segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

AS MULHERES NO CENÁRIO LITERÁRIO ÁRABE

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Haveria um lugar distinto ocupado pelas mulheres quando pensamos em literatura árabe?

             
(Radwa Ashour, escritora. 1946 / 2014)

Por Mariane Gennari

Haveria um lugar distinto ocupado pelas mulheres quando pensamos em literatura árabe?  -  O contato com um pequeno recorte da literatura árabe me fez pensar nessa questão. Foi exatamente quando li o que veio a se tornar um dos meus livros preferidos, Granada (2008), da escritora egípcia Radwa Ashur, ainda sem tradução para o português. A ficção histórica narra a trajetória, ao longo de mais de um século – a partir de 1492 –, de várias gerações de uma mesma família muçulmana que enfrenta violentas tentativas de apagamento de suas crenças e formas de vida no contexto da conquista cristã pela retomada dos territórios ibéricos. (Nota deste Blog: A Wikipedia registra Radwa Ashour, e não Ashur).

O primeiro livro da trilogia narra a vida de Salima, uma garota inteligentíssima, apaixonada por livros e pelo conhecimento. Ela cresce em Granada, na região da atual Andaluzia, no sul da Espanha, em tempos de violência contra os chamados “mouros” – árabes muçulmanos que viveram na península ibérica até meados do século XVI –, uma época dura especialmente para as mulheres. Minha primeira admiração é perceber que a vida de Salima é construída por ela mesma, ao romper com expectativas familiares, fruto de tradições históricas e culturais. Ela, de fato, se vê em um casamento, no entanto, não o encara como impedimento para seus sonhos. Ela o questiona e o afasta da centralidade da sua vida. A vontade de ajudar sua comunidade e acessar o conhecimento da natureza e do funcionamento do mundo a movimenta em direção a uma vida livre, mas não sem percalços, não sem dor.

A crítica ao casamento, à reprodução social de vida e às funções privadas de cuidado dos filhos e das atividades domésticas está, frequentemente, presente na forma como personagens mulheres são elaboradas nas narrativas literárias mais contemporâneas. Os destinos, aparentemente traçados desde sempre, são redefinidos através de uma perspicaz necessidade de driblar tradições opressoras e violentas. É o caso, por exemplo, da esposa de Rachid, narrador do E quem é Meryl Streep? (2021). Ao não nomeá-la, Rachid espera colocá-la nesse lugar de submissão e apagamento de sua individualidade, mas não sem que ela insista em se afirmar como uma pessoa com seus próprios desejos e ambições. Supostamente coadjuvante na narrativa, ela ganha destaque justamente nas brechas que encontra para ignorar o marido e excluí-lo de sua vida. Ele não se dá conta disso e tenta convencer a si mesmo e ao seu leitor de que ele é quem dita regras e comportamentos. Assim, a figura da mulher na literatura árabe parece confrontar o lugar que lhe é, muitas vezes, atribuído. Ela não quer algo definido, ela aparece como construtora de seu próprio destino.

Em livros de escritoras da diáspora árabe como Susan Abulhawa e Etaf Rum (ambas herdeiras do exílio histórico palestino), a centralidade da função social da mulher, responsável pela manutenção da vida familiar e privada, é deslocada ao emergir suas subjetividades em contraposição às projeções externas das suas sociedades, seja na terra natal, seja nos países a que imigraram. A confirmação de que muito da cultura árabe está calcada em tradicionalismos gera incômodo naqueles leitores que querem desconstruir estereótipos, mas o que acontece não é a reprodução de visões orientalistas, a condição das mulheres nessa literatura encontra ressonância na leitora que vê sua própria vida cheia de silenciamentos e restrições por estar inserida também em uma sociedade patriarcal.

Daí a importância dos contextos. A literatura não tem o papel de evitar tocar em um assunto por medo de que ele seja instrumentalizado e reforce essencialismos. A literatura provoca outros sentidos, que exigem o enfrentamento dessas contradições e permitem refletir sobre elas. Acaba, mesmo que sem querer, possibilitando imaginar outras construções de vida.

Mas não é como se a esperança estivesse no final do percurso das vidas dessas mulheres só porque elas se mostram capazes de tomar as rédeas de suas histórias. As autoras, em muitos casos, expõem em seus enredos um processo cheio de dores, interrupções e traumas que são, com frequência, parte de suas vidas também. Guerra, exílio e perdas reestruturam qualquer possibilidade de definição geral do que é a mulher na literatura árabe. As estratégias cotidianas para escapar do papel imposto a elas não é, também, sua salvação, é apenas um prolongamento, um suspiro, um instrumento de sobrevivência, assim como opera Sherazade, por exemplo.

Outro ponto interessante é a consciência de que os incômodos da vida privada podem estar em consonância com a vida coletiva. Nenhuma mulher deveria carregar o peso do mundo em nome da harmonia familiar ou da preocupação com o outro. No conto “Velas no Asfalto”, de Marie Tawk, da coletânea Beirute Noir (2021), percebemos o dilema em torno da decisão pelo divórcio, que é reiteradamente vista como emocional e carregada de impulsividade, como se o fim de um casamento tivesse a ver com lidar com o arrependimento de uma vida inteira. Mas Hyam, uma das personagens em crise, pondera sobre o sentido de sua vida quando a postura do marido a incomoda:

“…Você lembra do dia em que eu estava cozinhando e ele se recusou a me ajudar? Como ele pôde ficar lá sentado, todo bonachão e metido, se recusando a nos acompanhar?”

“Talvez ele não estivesse se sentindo bem ou estivesse cansado…”

“Ninguém está se sentindo bem. Estamos todos cansados. Há alguma outra coisa aí. Estou pensando em divórcio.”

A dimensão coletiva sobre a fragilidade da vida leva personagens a anteciparem escolhas particulares. O sacrifício pelo bem comum perde sentido diante das ruínas de uma cidade em guerra. A mulher que outrora dedicou-se a construir uma família com laços fortes e permanentes já não acredita mais no seu lugar de elo harmônico no tecido social.

Sentimento semelhante é expresso pela autora de uma das cartas sem destinatário do romance epistolar Correio Noturno (2020), da libanesa Hoda Barakat. Enquanto espera um antigo amante no quarto de um hotel, ela resolve escrever-lhe uma carta na qual reavalia sua própria vida e admite ter vivido um amor que a aprisionou na relação com o pai:

 “…passei boa parte da vida empurrando as coisas na direção da lógica estabelecida, antes de ficar exausta e parar de me mover na direção da lógica dos outros. Desde que parei de menstruar, ou, mais precisamente, desde a morte do meu pai, me surpreendi com um buraco aberto na parede da minha alma, por onde entra um frio gelado, mas que ao mesmo tempo me liberta das paredes surdas construídas ao meu redor, sem saber quem as construiu nem por quê. Foi de repente que descobri isso, quando comecei a ver o mundo se infiltrar em mim e quase me afogar.”

A garantia ilusória de pertencimento ofusca o encontro com sua singularidade, que é resgatada por essa mulher no impulso pelo rompimento com as expectativas sociais a ela dirigidas.

O lugar ocupado pelas mulheres na literatura árabe expressa as contradições de suas sociedades, considera o contexto e permite aproximações com a experiência de ser mulher em toda parte do mundo. A percepção de uma imensa diversidade de personagens, histórias e experiências das mulheres na literatura árabe nos convida a deslocar o olhar daquilo que engessa a cultura e a história, confirmando que há uma multiplicidade de sentidos na realidade.

Nessas leituras, então, não aprendemos sobre quem são essas mulheres, mas descobrimos quem nós somos ao lê-las.  -  (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).

(Mariane Gennari é formada em história, é professora e possui mestrado em história social com dissertação sobre literatura palestina. Atualmente organiza o Clube de Leituras Mundo Árabe e Diásporas do CEAI-UFS  /  Texto Publicado originalmente em editora Tabla)

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