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Realista e às vezes cru, Rua Guaicurus aborda rotina de garotas de programa
Passada a primeira metade de Rua Guaicurus, de João Borges, o cliente pergunta: “Quanto tá o programa?” A novata (Ariadina Paulino) responde: “Trinta reais. Três posições e um oral.” Ele e ela entram no quarto e, enquanto a porta fecha, o espectador arguto pode ler o que está escrito à mão, com pilot azul, em uma folha de cartolina branca, anunciando o serviço oferecido: “Michelle! Fogosa de Montes Claros faz gostoso.” Pequenos corações decoram o aviso.
O plano de abertura do filme parece ser o ponto de vista de alguém. A câmera percorre devagar um corredor largo com portas nas laterais, pouco iluminado por luz colorida que alterna vermelho, amarelo, azul e roxo. Silhuetas masculinas circulam, observando por instantes o que se passa nos quartos, onde cunilingus é a única atividade visível para o espectador por alguns momentos. No final do percurso, um casal conversa enquanto o homem acaricia os braços da mulher de calcinha branca e corpete preto. Ao lado da porta, um cartaz indica ser proibido colocar os pés na parede; outro proclama em letras maiúsculas: “GENTILEZA GERA GENTILEZA.”
Essa cena inicial de Rua Guaicurus é, de certa forma, uma pista falsa. Sua atmosfera, movimentação e luz sugerem que o filme é um documentário, em sentido estrito, baseado na observação, quando predominam, na verdade, encenações com atores e figurantes, contando também com intérpretes não profissionais no elenco. Isso sem deixar de ser realista e mesmo por vezes cru, além de feito a partir de vivências efetivas, inclusive alguns registros de natureza documental.
Após o breve prólogo e o título Rua Guaicurus em letras brancas sobre fundo preto, a novata entra em quadro carregando uma bolsa de viagem. Passa pela lateral da câmera e anda em direção ao final de outro corredor, vazio e bem mais estreito do que o da abertura, mas também com várias portas e iluminação multicolorida. O corte, no final do plano, comprova que a ação está sendo encenada e rompe qualquer possível ilusão a esse respeito – a câmera está dentro do quarto em que a porta é aberta e a novata entra, acende a luz, primeiro branca, depois vermelha, abre a bolsa e começa a arrumar suas coisas.
Não creio exorbitar ao escrever que Rua Guaicurus é em parte um filme de formação, de acordo com a classificação usual na crítica literária – romance de formação ou de aprendizagem –, em referência a relatos da trajetória de uma personagem e dos fatos decisivos que a tornam o que vem a ser.
No filme vemos o percurso da novata, cuja primeira providência, após terminar de desfazer a sacola, abrir a janela dando para a rua (gesto recorrente ao longo dos 75’ de duração do filme) e sentar no vaso sanitário, é procurar uma preceptora – a veterana Beth (Elizabeth Miguel dos Santos), personagem que vem de ser apresentada enquanto se prepara para o serviço: ela se despe, fica nua de costas diante da câmera, maquia os olhos e acende a luz vermelha do quarto.
Elizabeth Miguel trabalhou como garota de programa naquela rua entre 2014 e 2017, informa o press release de Rua Guaicurus, no qual conta que “consegue ver a Rua Guaicurus muito bem retratada, como ela de fato é… Quando você sente aquela atmosfera no filme, vê os clientes passeando pelo corredor, abordando as meninas, você percebe que é realmente daquele jeito que acontece, que é realmente daquela forma que se trabalha no dia a dia, no cotidiano. Isso me chamou muita atenção porque é muito difícil de retratar”.
Retomando Rua Guaicurus, Beth diz à novata que se trata de “aprender a trabalhar”: “usar o preservativo, colocar camisinha, saber como que são as coisas, né?…” A lição é longa e detalhada, com direito a um pênis de borracha para ilustrar explicações práticas. Existem “muitos caras”, ensina Beth à novata, “que têm vários tipos de fetiche e eles gostam de consolo. Eu também não sabia… Você tem que ter o seu consolo para você poder trabalhar e ganhar dinheiro. Realmente, o que eu ganho dinheiro é com consolo. Programa com consolo é 50 reais. Sessenta, setenta. Depende do tempo que você vai ficar com o cliente… Você tem que ter malícia para fazer programa, para você fazer um programa rápido e ganhar dinheiro e ele sair satisfeito…”. As instruções de Beth parecem improvisadas a partir de sua própria experiência, e a novata reage rindo com aparente espontaneidade.
A aula dura quase cinco minutos. É uma das sequências mais longas de Rua Guaicurus. Beth é também a protagonista de outra sequência que além de comprovar o que ensinou à novata tem tudo para ser a mais controvertida do filme. Ela recebe um cliente cujo fetiche que deseja praticar pela primeira vez é ser depilado com um aparelho que comprou especialmente para a ocasião. Os preparativos envolvem se excitar manipulando a vulva da garota de programa. A cena com viés sádico mostra o que segue a partir daí durante oito minutos e meio.
Shirley (Shirley Santos Dias) é a terceira personagem principal. Ela tem um filho e mantém relação estável com Carlos (Carlos Francisco), cliente a quem anuncia, nos doze minutos finais do filme, a intenção de mudar para o interior. Sentados em frente ao bar, na mesa da calçada, enquanto ela toma cerveja e ele bebe água, Shirley diz: “Tá difícil. Eu tou [sic] trabalhando, trabalhando, não tá dando resultado. Eu prefiro ir embora e lá ao menos eu vou ter mais apoio da minha família, né? Aqui eu só tenho apoio seu e lá… complicado, né?… Você ficou meio chateado, mas…” Carlos parece desconsolado. Os dois ficam em silêncio por um bom tempo até o final da sequência.
Uma galeria de personagens secundárias completa o elenco. Intercaladas com Michelle, Beth e Shirley, suas conversas breves são flagrantes do cotidiano e parecem documentais.
Quase no final do filme, o cliente diz a Michelle que “foi bom”, paga e se despede, prometendo voltar. Ela “chegou esses dias”, conforme disse a ele pouco antes, mas já deixou de ser novata. Depois que o cliente sai, guarda o dinheiro que recebeu e abre a janela do quarto. Senta no vaso, urina, lava-se e atende o celular: “Não, não. Ih! mãe, não precisa se preocupar, não. Tá tudo tranquilo, já. Não. Só a primeira semana que foi mais difícil. Agora já tá tranquilo, tá?”
Segue-se o minuto e 28 segundos finais, antes dos créditos de encerramento, dedicados a situar a rua-título na metrópole. Beth, sentada na cama com o olhar perdido, olha pela janela enquanto come de uma quentinha usando colher. O celular toca, mas ela não atende. O plano final é da rua movimentada com ônibus e carros passando, pessoas nas calçadas, um prédio envidraçado próximo e edifícios no horizonte.
Quem apresenta Rua Guaicurus, antes mesmo de as empresas distribuidoras e a produtora, é a Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, o que não deixa de ser inusitado em se tratando de um filme no mínimo ousado. Que tenha sido financiado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura é sinal positivo que merece destaque, prova de que a instituição pública se pautou por critério sem um viés moralista retrógrado. Por outro lado, da parte do diretor João Borges, é de se lamentar a obsessão em mostrar mulheres sentadas no vaso sanitário e algumas cenas de atos sexuais grotescas que forçam o espectador a ficar na posição de voyeur.
Rua Guaicurus estreou na Mostra Futuro Brasil do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2018. Percorreu, a partir do ano seguinte, inúmeras mostras e festivais, entre outros o DOK Leipzig. Três anos depois, (chegou em 14/7), na semana de estreia, aos cinemas de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Salvador e Balneário Camboriú. Sendo mais um filme da era a.P (antes da pandemia) não poderia evitar certa impressão de estranheza e parecer meio defasado por não conter referência alguma à crise sanitária em que já morreram mais de 674 mil brasileiros e brasileiras, e a média móvel de mortes nos últimos 14 dias estando em +6% indica tendência de estabilidade. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
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