terça-feira, 30 de outubro de 2018

DA SÉRIE TEXTOS PRODUZIDOS ANTES DO SEGUNDO TURNO

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Nota prévia: 
O leitor Luís Henrique Donadio Baptista esclarece: "Desculpa aí, mas Nêmesis não é o nome romano de Hybris. Hybris é o estado de quem se acha igual aos deuses, o orgulho desmedido, a falta de noção das próprias limitações. Nêmesis é a deusa que castiga esse tipo de pecado.". Ao que Carlos Viegas, autor da crônica abaixo, confessa: "Caro Luis Henrique, você está correto. E, como podemos ver, a coisa funciona. Essa é a nêmesis do articulista...". Por essa e por outas é que dizemos: É sempre bom reservarmos um tempo para dar uma conferida nos comentários. Posto isto, ao texto, que expressa a avaliação de Carlos Eduardo Viegas sobre o fenômeno Bolsonaro, candidato favorito à presidência da República:


A nêmesis de Jair Bolsonaro 

Por Carlos Eduardo Viegas

Na antiguidade clássica, grega ou romana, uma das divindades mais temidas era conhecida como Nêmesis (entre os romanos) ou Hybris (entre os gregos). Não era para menos. Essa divindade punia os maridos infiéis, as esposas abandonadas, os arrogantes, os muito poderosos, todos aqueles que no delírio do sucesso conquistado, da gloria, da fama, imaginassem serem iguais ou semelhantes aos deuses. Desde então, o significado dessa ideia, um conceito representado por um mito (ops!) foi apropriado pelos filósofos, historiadores e cronistas políticos, desde a Idade Média, que a utilizaram para refletir sobre a sociedade ocidental, notadamente sobre os grandes eventos políticos que a moldaram. 

Assim Isaac Deustcher, em uma passagem brilhante de sua biografia sobre Trotsky, escreve que no momento mesmo que a Revolução Bolchevique comemorava seu triunfo, em outubro de 1917, a sua nêmesis (Stalin) andava pelos corredores do Palácio de Inverno, que acabava de ser tomado. Os exemplos se multiplicam, na Revolução Francesa, à fúria dos jacobinos republicanos e revolucionários seguiu-se o Imperador Napoleão. No Brasil, talvez o autocrático e sanguinário Médici possa ser a nêmesis dos “revolucionários” de 1964 de Castello Branco, seu líder liberal. Talvez.
A modéstia, a prudência e o comedimento certamente não são virtudes que se possa atribuir ao capitão Jair Bolsonaro e, ainda mais, seus excessos retóricos parecem estar na iminência de serem premiados com uma grande vitória eleitoral. Como, então, poderíamos tentar imaginar os elementos que poderiam formar a sua nêmesis? Antes de tudo temos que compreender que a nêmesis ou hybris dos vencedores delirantes não é uma “vingança” de seus opositores. Ela não é algo que venha “de fora” das ações do imprudente e insolente. Ela é gerada por dentro de suas ações, através de suas ações. Vejamos isso mais de perto.
Se o capitão fosse um homem temente aos deuses antigos (mas sua condição de evangélico o impede de respeitar as crenças do pré-cristianismo) ele talvez pudesse seguir o exemplo dos Césares, os quais em suas procissões triunfais tinham ao seu lado um sacerdote o qual, o tempo todo que durasse o desfile do Triunfo, pelas ruas de Roma, lhe dizia aos ouvidos: “não te esqueças de que és um mortal”. No caso do nosso capitão, se chegar ao desfile triunfal do Dia da Posse, em Brasília, e ele temesse os deuses, talvez pedisse ao seu ajudante de ordens que lhe repetisse incessantemente nos ouvidos: “não te esqueças de que és um capitão”. Por quê?
Bem, os paisanos não entendem os militares. Mas os militares, que por ventura lerem essas linhas, entenderão prontamente a ironia acima.
Os estudiosos da sociologia das profissões nos ensinam que a profissão militar (assim como a do sacerdócio) é uma “profissão total”, o que significa que a vida do militar transcorre por completo, dentro de uma instituição, que, por assim dizer, o segrega da vida civil. O “ethos” militar, seu garbo marcial, a busca da glória em combate, a camaradagem desde os tempos do Colégio Militar, a carreira duramente construída degrau a degrau ao longo de muitos anos, o cumprimento honroso das missões, e tantos outros fatores, moldam o militar (agora, “a” militar, também) de forma tal que não existe um “lado de fora” na sua existência. Um oficial militar, mesmo em trajes civis, nunca será um simples “paisano”. Exemplo: numa família militar, num almoço dominical, o filho tenente não se senta à mesa familiar antes de pedir permissão ao seu pai coronel. Respeito filial e profissional. Uma rainha da beleza aos vinte anos, ainda será majestade aos quarenta. Um general de quatro estrelas, ainda que já “reformado”, receberá de seu camarada na ativa a saudação da continência, que é devida ao posto e não ao homem. Só mesmo os paisanos duvidarão disso...
Assim, procede muito mal o capitão Jair Bolsonaro ao insistir, como elemento central de propaganda eleitoral, que foi um capitão do exército brasileiro. Os paisanos entenderão isso de uma maneira, os oficiais militares entenderão à sua maneira. Jair Bolsonaro foi um capitão, e continuará sendo um capitão para sempre aos olhos de seus camaradas militares com patente superior, principalmente de Tenente-Coronel para cima, ainda que em público e por conveniência do momento político, neguem isso. Pior: é um ex-oficial que deixou a Força em circunstâncias, digamos, problemáticas. No meio militar, certas coisas não se esquecem jamais. Prova disso é que a Marinha do Brasil nunca perdoou os amotinados da Revolta da Chibata, mesmo já decorrido um século. Posto, patentes, os registros da “folha de oficial”, para o bem ou para o mal, são para sempre. Pelo que se sabe, o histórico militar do capitão Bolsonaro não o recomenda à tropa, como exemplo a ser seguido.
Outro aspecto das “profissões totais” é que o individuo representa todo o coletivo. Se um padre católico dá sua vida para salvar a vida de um judeu, condenado a morrer num campo de concentração, toda a Igreja é santificada. Se um padre católico é condenado por pedofilia, toda a Igreja é amaldiçoada. Então tudo aquilo que o capitão, convertido em Presidente da República, fizer de bom, poderá ser acrescido aos ativos do Exército Brasileiro. Porém, tudo aquilo que fizer e for reprovável, ou desastroso, ou meramente hilário, também será acrescido ao passivo da Força. Mais uma coisa: as Forças (o Exército, a Marinha e a Aeronáutica) competem entre si em muitos sentidos, e usualmente, não “compram” os débitos alheios. Conheço um relato sobre a esposa de um general que diante da evidente infidelidade do marido (da arma da Cavalaria) dizia que “isso é próprio de gente da estrebaria”. E dizia que tinha orgulho de pertencer a uma família de gente da Marinha, gente nobre, que usa farda branca, aristocratas, incapazes dessas vilezas de cavalariços. Resta saber, no caso de um hipotético desastre do governo bolsonarista, se as “outras” Forças irão “comprar o passivo” do colega de verde.
Por isso tudo, se capitão Bolsonaro fosse um homem mais prudente, não colocaria em relevo a sua condição de “ex”, porque se necessidades se impuserem no futuro que o aguarda, os seus camaradas poderão fazê-lo recordar que ele é apenas, e tão somente apenas, “um capitão”. Como tal, estará proibido de expor ao ridículo, descrédito, zombaria de whatsapp, etc. a Força que – sempre – representará. Em caso extremo ou, no mais extremo das coisas, se tudo desandar para desilusões tão grandes quanto a sua atual maioria eleitoral, Mourão, legitimo vice-presidente, general-de-exército, quatro estrelas nos ombros, estará pronto para cumprir a missão. O argumento aqui é que a nêmesis não começa depois do triunfo. A nêmesis está dentro do triunfo, faz parte dele. Os militares de alta patente conhecem, melhor que qualquer paisano, o capitão Jair Bolsonaro e suas idiossincrasias. Assim, é muito provável que certos “planos de contingência” já estejam sendo traçados. Afinal, o que faz um Estado-Maior senão Planos de Contingência, para o que der e vier?
Hora de mencionar Jânio da Silva Quadros, porque as comparações podem ser úteis. Um certo autor alemão do século XIX – cujo nome não consigo recordar, o que não importa, pois, sendo alemão e antigo, certamente é obsoleto (?! - sinais inseridos por este blog. Para em seguida notar a ironia relativamente a Marx] –, certa vez escreveu que sempre que as sociedades se deparam com eventos surpreendentes, inesperados, se valem do passado para explicar o presente. Essa é uma observação muito pertinente ao caso, pois estamos nos valendo do pitoresco Jânio para compreender o não menos pitoresco Bolsonaro. Assim, parece que os fatos da história ocorrem duas vezes, e o autor alemão adicionou que a primeira vez seria como uma tragédia, a segunda como uma farsa. Nesse nosso Brasil, empreendedor, e pós-moderno, pode ser que nossa história produza uma inovação a qual consistiria em inverter os termos do “dictum” alemão: Em 1961 houve uma farsa e em 2019, ou logo depois (quem sabe?), pode haver uma tragédia.
Os perfis psicológicos de Jânio Quadros e de Jair Bolsonaro guardam muitas semelhanças, daí a comparação, e não parece ser necessário apresentar os detalhes para explicar essa observação: os livros de história estão aí para isso. Em 1961 ocorreu a farsa janista de uma renúncia à Presidência da República que – assim é possível se supor - tentava reproduzir no Brasil o sucesso popular do golpe do presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, o qual, contrariado em seus propósitos políticos pelo parlamento, renunciou, para ser carregado por seus apoiadores, de volta palácio adentro, mas agora como ditador. Jânio Quadros, atribuiu sua renúncia a “forças terríveis” que o impediam de governar. Com o fracasso de sua farsa golpista teve a sua nêmesis política, foi cassado pela ditadura militar e retornou, muito tempo depois, com um papel secundário na política nacional. Ainda assim conseguiu se eleger Prefeito de São Paulo, o que demonstra que o pitoresco tem seu lugar na Política.
Como o jornalista Luis Nassif escreveu essa semana, um suposto governo bolsonarista será caracterizado pela “mediocridade absoluta de Bolsonaro para mediar os conflitos internos de seu governo, [e] se seguirá um período de profundas turbulências”. Se Bolsonaro fracassa (coisa muito provável) o que poderá se seguir? Talvez, “forças terríveis” se coloquem em ação para salvar seu programa neofascista, e para isso poderá ser contido, tutelado ou até afastado (a conferir nos “Planos de Contingência”...) e nesse sentido três elementos já estariam à disposição das “forças terríveis” da atualidade: primeiro, o Artigo 136 da Constituição de 1988, que dispõe sobre o Estado de Defesa e Estado de Sítio e, portanto, autoriza medidas muito severas de restrição das liberdades individuais sem que se possa dizer que houve uma ruptura institucional; segundo, o vice-presidente é um general de exército, criado e vivido para obedecer e fazer acontecer; e por fim o “modus operandi”: todos os manuais de implementação (assim como a tropa especializada, com sede em Campinas-SP) da Doutrina da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a qual confere o arsenal ideológico para tipificação do “adversário” e como lidar com ele.
A política brasileira, até aqui já produziu dois demagogos: Jânio Quadros e Jair Bolsonaro. Dois sucessos eleitorais. A nêmesis do primeiro foi sua renúncia, que na verdade era uma farsa. A nêmesis do segundo ainda está por se conferir. Mas poderá resultar numa tragédia.  -  (Aqui).
(Carlos Eduardo Viegas - professor na USP, campus de Pirassununga-SP).

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