sábado, 20 de agosto de 2016

O JULGAMENTO DE DILMA ROUSSEFF: A CONSTRUÇÃO DO CRIME


O julgamento de Dilma, parte 6: a construção do crime

Por Raimundo Rodrigues Pereira

No capítulo anterior falamos do cenário do crime, a violenta crise econômica, social e política que se abateu sobre o Brasil nos três últimos anos. Neste, falaremos das manobras para usar as leis existentes para enquadrar a presidente da República em “crime de responsabilidade”. Como se sabe, no julgamento para o seu eventual afastamento definitivo do cargo, os senadores terão de responder à seguinte pergunta, do presidente do Supremo Tribunal, Ricardo Lewandowski, que presidirá as sessões: “Cometeu a acusada, a senhora presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União (art. 11, item 3, da Lei 1079/50) e à abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional (art. 10, item 2, da Lei 1079/50) que lhe são imputados e deve ser condenada à perda de seu cargo, ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de oito anos?”.
Nessa introdução, antes de contar a história, um esclarecimento essencial: se for punida, a presidente da República não o será por uma antiga lei brasileira, a 1079, de 1950, como a pergunta a ser feita aos senadores parece sugerir. A verdade é que, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, mudou-se radicalmente a lei 1079, que define os crimes de responsabilidade dos governantes do País. Especialmente para o presidente da República, a antiga 1079 tratava, basicamente, da sua responsabilidade, como comandante das Forças Armadas, na defesa da soberania nacional. Para atender aos requisitos inseridos na LRF – sempre é bom lembrar, negociados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com os dirigentes do FMI e do Tesouro americano – os crimes da presidência da República se multiplicaram na área financeira. E o mandatário ou, no caso, a mandatária máxima do País passou, através de uma dezena de itens novos inseridos na 1079, a ser como que o defensor de uma espécie de soberania nacional às avessas. Transformou-se num tesoureiro-mor, encarregado de vigiar para que todos os anos haja o chamado resultado primário, saldo entre receitas e despesas da União, para pagar pelo menos parte dos juros da dívida pública com os credores, os principais dos quais estão preocupados em retirar de nosso País, em dólares, os resultados de seus investimentos e aplicações financeiras – estas, destacadamente, visto que há um quarto de século aproximadamente pagamos os juros mais altos do planeta.

1. Vamos contar essa história a partir de dois personagens principais, bastante diferentes um do outro. O primeiro a entrar em cena, o promotor público Júlio Marcelo de Oliveira, que desempenha seu ofício junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) é falante, tem um tom muito afirmativo. O segundo, contido, quase tímido, é Antônio Anastasia, senador pelo PSDB de Minas Gerais, relator da Comissão Especial de Impeachment (CEI) do Senado, formada para analisar as provas do processo.
Júlio Marcelo pode ser chamado de o campeão da defesa da cassação do mandato da presidente Dilma. Talvez seja o único a testemunhar pela acusação no plenário do Senado, na sexta, dia 25, quando começa a oitiva das testemunhas da fase final do julgamento [Cada lado tinha direito a seis; no fechamento deste artigo, as seis da defesa da presidente já estavam definidas; mas se dizia, no Senado, que só Júlio Marcelo – ou, no máximo, mais uma testemunha falaria pelos acusadores].
Comissão Especial do Impeachment 2016 (CEI2016) realiza reunião para ouvir testemunhas de acusação. À mesa, o procurador do Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira (testemunha). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Comissão Especial do Impeachment 2016 (CEI2016) realiza reunião para ouvir testemunhas de acusação. À mesa, o procurador do Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira (testemunha). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Foi ele que, em agosto de 2014, oficiou o TCU para que se fizesse uma auditoria nas contas do governo sobre um tema do qual a grande mídia falava muito na ocasião: as chamadas pedaladas fiscais. Recentemente em grande entrevista ao Correio Braziliense, o principal diário da capital federal, Júlio Marcelo resumiu suas conclusões sobre o resultado do inquérito pedido por ele à corte de contas. A investigação teria mostrado que o governo Dilma utilizara, em anos anteriores e em 2015, “em escala bilionária, o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa como fontes de recursos”. Ele afirmou que tinha existido “um plano de maquiagem de contas fiscais” para usar os bancos nessa escala e ampliar despesas do governo. E deu um exemplo, que lhe pareceu “gritante”, o do Fies, Fundo de Financiamento Estudantil. Disse: “Havia R$ 5 bilhões de dotação [orçamentária nesse programa] em 2013. Passa para R$ 12 bilhões em 2014, que é ano eleitoral. E em 2015 corta-se o programa para R$ 5 bilhões. Conheço estudantes que tiveram de entrar na Justiça para renovar o Fies de um ano para o outro. Em 2014, tinha para todo mundo. Em 2015, começaram a criar critérios [para inscrição no programa]. Isso aconteceu porque não havia mais [o dinheiro das pedaladas com os bancos públicos] para renovar o financiamento”.
A história das pedaladas é complexa e não é o objeto deste artigo. Não apenas Júlio Marcelo, mas figuras de destaque no governo Dilma, foram contra elas. Nelson Barbosa, ministro do Planejamento da presidente do início de seu primeiro mandato até maio de 2013, as considerava um risco, tendo em vista o caráter vago da Lei de Responsabilidade Fiscal, (que) – segundo achava ele, já na época – permitiria criminalizar o governo, como de fato está acontecendo. Como mostramos em capítulo anterior, duas dúzias de assessores de Arno Augustin, então secretário do Tesouro, se reuniram com ele para lhe cobrar explicações. O Advogado Geral da União, (Luis) Inácio Adams também disse, na própria CEI, que era contra essas operações. No entanto,  Barbosa, Adams e Augustin são absolutamente contra o uso dos erros cometidos nessas operações como “crimes de responsabilidade” passíveis de punição com o impeachment da presidente. Não é o caso de Júlio Marcelo.
Veja-se o exemplo “gritante” que ele cita. O Fies ao ver dele é uma das provas evidentes das manipulações eleitoreiras da presidente Dilma com dinheiro dos bancos públicos. De fato, as bolsas de financiamento aos estudantes com juros subsidiados e prazos especiais para pagamento, do Fies, cresceram muito no governo da presidente. Criado no governo Fernando Henrique Cardoso, o programa oscilou entre 30 e 80 mil contratos, nos onze anos entre 1999 e 2010, final dos governos Lula. Mas, não cresceram no ano eleitoral de 2014 apenas. Nos quatro anos do primeiro governo Dilma dispararam: deram quatro saltos sucessivos, primeiro para 150 mil e no final para cerca de 750 mil contratos. E caíram para cerca de 315 mil em 2015. Além disso, não têm a ver com o processo de impeachment em curso o qual, o próprio Julio Marcelo reconhece, no caso dos supostos empréstimos dos bancos públicos, está restrito ao ano de 2015 e ao Plano Safra, tocado pelo Banco do Brasil. E o Fies é tocado pelo Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação.

2. No TCU, a investigação das pedaladas pedidas por Júlio Marcelo foi encaminhada por Antônio D´Ávila, auditor. Julio Marcelo e D´Ávila foram as duas únicas testemunhas da acusação apresentadas na CEI. Para comparação, a defesa apresentou 38 testemunhas. D´Ávila foi o segundo a falar mas o que mais emocionou a bancada pró-impeachment. Relatou seu trabalho. Disse que nele teria achado fatos “de gravidade altíssima”, com “ofensas seríssimas aos mais fundamentais princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal”. Em uma resposta ao senador Ronaldo Caiado (PSDB-GO), acrescentou que a gravidade observada era tal, a ponto de ele não acreditar no que estava vendo. Aparentemente, ele tinha medo de estar errado e de ser contraditado: “Eu confesso isso a V. Exª. Eu não acreditava que estava diante daquela situação, de tal sorte que, ao receber o contraditório, os argumentos da outra parte, me dava um frio na barriga tão grande...” Mas, “infelizmente”, concluiu, o que via eram atos que, do seu ponto de vista “contrariavam os mais fundamentais, os mais sensíveis, os mais caros fundamentos da Lei de Responsabilidade Fiscal”.
Além da emoção e dos superlativos sobre as excelsas virtudes da LRF, D´Ávila nada acrescentou aos senadores que o ouviam. Não foi o caso de Júlio Marcelo, o primeiro a falar e, ao término de sua fala, aplaudido pela bancada pró-impeachment. Na verdade, para os defensores do impeachment ele falou o de sempre: das “fraudes fiscais, que envolveram o uso dos bancos federais como um cheque especial”; da “omissão desses passivos junto ao Banco Central, que fraudou as estatísticas fiscais e permitiu gastos que não seriam passíveis de execução”; e até da “fraude ao processo democrático”, por ter criado “uma falsa ilusão de governo capaz de realizar despesas para as quais não havia arrecadação suficiente.”
Na história do impeachment, esse papel de Júlio Marcelo não pode ser negado. Verdade seja dita, em 2015 não houve gastança e sim a maior contenção do orçamento público na história recente do País e, no ano anterior, a despesa pública já tinha, visivelmente, desacelerado. Mas, com suas divagações sobre a conjuntura, Júlio Marcelo ajudou a identificar, para a elite política que saiu das urnas nas eleições de 2014 – diga-se de passagem, uma das mais conservadoras dos últimos tempos –, o bode expiatório ideal: Dilma Rousseff, a feminista radical que exige ser chamada de presidenta; e, especialmente, sua gastança.
A CEI, no entanto não era a Câmara dos Deputados, onde a sessão de aprovação do pedido de impeachment tinha sido relativamente vexatória. Os senadores, supostamente, são gente mais sofisticada e serena. Lá, na questão dos alegados empréstimos do Banco do Brasil ao governo no chamado Plano Safra, havia uma bancada aguerrida, pró-Dilma que insistia no fato de o processo do impeachment ser, além de político, também jurídico. Estes senadores cobraram de Júlio Marcelo uma explicação para as seguintes contradições:
*Os atrasos de pagamentos do Tesouro ao Banco do Brasil, por subvenções de juros nos empréstimos do banco a agricultores por esse plano – existiam em valor superior a 1 bilhão de reais anuais desde que a LRF entrou em vigor, há mais de catorze anos, portanto.
*Eles se transformaram, pela primeira vez, em 2015, por decisão do TCU, na conclusão da investigação iniciada por ele, Júlio, numa operação de crédito do banco para o governo.
*Não teria sido para, assim, não mais que de repente, caracterizar uma violação dos termos da LRF e inventar um “crime de responsabilidade” para a presidente da República?
Na sua exposição, Julio Marcelo explicou esses fatos a partir, não de uma apresentação dos termos precisos da LRF, mas de uma interpretação original dessa lei, de um conceito amplo feito para a própria LRF, por não se sabe quem, conceito que, no caso em tela, dos empréstimos dos bancos ao governo, seria mais amplo do que o da prática bancária normal e mais amplo também do que o existente no Código Civil. Disse, textualmente: “O conceito de operação de crédito da LRF é um conceito amplo feito para a própria LRF; é um conceito mais amplo do que o da prática bancária normal; do que o do Código Civil. E é por isso que ela [a LRF] diz que, para os efeitos dessa lei [da LRF], operação de crédito é qualquer operação financeira e etc... e enumera uma série de verbos. E diz, ainda, ao final: ‘e outras operações assemelhadas’. Mais adiante ainda diz: ‘para outras condutas a operações de crédito’. O objetivo é evitar que o banco federal seja fonte de recursos, direta ou indiretamente, para o custeio de despesas primárias da União.”
Nas suas respostas a perguntas feitas pelos senadores pró-Dilma, Júlio Marcelo reconheceu que não existe um contrato entre a União, Tesouro e o Banco do Brasil. Reconheceu também que o Plano Safra é regulado por lei federal, não por contrato entre as partes. Mas, a seguir, deu um drible nesse fato. Para contornar o fato de que não existe, nas leis brasileiras, operação de crédito que não seja definida por contrato entre partes, deu ao atraso de pagamentos do Banco do Brasil o poder mágico de criar operações de crédito sem contrato. Disse: “Agora, esta regulação, este regramento estabelecido na lei é para o seu funcionamento normal. Quando a União, quando o Tesouro, deixa de mandar o dinheiro para o Banco do Brasil, isso é uma deformação, isso é uma violação do funcionamento normal, do regramento normal. E se caracteriza, então, esse financiamento, do Banco do Brasil ao Tesouro, quando o Banco do Brasil assume os ônus financeiros de suportar um saldo negativo crescente, que não deveria e não poderia existir pelo funcionamento normal do Plano...” Júlio Marcelo disse ainda que aquele era o entendimento não só dele, mas do TCU e do Ministério Público.
Há mais de um ano a defesa da presidente está lutando contra a interpretação de que os atrasos do Tesouro no pagamento das equalizações de juros aos bancos públicos e, em particular ao Banco do Brasil, são operações (de) crédito desses bancos ao governo e, portanto, ilegais, há mais de um ano. Faz isso desde que esse conceito foi aprovado, na decisão preliminar do TCU, de condenação das contas do governo de 2014, em meados de junho de 2015. Conseguiu algumas vitórias importantes. No final de dezembro de 2015, após a sentença definitiva de condenação das contas do governo do ano anterior, pelo TCU, o relator da Comissão Mista do Orçamento do Congresso Nacional, senador Acir Gurcacz (PDT-RO) emitiu seu parecer, contrário à reprovação dessas contas. Na divulgação do relatório de Gurcacz, também a presidente da CMO, a então deputada federal Rose de Freitas (PMDB-ES), se disse contrária à qualificação dos atrasos dos pagamentos do Tesouro ao BB como operações de crédito.
Mais recentemente, em meados de julho deste ano, Ivan Marx, procurador da República no Distrito Federal, mandou arquivar o pedido de condenação do governo por crime, no caso de subvenções para equalização de juros do BNDES e do Banco do Brasil, por considerar que elas não são operações de crédito. “Nos casos da equalização de taxas devidas pela União ao BNDES no PSI [Programa de Sustentação dos Investimentos] e ao Banco do Brasil, no Plano Safra, não há que se falar em operação de crédito já que o Tesouro deve a diferença da taxa aos bancos e não ao mutuário. Não há abertura de crédito, mútuo ou qualquer dos outros itens referidos no artigo 29 da LRF. Os bancos não emprestam nem adiantam qualquer valor (…). Com relação à expressão 'ou outras operações assemelhadas', constante do referido artigo 29 da LRF [que veta também “operações assemelhadas” a operações de crédito], consideramos incabível sua utilização para fins penais. De qualquer forma, conforme a explicação acima exposta sobre o intuito das denominadas 'pedaladas fiscais', resta claro inexistir o dolo de realizar operação de crédito ou mesmo de se financiar por meio de bancos públicos. Para este último objetivo existiriam outros meios mais eficazes. A única intenção era a de 'driblar' as estatísticas de modo a maquiar o resultado fiscal”.
Como se vê, a discussão das pedaladas é mais ampla. O procurador Ivan Marx acha que as pedaladas foram um truque de maquiação de estatísticas oficiais. Mas a sua sentença é absolutamente clara: não se pode usar os atrasos do Tesouro ao BB, no subsídio aos juros agrícolas, como uma operação de crédito. Ou, como dizemos: é claro que essa interpretação foi inventada para criar um crime, para enquadrar a presidente Dilma criminalmente, para condená-la por “crime de responsabilidade” passível de impeachment.

3. A criação dos outros três “crimes de responsabilidade” – edição de decretos sem autorização legislativa - é mais recente. De novo, o procurador Júlio Marcelo e o TCU são figuras chaves dessa invenção, necessária para dar a pitada de seriedade jurídica ao processo político do impeachment. Outro personagem, no entanto, não pode ser deixado de lado nessa trama. Ele é, como mostraremos logo a seguir, a figura, aparentemente moderada e fria, do relator da CEI, senador Antônio Anastasia.
Comissão Especial do Impeachment 2016 (CEI2016) realiza reunião para ouvir testemunhas de acusação. Relator da CEI2016, senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) Foto: Pedro França/Agência Senado
Comissão Especial do Impeachment 2016 (CEI2016) realiza reunião para ouvir testemunhas de acusação. Relator da CEI2016, senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) Foto: Pedro França/Agência Senado
Como já se mostrou nesta série, os decretos de crédito suplementar constantes do processo de impeachment foram editados com a assinatura da presidente Dilma no início do segundo semestre de 2015. Pouco depois, a 12 de agosto, o TCU fez um enxerto nas irregularidades das contas de 2014 que denunciara dois meses antes: incluiu nelas sete decretos de crédito suplementar. Um mês depois, a 16 de setembro, a trinca Hélio Bicudo-Miguel Reale Jr-Janaína Paschoal também reformou a sua primeira versão do pedido de impeachment enviado à Câmara: igualmente, incluiu nela os decretos ilegais de 2014 apontados pelo TCU.
Os decretos não constaram do Relatório Preliminar com as supostas irregularidades nas contas do governo de 2014 apresentado pelo TCU em junho de 2015. Só foram incluídos posteriormente, como já se viu. A tese do TCU de que tais decretos eram ilegais só apareceu em 7 de outubro, data da decisão plenária final pedindo a rejeição das contas do governo de 2014. O relatório com a decisão diz que “o cerne da questão” relativa aos sete decretos é o fato de o Poder Executivo não ter feito a necessária “limitação de empenho e movimentação financeira no decorrer do exercício de 2014, mesmo diante dos fortes indícios de expansão de despesas obrigatórias e de que a meta de resultado primário não seria alcançada”. E diz que tais decretos infringiram a Lei Orçamentária Anual (LOA) por não serem “compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário”, o montante de recursos a ser economizado para pagar juros e impedir o descontrole da dívida pública.
Para o Tribunal, na época, o problema era a falta de contingenciamento – o corte nos gastos propostos inicialmente na lei orçamentária - ou o contingenciamento em valor inferior ao considerado necessário para conseguir atingir a meta proposta. No seu relatório, o TCU reconhece que os decretos de crédito suplementar são legais. Mas diz que sua edição estava sujeita aos decretos de contingenciamento. E só poderiam ser considerados válidos se o contingenciamento feito fosse o necessário para cumprir a meta vigente e não uma meta futura que ainda estava em discussão, para a qual o governo precisava de autorização do Congresso.
O relatório do TCU discutia também a questão das duas fontes de recursos utilizadas para fornecer os créditos suplementares a cada unidade orçamentária – os superávits financeiros de exercícios anteriores e os excessos de arrecadação do ano. Dizia que eles deveriam se destinar a recompor a meta, quando esta estivesse descoberta. Ou seja, o TCU, embora já apontasse para a possibilidade de considerar os decretos de crédito suplementar ilegais, sabia da complexidade do problema, da questão das fontes, da natureza das despesas, se obrigatórias – sem possibilidade de corte - ou discricionárias, passíveis de corte. E se concentrava no fato de o contingenciamento não ser feito no volume necessário para obtenção da meta vigente. A desobediência a esse princípio é que cassaria o direito do Executivo de editar decretos de suplementação.
No Senado é que surge a interpretação ideal da lei para se atribuir à presidente Dilma Rousseff o “crime” pela edição dos decretos de crédito suplementar. O motivo parece simples: para os que viram a chance de derrubar Dilma do governo a tese de o seu pecado ter sido o de não contingenciar despesas na quantidade suficiente não levaria ao que se precisava, a ela ter cometido um crime. Como diz a defesa da presidente em suas alegações finais encaminhadas ao plenário do Congresso na sessão no qual foi aprovado o Relatório Anastasia: o senador peessedebista precisava afastar a discussão do contingenciamento que fatalmente levaria à conclusão do absurdo da pena, “já que o não contingenciamento é uma infração administrativa, punida apenas com multa”.
Para criar a lei do crime de edição de decretos de crédito suplementar, Anastasia inventou, também como Júlio Marcelo, uma tese original. Os decretos de crédito suplementar deveriam ser observados a partir do superávit primário, sim; mas em duas dimensões – a da execução e a das autorizações orçamentárias. Algo como um superávit do mundo financeiro real, calculado ao final do ano, como o governo brasileiro vem praticando desde a aprovação da LRF, há uma década e meia, portanto; e um superávit virtual, do momento da edição do decreto, calculado a partir das suplementações aprovadas.
Anastasia afirma em seu relatório que a existência de resultados primários em duas dimensões é “o aspecto nuclear para o entendimento da parte da denúncia concernente à abertura de créditos suplementares por decreto presidencial”. Ele faz a seguir diversas distinções de despesas e de receitas. Diferencia despesas primárias e financeiras, voltadas para o pagamento das dívidas. E, como esperado, afirma que apenas as suplementações de despesas primárias seriam irregulares – suplementar despesas financeiras seria sempre operação do bem, para acalmar os credores, digamos.
Ao separar as receitas, Anastasia distingue as várias fontes de recursos utilizados para suplementação: o cancelamento de programações iniciais, total ou parcialmente; o excesso de arrecadação no ano; e o superavit financeiro de exercícios anteriores. E admite que a utilização de algumas dessas receitas seria neutra, em relação à realização da meta do superavit primário. Dá o exemplo: “Afinal, se determinada despesa primária autorizada for neutralizada, por exemplo, pela anulação de outra despesa primária, então o crédito não terá efeito deficitário”.
Anastasia diz também que despesas primárias custeadas por superavit financeiro do exercício anterior sempre reduzem o superavit primário; e, portanto, decretos de crédito suplementar não devem usar esse tipo de fonte. Quanto a usar o excesso de arrecadação do ano para decretos de suplementação de dotações, depende, ele diz. É preciso, então, examinar o contexto fiscal do momento. “O que se deve avaliar, todavia, como ponto menos trivial de análise, é a forma de apuração de excesso efetivamente disponível” (...) “a fim de se identificar a existência ou não de espaço fiscal disponível”.
Ele usa a seguir uma frase como a de todos os senadores que, ao procurar fugir da necessidade de provar de forma clara o que são os crimes pelos quais acham que a presidente deve ter o seu mandato cassado, dizem que a condenam pelo “conjunto” da obra. Mesmo assim, não parece seguro de sua conclusão. Diz que ela “parece razoável”. Textualmente, ele diz: “Considerado o ordenamento jurídico como um todo, parece mais razoável concluir que só passa a haver efetivo ‘excesso’ de arrecadação, para efeito de utilização como fonte para a abertura de créditos, quando o desempenho fiscal exceder a meta em vigor. No caso concreto de 2015, por exemplo, não havia excesso de arrecadação à luz da meta fiscal vigente.”
Diz a defesa da presidente, nas alegações finais que apresentou ao plenário do Senado, na sessão em que a presidente foi declarada ré, passível de condenação criminal: “Qual é o sentido desse conceito de meta fiscal no plano da autorização, inventado pelo relator, se o que importa nos dois casos [pelo critério novo inventado e pelo critério praticado há anos] é a execução financeira?"
A seguir, a defesa analisa as contas do relatório Anastasia ao calcular – usando seu novo critério, do superavit primário virtual, do momento de edição dos decretos de crédito suplementar. Primeiro, o relatório diz que “tomados isoladamente, três dos decretos examinados se mostram neutros em relação ao resultado primário contido na lei orçamentária e três apresentam repercussão negativa, no valor total de R$ 977,8 milhões, sobre a consecução da meta de resultado primário de 2015”. Mas, a seguir, o relatório acrescenta que “dois dos três decretos tidos como neutros utilizam-se de excesso de arrecadação de receitas primárias”.
E aí Anastasia usa a tese que parece ser uma contradição em termos: ele a tem como apenas “razoável” mas, no entanto, diz que ela é amplíssima, pois considera “o ordenamento jurídico como um todo”. Diz: “Tendo sido configurada, contudo, a inexistência de espaço fiscal, a utilização do excesso de arrecadação merece reparos. Significa dizer que, sob interpretação mais restritiva, porém adequada ao caso concreto, não apenas três, mas cinco decretos apresentam repercussão negativa, no valor consolidado de R$ 1.814,4 milhões, relativamente à obtenção da meta de resultado primário, em inobservância à condicionante fiscal gravada no art. 4º da Lei Orçamentária de 2015.”
Anastasia, como mostramos no capítulo anterior, manipulou grosseiramente as estatísticas para caracterizar o cenário do crime de gastança abismal que teria existindo no governo da presidente Dilma Rousseff. Veja, a despesa primária – tirando os juros e o refinanciamento da dívida – autorizada na LOA 2015 era de 1.168 bilhões de reais. A despesa primária de fato realizada foi de 1.162 bilhões de reais, ou seja, quase igual ao previsto, 8 bilhões menor. Ou seja, não houve gastança. Anastasia não quis ver que problema foram as receitas: o previsto eram 1.223 bilhões de reais, entraram nos cofres do governo 1.042 bilhões, ou seja, 181 bilhões a menos.
Agora, Anastasia voltou às contas de 2015 para examinar os decretos de crédito suplementar assinados pela presidente. Pelas contas feitas com os critérios usados pela Secretaria do Tesouro Nacional, há década e meia, nenhum dos decretos de crédito suplementar e nenhuma das unidades orçamentárias gerais gastou mais que o previsto na LOA. Anastasia, é claro, não podia aceitar essa conclusão. Torturou os números. E nos 1.162 bilhões de reais gastos em 2015, encontrou 1,8 bilhão, 0,1% de gastos - que ele acha razoável considerar ilegais tendo em vista seu inédito critério de superavit virtual, obtido pelo exame do ordenamento jurídico como um todo
(Fonte: AQUI).
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Na esfera CIVIL, há a possibilidade de RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL, a punição de uma empresa, p. ex., pelo ato ilícito praticado por um empregado, preposto, etc.
Na esfera PENAL, para que alguém possa ser condenado pela prática de crime, é indispensável o atendimento de dois requisitos básicos: a SUBSUNÇÃO, ou seja, o total ajuste do ato praticado ao tipo penal expresso em lei, e a existência de DOLO.
O que nos conduz a sustentar a inexistência de crime de responsabilidade é o fato de que os requisitos básicos acima referidos não são atendidos. 
(Nota: Procedemos a pequenas correções no texto).

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