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Eleitorado feminino é o que mais sofre com os efeitos concretos da degradação das condições de vida
Por Ana Carolina Evangelista
Entramos no período eleitoral com a clareza de que teria mais chances de vencer as eleições à Presidência quem soubesse ouvir e responder às preocupações das mulheres. Mas, para além dos números que mostram que as preferências eleitorais entre mulheres e homens se diferenciam cada vez mais, o que está em jogo? Quais são as histórias da vida real por trás dos números?
O eleitorado brasileiro é mais feminino e vem rejeitando Jair Bolsonaro desde 2018. Desde 2002, o número de mulheres registradas como eleitoras supera o de homens; elas são maioria em todas as faixas etárias, inclusive entre 16 e 17 anos, quando o voto é facultativo. As mulheres eleitoras também superam os homens nos estratos de escolaridade mais altos – a partir do ensino médio completo – e entre analfabetos.
Presidentes brasileiros, desde a redemocratização, foram eleitos com proporção semelhante de apoio do eleitorado masculino e feminino, mesmo quando mulheres concorreram à Presidência e se elegeram, mas isso vem mudando a partir das eleições de 2018. A uma semana do primeiro turno, as mulheres também compõem a maior proporção dos eleitores ainda indecisos, uma tendência que, na verdade, se confirma a cada eleição. Segundo a última pesquisa do Datafolha, o percentual de indecisos entre as mulheres chega a 19%, e entre os homens, a 9%.
No grupo evangélico – segmento do eleitorado que vem mostrando um teto no crescimento da vantagem do presidente Bolsonaro há pelo menos cinco rodadas das principais pesquisas na praça – as mulheres chegam a quase 60%.
Nesse marco de especificidades quanto ao peso estatístico das mulheres num processo eleitoral, a vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre Bolsonaro tem sido cada vez maior. Segundo o último levantamento do Datafolha, Lula tem 49% das intenções de voto, e Bolsonaro, 29%. Segundo recente pesquisa específica realizada pela Quest, as mulheres são mais preocupadas que os homens com a pandemia, e essa preocupação tem feito com que elas não votem em Bolsonaro.
Mas de que forma esses números refletem o que acontece na vida real das mulheres? Que equilibramos muitos pratinhos ao mesmo tempo entre trabalhos domésticos, emprego e diferentes atividades de cuidado com o nosso entorno, isso já sabemos. Mais de dois anos de pandemia e quatro anos de um governo que desestruturou políticas públicas essenciais, no entanto, agravaram ainda mais as condições de vida das mais de 100 milhões de mulheres brasileiras equilibradoras de muitos pratos.
O estudo O Trabalho e A Vida das Mulheres na Pandemia, realizado pela organização de mídia Gênero e Número em 2020, já evidenciava duas dimensões muito importantes traduzidas nos números deste ano eleitoral: por um lado, os trabalhos necessários para a sustentabilidade da vida estão nas mãos das mulheres, e eles não só não puderam parar durante a pandemia, como se intensificaram. Por outro, aprofundou-se um cenário de insegurança financeira e alimentar. Tudo isso num pano de fundo no qual as desigualdades de renda e de raça tornaram-se ainda mais marcadas. Esse cenário de sobrecarga de trabalho e piora nas condições materiais de vida é ainda mais agravado entre as mulheres negras e de baixa renda.
Metade das mulheres brasileiras começou a cuidar de alguém durante a pandemia. “O cuidado está no centro da sustentabilidade da vida. Não há a possibilidade de discutir o mundo pós-pandemia sem levar em consideração o quanto isso se tornou evidente nesse momento de crise global, que nos fala sobre uma ‘crise do cuidado'”, afirma o estudo.
Três em cada quatro mulheres viram aumentar a necessidade de monitoramento e companhia de quem cuidam, muito frequentemente crianças, idosos ou pessoas com deficiência. Essa é uma dimensão do cuidado muitas vezes invisibilizada, pois não se trata de uma atividade específica como é o auxílio na alimentação, por exemplo. Em casa, os tempos do cuidado e os tempos do trabalho remunerado se sobrepõem no cotidiano das mulheres. Mesmo enquanto realizam outras atividades cotidianas, seguem atentas.
Dentre as mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia, 41% afirmaram ter começado a trabalhar mais. Durante a pandemia, as relações entre trabalho e atividades domésticas se misturaram ainda mais. Mulheres já equilibravam mais pratos simultaneamente, se considerarmos ambas as dimensões, e isso se agravou ainda mais porque as tarefas ainda não são distribuídas de forma equânime no ambiente doméstico.
Quarenta por cento das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco. Diz o relatório: a maior parte das que têm essa percepção são mulheres negras (55%), que no momento em que responderam à pesquisa tinham como dificuldades principais o pagamento de contas básicas ou do aluguel.
Índices de desemprego no Brasil entre mulheres já evidenciam uma diferença de raça importante e, durante a pandemia, esses dados se tornaram ainda mais alarmantes, com milhares de vidas e lares comandados por mulheres negras desempregadas tentando pagar as contas e colocar comida na mesa para os seus filhos.
Quanto à percepção de violência, 91% das mulheres acreditam que a violência doméstica aumentou ou se intensificou durante o período de isolamento social. Quando perguntadas sobre suas experiências pessoais, no entanto, menos de 10% afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento. Esse percentual sempre cresce entre mulheres de baixa renda.
Muito desse cenário, captado em 2020 com desdobramentos até os dias de hoje, é reportado e corroborado por recente estudo mundial em mais de 120 países. As mulheres nunca estiveram tão estressadas, preocupadas e tristes na última década como agora, afirma o estudo, intitulado Hologic Global Women’s Health Index, encomendado ao Instituto Gallup pela Hologic, empresa dos Estados Unidos voltada para a saúde feminina. O Brasil se destaca negativamente entre todos os países analisados.
O estudo mostrou que a saúde das mulheres em todo o mundo piorou em 2021 em relação a 2020, apesar do recuo da pandemia. Elas também tiveram mais dificuldade no acesso à comida, e apenas 12% fizeram algum exame para diagnóstico de câncer.
O estudo também identificou que o bem-estar das mulheres piorou. Mais de 4 em cada 10 mulheres disseram que sentiram preocupação (43%) e estresse (41%) durante grande parte do dia anterior à pesquisa. Quase 1 em cada 3 experimentou tristeza (32%). Mais de 1 em cada 4 sentiu raiva (26%). Em todas essas dimensões, os índices bateram recordes comparado a anos anteriores.
Estresse, preocupação e tristeza também são fortemente aplicáveis ao contexto das mulheres brasileiras ao longo da pandemia. E, para uma parcela considerável delas, o governo teve responsabilidade sobre isso além dos efeitos práticos e concretos no seu cotidiano com o Brasil de volta ao mapa da fome, defasagem de aprendizagem recordes de seus filhos e evasão escolar, além da ainda maior precariedade nas condições de trabalho para garantir subsistência.
A essa crítica se soma a análise sobre o comportamento do presidente em relação às mulheres. Segundo levantamento do Datafolha, Bolsonaro é visto como o que mais ataca as mulheres. Quando os entrevistados foram perguntados sobre isso, 51% citaram o presidente, com Lula recebendo 12% das respostas.
A maioria das mulheres continua não comprando a estratégia bolsonarista de mobilizar símbolos e medos e está preocupada com os fatos. Por trás dos números nas intenções de voto estão mulheres equilibrando muitos pratos ao mesmo tempo, com a vida em condições bem piores do que quatro anos atrás.
Desde o início desse processo eleitoral, as pesquisas mostram apenas dois candidatos entre os preferidos do eleitorado em geral. Um diz: “A palavra não é governar, é cuidar do povo.” O outro afirma: “Chega de vitimismo”, quando questionado sobre a forma como trata as mulheres. Sinceramente, é simples entender o voto das mulheres no próximo domingo. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
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(Ana Carolina Evangelista é cientista política, doutoranda pelo CPDOC/FGV e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião - ISER).
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