ao menos em seu dispositivo, com (i) a situação efetiva de flagrância e (ii) uma parcela dos requisitos da prisão preventiva, ou seja, o artigo 312 do Código de Processo Penal.
Não obstante as críticas à inexistência de situação autorizadora da prisão em flagrante (pois inexiste crime permanente) e ao conceito de crime inafiançável equivocadamente utilizado como fundamento da decisão, os contornos que o Supremo Tribunal Federal atribuiu à gravidade do crime a partir do atentado direto “contra a própria jurisdição do Supremo Tribunal Federal”, resultando na criação de uma nova modalidade de prisão ao arrepio das normas constitucionais e da legislação processual penal, afronta o equilíbrio entre as funções do poder.
No mais, certamente não é pela flexibilização dos direitos e garantias fundamentais que passará o combate eficiente da corrupção ou de qualquer outro problema, razão pela qual, a título de conclusão, fica-se com o ensinamento de Zaffaroni, para quem é “um erro grosseiro acreditar que o chamado discurso das garantias é um luxo ao qual se pode renunciar nos tempos de crise”. [17]
Ao violar garantias individuais e colocar em risco o próprio equilíbrio entre os poderes da República a partir da criação do que se pode chamar de prisão cautelar de congressista em situação de flagrância [18], o Supremo Tribunal Federal torna explícita a existência de um processo penal de exceção destinado ao combate de supostos inimigos, fato que por si só demonstra já não estarmos vivendo sob a égide de um Estado de direito.
[1] SERRANO, Pedro Estevam Pinto. Jurisdição e exceção. 2015. Tese de pós-doutorado – Universidade de Lisboa, p. 3.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2011, p.13.
[3] Ação Cautelar 4039 – fls. 176
[4] “Nessa ordem de ideias, deve ter-se por cabível a prisão preventiva de congressista desde que (i) haja elevada clareza probatória da prática de crime e dos pressupostos da custódia cautelar, em patamar que se aproxime aos critérios legais da prisão em flagrante (os quais incluem, vale lembrar, as hipóteses
legais de quase-flagrante e flagrante presumido, em que o ato delituoso não é visto por quem prende), e (ii) estejam preenchidos os pressupostos legais que autorizam genericamente a prisão preventiva nos dias de hoje (art. 313 do Código de Processo Penal) e os que impunham inafiançabilidade em 2001.” (Ação Cautelar 4039 – fls. 177)
[5] http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.18.
[7] “Ante o exposto, observadas as especificações apontadas, (a) decreto a prisão preventiva de Edson Ribeiro, qualificado nos autos, a teor dos arts. 311 e seguintes do Código de Processo Penal; (b) decreto a prisão temporária de André Esteves e Diogo Ferreira, também qualificados nos autos, nos termos do art. 1 0 , I e I", da Lei 7.960/1989”. (Ação Cautelar 4036 – fls. 161 - grifei)
[8] Ação Cautelar 4039 – fls. 202 - grifei
[9] Ação Cautelar 4039 – fls. 202 - grifei
[10] Ação Cautelar 4039 – fls. 199
[11] Ação Cautelar 4039 – fls. 199
[12] DELCÍDIO: Agora, agora, Edson e Bernardo, é eu acho que nós temos que centrar fogo no STF agora, eu conversei com o Teori, conversei com o Toffoli, pedi pro Toffoli conversar com o Gilmar, o Michel conversou com o Gilmar também, porque o Michel tá muito preocupado com o Zelada, e eu vou conversar com o Gilmar também.
[13] Ação Cautelar 4039 – fls. 201 - grifei
[14] LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. In: Revista da Ajuris. N.º 49. Porto Alegre: Ajuris, julho de 1990 (trad. de Peter Nauman ver. Vera Jacob de Fradera), p. 155.
[15] SERRANO, Op cit., p. 112.
[16] Ação Cautelar 4039 – fls. 202
[17] ZAFFARONI, Op. Cit., p.187
[18] Que não é prisão preventiva ou flagrante, mas mistura ― ao arrepio da Constituição Federal e da legislação processual penal ― elementos de ambas, somados à desconsideração da imunidade parlamentar.
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Fonte: Consultor Jurídico - aqui -. Mais comentários aqui.
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Entre os vários comentários suscitados pelo texto acima, tanto no Consultor Jurídico como no Jornal GGN, há observações bem interessantes, que valem a pena ser consideradas.
Sobre o senador, que fique claro: seu comportamento foi extremamente deplorável, típico de meliantes inescrupulosos, e a punição deve vir por inteiro, sem quaisquer atenuantes ou contemplações.
Mas a indignação ante os execráveis atos praticados não pode justificar o desrespeito à Constituição Federal, e logo por ação da instância responsável por sua guarda, conforme ela própria estabelece em seu artigo 102, 'caput'! E isso, em razão da 'interpretação extensiva' providencialmente sugerida pela PGR e acatada pela Corte, parece ter acontecido.
Claro que para a opinião pública essa questão não faz frente, por exemplo, aos comentários incendiários feitos por 'formadores' como Marcelo Resende, que 'acham pouco' o que está sendo feito contra os meliantes presos e não dão a mínima para 'tecnicalidades' jurídicas. Mas, a exemplo das bruxas do ditado espanhol, que as agressões à CF existem, existem...
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Entre os vários comentários suscitados pelo texto acima, tanto no Consultor Jurídico como no Jornal GGN, há observações bem interessantes, que valem a pena ser consideradas.
Sobre o senador, que fique claro: seu comportamento foi extremamente deplorável, típico de meliantes inescrupulosos, e a punição deve vir por inteiro, sem quaisquer atenuantes ou contemplações.
Mas a indignação ante os execráveis atos praticados não pode justificar o desrespeito à Constituição Federal, e logo por ação da instância responsável por sua guarda, conforme ela própria estabelece em seu artigo 102, 'caput'! E isso, em razão da 'interpretação extensiva' providencialmente sugerida pela PGR e acatada pela Corte, parece ter acontecido.
Claro que para a opinião pública essa questão não faz frente, por exemplo, aos comentários incendiários feitos por 'formadores' como Marcelo Resende, que 'acham pouco' o que está sendo feito contra os meliantes presos e não dão a mínima para 'tecnicalidades' jurídicas. Mas, a exemplo das bruxas do ditado espanhol, que as agressões à CF existem, existem...
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