sábado, 15 de novembro de 2014

REFORMA POLÍTICA: A FORMA E O QUANDO

              Promulgação da Constituição, 1988.

A orfandade da Constituição de 88

Por Wanderley Guilherme dos Santos

Entendo a Constituição de 88 como direito adquirido, não como transtorno autoritário. Em si mesma protegida, portanto, pelo inciso XXXVI, do artigo quinto, que reza: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Creio que uma Constituição derivada de legítima Assembleia com poderes para instaurá-la é exemplar como direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Não sei se o constitucionalismo profissional admite tais auto referências, mas é como vejo, politicamente, a questão. Depois de 21 anos de ditadura, lutas incessantes, convocatória legislativa reivindicada pela população, e por esta aceita como atendida, a Constituição elaborada pela Assembleia de 86 devia estar a salvo de magos e videntes institucionais.

Não há, contudo, mordomo mais óbvio em todos os deslizes nacionais, segundo a esquerda, a direita, o centro, o fim do mundo, grande número de políticos, o Executivo e a unanimidade dos meios de comunicação. Mas para abertura de processo faltam demonstrações quanto ao progresso econômico, político, social e moral que estariam sendo reprimidos por qual passagem constitucional e o que deveria ser posto em seu lugar para felicidade geral da nação. Nem me parecem suficientes para o alarido em torno do pomposo clichê “reforma política” as variadas e longe de inatacáveis propostas de nova legislação eleitoral. Sem fundamentos, as suspeitas são não mais do que difamatórias. Até prova cabal em contrário, a Constituição de 88 está órfã e vítima oficial de difamação.

Materialmente, admiro a clareza de seus princípios fundamentais e promessas na ordem econômica, política e social. Está no inciso III de seu artigo terceiro, consagrar como princípio fundamental “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. É por este abrigo constitucional que as políticas que vêm transformando o universo social brasileiro não são denunciadas como populismo irresponsável, salvo por um ou outro desajuizado, ou ferozmente combatida (provavelmente com sucesso) por ser “bolivariana”, genérico conservador, sem restrições de consumo.

Ainda é por conta do artigo quinto, em seus incisos III e XLIX (Título II – Dos direitos e garantias individuais), que atribuo a alguns ministros do Supremo Tribunal Federal a liberação do discurso do ódio na cultura política brasileira, na fase do julgamento da Ação Penal 470. O III diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, sendo enfaticamente reafirmado no XLIX, transcrito: “é assegurado aos presos a integridade física e moral”. Não existe crime, ainda que irrefutavelmente comprovado, que justifique tratamento pessoalmente degradante ao réu ou suposto criminoso. A temperatura fanática da época estimulou mórbido concurso de rituais de degradação. Conforme o primarismo da opinião pública, os réus, por seus crimes, estariam destituídos de quaisquer dos direitos assegurados aos cidadãos e cidadãs respeitáveis, isto é, à audiência da TV-Justiça.

Aparentemente amparados na mesma premissa, ministros perderam a compostura e o próprio sentido do Judiciário (Suprema Corte), vitimados por surtos de violência retórica incompatíveis com os preceitos constitucionais. No enredo, a suspeita implícita no substantivo “indício”, usado a granel durante as perorações, transformou-se, por via discursiva, em certeza material, sem necessidade de prova indubitável ou confissão do acusado. Argumentos disparados a torto e a direito fariam corar um secundarista em lógica, prestando vestibular para o curso de Direito. Foram também eles os responsáveis pela generalizada intoxicação de fanatismo partidário e social, inclusive com a crescente licenciosidade da linguagem pública. Ficou na moda dos colunistas, repórteres e oradores saborearem substantivos, adjetivos e verbos chulos. Associou-se a falta de estilo à falta de escrúpulo.

A abundância de calúnias contra Constituição de 88 contaminou o debate sobre ela própria. Vigem o panfletarismo e um dedo-durismo de fantasia a acusar de reacionários todos aos quais desagrada a volubilidade com que se acusa a Constituição de resistência a não sei qual avanço na democracia e no progresso material da população. Ademais, aproveita-se para a reiteração de outra parvoíce, a de que com “esse” Congresso será impossível qualquer reforma significativa (...). Daí se derivaria a necessidade de uma Assembleia Constitucional exclusiva, como se o qualificativo adicionasse alguma virtude aos putativos constituintes.

Repito a pergunta: os atuais mandatários da nação vão importar uma classe política da Islândia e um eleitorado da Suécia? Se não vão, de onde tiram a certeza de que tal assembleia “exclusiva” seria dotada de um saber e estofo moral superiores aos de qualquer Congresso jamais eleito por aqui? Ser ou não “exclusiva” nada revela sobre a qualidade dos eleitos, embora sirva de engodo para tolos. A propósito, lembro que a Islândia faliu outro dia em virtude dos atributos morais e políticos de seus homens públicos. Com panfletarismo e desinformação a ideia de “reforma política” continua a ser um ardil: quem me garante que a Assembleia exclusiva, formada por equivalentes dos atuais representantes, não aproveitará para cancelar precisamente as conquistas, entre tantas, aqui mencionadas?

O inciso IV do artigo 5 estabelece: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A liberdade aí garantida repele o assédio moral e ideológico a quem defenda opiniões diferentes das minhas. É bem possível que as cautelas e preferências aqui expressas venham a sofrer assédio ideológico. Faz parte da vida, mas espero que nunca venha a fazer parte da Constituição. (Fonte: aqui).

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Concordo que não há por que falar em Constituinte Exclusiva; o fato, porém, é que a discussão nesse momento soa um tanto 'apressada'. Explico: não parece haver disposição política para a execução de reformas: políticos 'profissionais' e especialmente a grande mídia, além de setores do Judiciário, não movem palha quanto ao tema. Basta ver o que ocorre com um dos itens envolvidos na pretendida reforma, em que o ministro Gilmar Mendes simplesmente 'engavetou' matéria já praticamente aprovada pelo STF, proibindo o financiamento empresarial de campanhas políticas: o ministro pediu vista do processo (que, vale repetir, já contava com a maioria dos votos necessários à aprovação) e desde então nenhuma providência foi tomada. Ou seja, um ministro, em ato monocrático, está a engessar não só a instituição STF, mas o próprio país no que tange a uma parte da reforma política. 

A propósito, leia "Devolve, Gilmar!" - AQUI.

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