terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

FOLHETINS E FOLHETINESCOS


Folhetins e folhetinescos (I)

Por Walnice Nogueira Galvão

Quando a novidade que era o jornal diário foi inventada, ali pelo começo do séc. XIX, os pioneiros tiveram a brilhante ideia de estampar diariamente no rodapé da primeira página uma narrativa ficcional longa, romance ou novela, que se interrompesse no melhor pedaço. Isso que nós chamamos de suspense diz-se saborosamente em inglês cliff hanger, ou seja, o pedaço em que se fica pendurado num penhasco, para que ninguém resista à tentação de saber, no dia seguinte, se caiu ou não – sendo para tanto obrigado a comprar o jornal.

Esse objetivo primordial incidiu sobre a forma da narrativa, criando uma estrutura “em picos” de interesse que se elevam e recaem a intervalos regulares, ou seja, à medida do rodapé. Tornou-se habitual na produção ficcional da época que os maiores nomes do romance (Balzac na França, Charles Dickens na Inglaterra, entre tantos outros) publicassem primeiro na página do jornal. Depois, quando saía o livro, essas características estruturais estariam absorvidas pelo gênero.
Além desse, outros truques havia para prender a atenção do leitor e, por assim dizer, viciá-lo. Como é o caso de certos temas recorrentes, todos da mais baixa extração, e que hoje migraram para a telenovela. Entre eles os mais torpes e descabelados: crimes hediondos e sanguinários; irmãos inimigos; nascimentos obscuros que se revelam principescos; madrastas, é claro, malvadas; órfãos maltratados; tesouros escondidos; taras, maldições, incesto; troca de identidades, identidade secreta; crianças roubadas; papéis secretos; bruxas, premonições e profecias... Nada que não ressuscite em Harry Potter.
O recorde cabe a Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, que saiu em jornal durante o ano de 1843 e logo foi editado em 10 volumes. Folhetim de percurso interessantíssimo, retratava a vida dos pobres da cidade. Sabe-se que para se municiar, o autor, que era um dândi granfino, frequentou os piores antros de penúria, acabando por aderir aos pobres, o que deu um tom reivindicatório e politizado a seu romance. No jornal, o folhetim de Sue teve uma popularidade extraordinária e era esperado com ansiedade a cada dia. Todo mundo o lia. Mas a maior transformação foi a do autor, que transitou de um extremo da sociedade para o outro, numa trajetória raramente vista. Como se sabe, o contrário dela, o chamado “subir na vida”, é que constitui a regra.
Costuma-se atribuir o eclodir da Revolução de 1848, a primeira a ser chamada de “Primavera dos povos”, à influência da leitura de Os mistérios de Paris. Foi quando os pobres e oprimidos da Europa toda (e não só da França, como em 1789) se levantaram em rebelião, ao verem seus direitos conquistados a ferro e sangue pela Revolução Francesa crescentemente espezinhados pelos poderosos. Eugene Sue com todo o seu prestígio entrou na rebelião e seria até eleito deputado. A essa altura, já era um socialista. Com o advento de Luis Napoleão, que,  presidente pelo voto, daria o golpe e se tornaria o imperador Napoleão III, Sue teve que fugir da França. Morreria no exílio.
Ainda neste capítulo do folhetim, destaca-se uma das mais fascinantes personagens que já apareceu em literatura e que atende pelo nome de Vautrin. Personagem de Balzac, é um dos moradores da pensão Vaucquer, em que também vive o protagonista do romance  Père Goriot. Mas é mais desenvolvido em Esplendor e miséria das cortesãs, continuação de As ilusões perdidas. Trata-se, certamente, de uma personagem de folhetim, como muitas em Balzac. Mas esse é o campeão: o mais misterioso e fascinante, o pior e o melhor, o maior crápula e o mais generoso, o sacerdote renegado e o filantropo, o homem das mil máscaras e das mil profissões. O mais folhetinesco, enfim.
Quase tão fascinante é o Inspetor Javert, de Os miseráveis, de Victor Hugo. É ele o policial perseguidor implacável de Jean Valjean que, hoje cidadão respeitável e influente, escondia seu passado de quem cumprira 19 anos de prisão por ter roubado um pão para matar a fome. O romance todo, aliás, é de estética folhetinesca, embora, excepcionalmente, fosse publicado direto em livro e não antes em folhetins no jornal. - (Aqui).
(Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP).

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