sábado, 8 de março de 2025

CINEMA: MUDANÇAS DE GÊNERO

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EMILIA PÉREZ


Por Carlos Alberto Mattos

Contei pelo menos seis filmes diferentes dentro de Emilia Pérez. E quase todos são muito bons. Por vezes, pareceu-me que este seria o filme que Pedro Almodóvar sempre quis fazer mas não teve coragem. Está indicado a 13 Oscars e duramente criticado pela representação dos mexicanos e de pessoas transgênero, por uma declaração infeliz do diretor Jacques Audiard ligando a língua espanhola a “países modestos, de gente pobre e migrantes”, e ainda pela revelação de postagens racistas e preconceituosas da atriz Karla Sofía Gastón em passado recente. Não pretendo aqui entrar nessas questões, muito menos nas extra-fílmicas. Olho para o filme como já olhava antes de surgir toda essa retórica de cancelamento.

Inspirado por uma personagem do romance Écoute, de Boris Razon, Audiard concebeu Emilia Pérez inicialmente como um libreto de ópera em quatro atos. Entramos na história pelos dilemas da advogada Rita Moro Castro (Zoe Saldaña), cansada de ser mal paga para defender gente culpada de crimes. A oportunidade de mudar de vida chega com a proposta milionária de Manitas del Monte (Karla Sofía Gascón), chefão de um cartel do narcotráfico que também quer mudar de vida. Ele pede a ajuda de Rita para simular sua morte, cuidar de sua mulher (Selena Gomez) e filhos, e organizar sua transição de gênero a fim de ser o que sempre sonhou: Emilia Pérez.

Mas isso é só o início de uma trama que abrange melodrama descabelado, engajamento filantrópico, identidade dividida, thriller criminal, musical heterodoxo e ainda um toque de sátira religiosa no epílogo. Tudo contra o background da violência mexicana, que produz mortos e desaparecidos. Em Cannes, o filme ganhou o Prêmio Especial do Júri e o de melhor interpretação feminina, repartido entre as quatro atrizes do elenco (incluindo Adriana Paz como uma personagem-surpresa).

Foi com algum espanto que vi os nomes dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne como coprodutores de um filme tão distante do seu universo. Mas, pensando bem, se olharmos através das cortinas de divertimento, Emilia Pérez é um arrazoado sobre o amor paternal que se impõe sobre toda metamorfose.

Qualquer informação sobre o enredo corre o risco de ser spoiler, uma vez que o filme se sustenta sobre suas “viradas”, mudanças de perspectiva e de gênero (refiro-me aqui aos gêneros cinematográficos). Audiard, criador atrevido e inventivo (De Tanto Bater Meu Coração Parou, O Profeta, Ferrugem e Osso, Paris 13º Distrito) estabelece desde cedo um pacto com o espectador quanto à natureza fantasiosa do filme. As cenas musicais irrompem do nada como recursos brechtianos de distanciamento da dura realidade de fundo.

Precisamos desse distanciamento para aceitar, por exemplo, a cena de um narcotraficante hiperviolento choramingando e cantando “quero ser ela”. Ou que esse mesmo personagem, depois da transição física, passe por uma radical transformação da alma. O que torna as coisas um pouco mais complexas é o que vai sobreviver de uma identidade na outra, com os conflitos que isso pode gerar.

Uma névoa de canastrice às vezes ronda o filme, inclusive nas inserções musicais, o que faz parte de sua proposta singular. O ato final, com sequestro, tiroteios e acidente, pode soar um pouco postiço, mas afinal reata com o tema da violência que estava posto desde o início.

Mencionei Almodóvar aí em cima não só pelo intenso protagonismo feminino e porque senti um retro-aroma (essa palavra existe?) de Tudo sobre Minha Mãe e Mães Paralelas. A meu ver, a audácia de Audiard em Emilia Pérez, domada pelo apego às formas clássicas do cinema de gênero, dialoga amplamente com o cinema do manchego.  -  (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).

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