domingo, 4 de outubro de 2020

TRUMP X BIDEN: A DESCONSTRUÇÃO PÓS-MODERNA DE UM DEBATE POLÍTICO

O artigo abaixo foi produzido antes da internação do presidente Trump, alegadamente infectado pela covid-19, em hospital da marinha norte-americana. O articulista considera que o presidente venceu o debate, Trump estaria convencido disso - desde que os demais debates previstos não venham a acontecer, no que o coronavírus poderia vir a calhar (Nas palavras de Ferreira: "Daí, a judicialização das eleições, ameaça de Trump ao final do debate, cancelando e ameaçando como inúteis os dois próximos debates programados"). Mas, ao que consta, grandes jornais como Washington Post e The New York Times, diante das incertezas reinantes, estão neste momento aventando a renúncia de Trump do cargo de presidente da República. De certo, por enquanto, só a constatação de que há um ator misterioso que às vezes entra em cena para comprometer as estratégias políticas, por mais engenhosas que sejam: o imponderável. 


Por Wilson Ferreira

Toda a desconstrução pós-moderna de Wittgenstein, Lyotard e Derrida ironicamente se transformaram em “pratical joke” nas estratégias semióticas da chamada “direita alternativa”. É o que foi mostrado ao vivo, como uma espécie de show metaliguístico de desconstrução de um debate político: o tão aguardado debate entre o republicano Donald Trump e o candidato democrata Joe Biden. Trump foi o grande “vencedor” porque a “magia do caos” é o fio condutor de uma estratégia “desconstrutivista” que vai muito além da mentira ou das “fake news” – orienta-se pelo fenômeno da pós-verdade na qual a comunicação e a linguagem foram pulverizados em jogo e performance. O caos semiótico metodicamente criado através de cinco estratégias: Comunicação Indireta, Técnica de Dissociação, Desautorização do Interlocutor, Roll Over e forçar ao limite os pontos fracos das regras.

“Tempos interessantes” era uma maldição chinesa, atribuída a Confúcio, em que significava profetizar tribulações, agitações e mudanças. Certa vez, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello encerrou uma ação penal afirmando que “tudo é possível porque os tempos são muito estranhos”, certamente parafraseando a máxima chinesa. Só que num tom acima. 

Tempos em que os sinais parecem trocados, nos quais os significantes parecem deslizar metonimicamente, sem mais lastros ou correspondências em significados. Tempos em que, por exemplo, o militar e evangélico alucinado Cabo Daciolo foi eleito Deputado federal pelo PSOL, um partido supostamente de esquerda, em 2014. Tempos em que uma emissora como a Globo (que por décadas, na sua teledramaturgia, shows e entretenimentos, mostrou um país no qual negros e classes subalternas não tinham lugar) de repente dá visibilidade a movimentos sociais e identitários.

E também tempos em que a grande mídia, depois de anos de jornalismo de guerra baseado na destruição sistemática de reputações, quer liderar uma cruzada contras as “fake news” e celebra parcerias com “agências de checagem” de notícias. 

“Globo lixo!” é agora um slogan também da extrema-direita e as teorias conspiratórias em torno da Globalização e Nova Ordem Mundial, no espectro político, deslizaram da esquerda para a direita.

O velho Brizola pressentia esses “tempos interessantes” e vaticinava: “Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que posição tomar diante de qualquer situação, atentem: se a Rede Globo for a favor somos contra. Se for contra, somos a favor”.

São discursos cujos signos se tornaram voláteis como fossem apenas peças intercambiáveis e intransitivas – não transmitem mais significados porque parecem bastar a si próprios, sem mais a necessidade de objetos para lastrear o sentido.

Ao mal-estar desses tempos interessantes e estranhos definiu-se como “pós-moderno”. Alguns dos seus principais teóricos, como Lyotard e Derrida partiam da hipótese da “desconstrução” na produção do conhecimento e do método científico.

Retomando o pensamento lógico de filósofos como Wittgenstein, reduziam o conhecimento e a noção de verdade ao jogo de linguagens, à pragmática da comunicação que firma os vínculos sociais. Para eles, perguntar se um enunciado é falso ou verdadeiro não tem mais sentido para o sujeito pós-moderno. A questão é outra: saber se o enunciado tem legitimidade pela sua operacionalidade dentro de um sistema, pela sua performance. Ou seja, o enunciado “funciona”? Se sim, então ele é “verdadeiro”. 



O consenso não reside mais na verdade do enunciado (seja ele ético ou moral) mas na aplicação pragmática das ideias, na sua comunicabilidade, ou se quiser, na sua “credibilidade”. A noção de “Verdade” cede lugar aos jogos de linguagem com ideias e conceitos desconectados do mundo empírico. Mais ainda, apenas legitima conhecimentos e decisões dentro de um mercado comunicacional – leia LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 5. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998 e DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Campinas, Papirus, 1991.


Contextualizar o debate

Este humilde blogueiro fez essa longa introdução para contextualizar o tão aguardado primeiro debate entre Donald Trump e o candidato democrata Joe Biden, realizado nessa terça-feira (29) diante das câmeras da rede Fox News a 35 dias das eleições presidenciais.

 A grande mídia vem apontado que o resultado foi “caótico”, “confuso” e que as regras dos próximos debates deverão ser mudadas. Tudo para segurar a metralhadora giratória de Trump: o presidente não parava de falar, avançando sobre as falas do seu rival e até em cima das falas do moderador, o veterano jornalista Chris Wallace – aos 71 anos, era o mais novo entre os debatedores.

Trump foi o grande “vencedor” porque a “magia do caos” (sobre esse conceito, mais profundo por conectar a política alt-right com movimentos esotéricos, clique aqui) é o fio condutor de uma estratégia “desconstrutivista” que vai muito além da mentira ou das “fake news” – orienta-se pelo fenômeno da pós-verdade na qual a comunicação e a linguagem foram pulverizados em jogo e performance. Encontrar pontos fracos e empurrá-los ao limite, até encontrar a intransitividade de qualquer regra, da linguagem e comunicação à eleitoral.

E isso não é uma genialidade de Donald Trump. 

Trump teve no ex-produtor de Hollywood e chefe da plataforma da direita alternativa Bribert News, Steve Bannon, muito mais do que o estrategista da campanha presidencial vitoriosa em 2016. Bannon treinou Trump dentro do modus operandi da cultura alt-right de membros de sites como AltRight.com, Alternative Right e Infowars, além da “habitus” da geração NEET (Not Currently Engaged in Employment, Education ou Training) de comunidades on-line como o 4chan.

Essa, digamos assim, “cultura” (Bannon aspira criar uma universidade alternativa para formar cidadão conservadores, cuja sede seria na Itália – novamente, por fatores esotéricos – clique aqui) ironicamente realiza na prática os diagnósticos de “desconstrução” da linguagem e da hermenêutica Ocidental feitos por Derrida e Lyotard. 



Se o fenômeno pós-moderno foi o impacto na superestrutura cultural decorrente das alterações radicais ocorridas na infraestrutura econômica e produtiva da sociedade (flexibilização, informatização, financeirização, globalização), o fenômeno alt-right é a decorrente desconstrução que agora alcança a democracia liberal, começando pela comunicação política – coisa que nem o melhor propagandista nazifascista do século XX poderia imaginar.

Desde os primeiros minutos do debate, Trump abriu sua caixa de ferramentas semióticas de desconstrução/manipulação – quatro estratégias bem definidas que se sucedem em relação causa-efeito: Comunicação Indireta, Dissociação, Desautorização do Interlocutor, Roll Over e Forçar Pontos Fracos das Regras. Essas cinco estratégias transitam nesse novo campo aberto pela alt-right: a Pós-verdade.


(a) Comunicação Indireta

Técnica em que o emissor não quer falar nem com o espectador e muito menos com o interlocutor. Seu alvo é a “maioria silenciosa”, os não-convertidos: aqueles que não compõem o “núcleo duro” de nenhum dos lados.

Para entender essa estratégia, um exemplo didático é o filme Obrigado Por Fumar (2005). Nele vemos uma sequência em que o porta-voz da indústria do tabaco, Nick Naylor, dá uma pequena aula de relações públicas para o seu filho Joey. 

Sentados no quiosque em um movimentado calçadão conversam: “Convença-me de que o melhor sorvete é o de chocolate”, desafia Nick. “Eu acho que é o de baunilha!”, completa. “Mas você não me convenceu!”, reage Joey. “É por que eu não estou falando com você, estou falando com eles...”, diz Nick apontando para as pessoas ao redor.

Repare, caro leitor, enquanto Joe Biden o tempo todo se dirigia diretamente ao espectador (“E você? Está faltando alguém na mesa da sua cozinha?” – indagava Biden ao espectador que perdeu familiares na pandemia), Trump endereçava suas frases a um receptor genérico – “Vejam... ele não encontra palavras para terminar!”, “Percebam”, “Olhem...”.

Enquanto o destinatário de Biden estava na segunda pessoa, para Trump seu espectador era uma terceira pessoa do plural. 

Trump, assim como Bolsonaro (Brasil), Viktor Orbán (Hungria), Matteo Salvini (Itália), sabem que a polarização política cria o fenômeno da maioria silenciosa – excluindo as terças partes dos convertidos, o restante forma a massa silenciosa, conquistada pela “magia do caos”.




(b) Técnica de Dissociação

Conjunto de técnicas bem conhecida entre os vendedores para fazerem consumidores perderem o controle e o foco dentro do espaço de vendas das lojas, tornando-os mais vulneráveis: deixar o cliente aguardando de 10 a 15 minutos enquanto o vendedor “procura” o modelo pedido no estoque; troca de vendedor durante as negociações; criar jogos mentais durante um test drive, por exemplo, com uma pergunta do tipo “esse modelo de veículo não é o que sempre gostou de ter?”. Tudo para criar desconcentração e embaraço - leia HOWARD, Martin, We Know What You Want, New York: Desinformation, 2005.

Por mais de 100 vezes, Trump interferiu nas falas de Biden e do mediador Wallace: “Vamos Joe... quais as forças policiais que te apoiam?... vamos, diga?”... “Eu tenho que responder?”, interferindo o mediador diversas vezes, como se Trump não conhecesse a dinâmica do debate.

O objetivo da dissociação é criar situações de ansiedade e stress tornando o consumidor (ou o adversário, no caso do debate) impulsivo, para tentar se livrar da armadilha mental.

“Palhaço!”, “Mentiroso!”, “Você vai calar a boca?”, foram as reações impulsivas de Biden às sistemáticas dissociações de Trump. 

Os estragos da dissociação eram visíveis: “qual a pergunta afinal? Eu não consigo mais lembrar depois de tanta coisa que ele (Trump)”, reclamou Biden a certa altura. Constantemente de cabeça baixa, evitando olhar diretamente para Trump. Preferindo direcionar sua fala para o mediador.

Em 2016, em um dos debates, enquanto Hillary Clinton se voltava para a plateia do estúdio de TV para responder a uma pergunta, Trump ameaçadoramente se posicionou bem atrás dela. Era visível a estratégia dissociativa para quebrar a concentração da adversária. 

O objetivo da técnica da dissociação não se limita ao debate em si: oferece ótimas sequências para edição de vídeos de propaganda ou memes para redes sociais. Para quê? Para a terceira estratégia que vem a seguir...


(c) Desautorização do interlocutor

Essa é a técnica clássica da direita-alternativa: o pressuposto de que não há debate porque o interlocutor não está autorizado... porque é “lixo!”.

Enquanto Chris Wallace tentava colocar de volta nos trilhos o trem que estava descarrilhando (“vamos parar por aqui com esse assunto... nós combinamos que a discussão deveria tratar de assuntos mais substanciais...”), Trump tinha um objetivo bem claro: desautorizar o interlocutor, mostrando para a maioria silenciosa (e não para o espectador) que Biden era “fraco”, “socialista” (para Trump são conceitos intrínsecos), incapaz de impor a “Lei e a Ordem”. Inclusive na família:  no ponto mais baixo, apontou para os problemas com a cocaína envolvendo o filho de Biden. E a decorrente saída das Forças Armadas.

“Pior aluno da classe” e “incapaz de lembrar o nome da própria universidade em que estudou” foram os termos mais suaves que Trump se referiu a Joe Biden como alguém mentalmente incapaz.




(d) Roll Over

Wallace tentava alertar que o combinado havia sido um debate com “assuntos substanciais”. Pois bem, quando Trump entrava no campo “substancial” do debate, punha em ação a quarta estratégia: “roll over” – o ritmo vocal de Trump sugere a existência de uma batida rítmica imaginária. Trump é verborrágico, mas com um estranho ritmo hipnótico.

“No meu governo a economia cresceu mais do que em 47 anos!... Foram criados mais empregos do que em 47 anos!... Vamos plantar bilhões de árvores... trilhões de dólares do meu plano para reconstruir tudo... é mais dinheiro que o nosso país pode fazer em 100 anos”. O discurso acelerado de Trump é hiperbólico, o paroxismo da própria propaganda. É quase como se Trump estivesse fazendo um stand up, brincando com a própria natureza da propaganda. Meta-propaganda!

Diante de perguntas que exigem respostas mais precisas, Trump cria uma espécie de “rocambole informativo”:

Mediador: o Sr. estaria disposto da condenar os supremacistas brancos e grupos de ódio...

Trump: CLARO!!!

Mediador: como vimos em Kenosha, em Portland....

Trump: CLARO!!!!

Mediador: o Sr. estaria disposto...

Após interromper Wallace diversas vezes impedindo a formulação da pergunta, Trump fugiu do assunto: “tudo o que eu vejo vem da parte da esquerda...”.

Esse “rocambole” de informações cria tal ambiguidade, a ponto do movimento supremacista branco “Proud Boys” comemorar o “comentário histórico” de Trump: no meio do “rocambole” verborrágico disse: “fiquem na sua e se mantenham a postos”, diante do pedido de posicionamento do republicano contra os supremacistas.




(e) Encontrar pontos fracos nas regras e força-las ao limite

O último bloco do debate foi sinistro: se o resultado for outro diferente da sua vitória, Trump considerará uma fraude: Exorto meus apoiadores a irem às urnas e fiscalizarem com muito cuidado. Espero que seja uma eleição justa, se for uma eleição justa estou 100% dentro. Mas se eu vir dezenas de milhares de votos sendo manipulados, não posso concordar com isso".

Trump disse que os resultados levarão meses para sair e que os americanos terão que confiar na Suprema Corte para ter uma resposta definitiva sobre quem será o presidente do país nos próximos quatro anos.

Essa é a última estratégia da “desconstrução” alt-right: encontrar os pontos fracos de qualquer regra de jogo para empurrá-las ao limite – no debate, o “acordo de cavalheiros” entre mediador e debatedores; no sistema eleitoral norte-americano, o sistema de votos pelo correio usado há décadas pelo país. E que nunca deu evidências de que seja mais inseguro do que o voto presencial. 

Por que essa desconstrução cria o campo da pós-verdade, tão ou mais insidioso do que as fake news? Na Pós-Verdade Wittgenstein, Derrida e Lyotard ironicamente se realizam como uma “pratical Joke” (piada ou pegadinha) da direita alternativa: e se todos os discursos forem simples jogos performáticos de linguagem? 

“A beleza da argumentação é que você sempre está certo”, dizia o porta voz da indústria de tabaco Nick Naylor no filme Obrigado Por Fumar.  Daí, a judicialização das eleições, ameaça de Trump ao final do debate, cancelando e ameaçando como inúteis os dois próximos debates programados.

Concluindo, compreende-se o porquê da grande mídia abraçar tão apaixonadamente a campanha contra as fake news... ao lado dos “disparos em massa” nas redes sociais, já são ferramentas superadas. 

Trump acena com a desconstrução final da democracia liberal com os jogos interpretativos da Suprema Corte. Seria um “golpe de veludo” com o mesmo know how desenvolvido pelo “Deep State” que patrocinou o “lawfare” que levou ao golpe político brasileiro?

Apenas por diversão... “for the lulz!”, como zoam nas “raids” da extrema-direita em fóruns e salas de bate papo. (Nota deste BlogLulz  =  gíria que vem de outra gíria usada na internet, o “lol”, sigla em inglês para “rindo muito alto” [“laughing out loud”] - Veja aqui).  -  (FONTE: Cinegnose - Aqui).

 

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