sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O SISTEMA FINANCEIRO PROVOCOU O DESAPARECIMENTO DA SOLIDARIEDADE MUNDIAL

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O secretário-geral da ONU denunciou em Davos que 80% dos recursos destinados à recuperação econômica estão parando nas mãos dos países mais ricos


Por Martha Golfin

“A crise causada pela covid-19 desacelera drasticamente a recuperação econômica global e compromete os ganhos obtidos no avanço da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”. Essa foi a principal declaração de António Guterres, secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas) no Fórum Econômico Mundial de Davos.

Em seu discurso, Guterres colocou sobre a mesa o que considerou uma evidência “brutal” que tem sido vista nos últimos dois anos: “se deixarmos alguém para trás, no final ficamos todos para trás”.

“Se não vacinarmos todas as pessoas, daremos origem a novas variantes, que se espalham além-fronteiras e paralisam a vida cotidiana e as economias”, explicou, estendendo seu raciocínio aos problemas gerados pelo financiamento da dívida para os países em desenvolvimento: “se não reduzirmos as desigualdades, prejudicaremos o progresso econômico de todas as pessoas, em todos os países”.

Ao se referir a esses problemas, Guterres acrescentou a dificuldade em colocar em prática as ações climáticas necessárias que, se não cumpridas, causarão ainda mais catástrofes e deslocamentos em massa.

O secretário-geral ressaltou que a consequência de todos esses fatores será maior agitação social e aumento da violência.

“Não podemos permitir esse tipo de instabilidade. Para traçar um novo curso, precisamos que todos comecem a trabalhar, especialmente todos os membros da comunidade empresarial global”, disse.

Para alcançar essa nova trajetória, Guterres indicou as três principais áreas de ação: enfrentar a pandemia “com equidade e justiça”, reformar o sistema financeiro global “para que funcione em todos os países” e apoiar ações climáticas genuínas nos países em desenvolvimento.

É urgente colocar em prática uma campanha de vacinação mais igualitária

O secretário-geral lembrou que o mundo “está muito longe de atingir as metas estabelecidas pela OMS (Organização Mundial da Saúde)”, lembrando que a entidade, no ano passado, defendeu que era preciso vacinar 40% das pessoas com esquema completo (ao menos duas doses de algum dos imunizantes disponíveis) em todos os países até o final de 2021, e 70% até meados de este ano de 2022.

“As taxas de vacinação nos países desenvolvidos são, vergonhosamente, sete vezes superiores às dos países africanos”, salientou Guterres, que também destacou a necessidade de que todos os países priorizem o fornecimento de imunizações ao mecanismo COVAX, e que as empresas farmacêuticas permitam a quebra de patentes, conhecimentos e tecnologia com os países em desenvolvimento.

Essa ação deve ser acompanhada de planos de vigilância, detecção precoce e resposta rápida em todos os países, de forma a se prevenir contra futuras pandemias, e reforçando a influência da OMS.

O sistema financeiro global falhou com os países em desenvolvimento

Sobre a questão da economia, Guterres enfatizou que o mundo está consolidando a fase de recuperação econômica dos países com relação aos efeitos da pandemia, mas que esse esforço se está desenvolvendo de forma “desequilibrada”.

“Mais de oito em cada dez dólares dos recursos para a recuperação estão sendo gastos em países desenvolvidos. Os países de baixa renda estão em grande desvantagem”, afirmou.

Entre as consequências que afetam a recuperação dos países em desenvolvimento, ele listou: a inflação sem precedentes, a redução do espaço fiscal, as altas taxas de juros e o aumento dos preços da energia e dos alimentos.

“Eles sufocam qualquer esperança de crescimento, tornando ainda mais difícil para os governos investir nos sistemas sustentáveis %u20B%u20Be resilientes que as pessoas precisam. Saúde, educação, trabalho decente e proteção social não são apenas direitos humanos. Eles representam coletivamente o motor econômico de um país”, denunciou Guterres.

Um motor que ele considerou que está atualmente parado, o que produz consequências terríveis para a subsistência das pessoas, especialmente para mulheres e jovens.

“O sistema financeiro global falhou com as pessoas quando elas mais precisavam, e a solidariedade global desapareceu”, lamentou o secretário-geral.

Para recuperar essa confiança, Guterres destacou a necessidade de alcançar um sistema financeiro global que se adapte às necessidades atuais e que inclua:

Reestruturação urgente das dívidas;

Ir além do Produto Interno Bruto, para medir, mitigar e se preparar para riscos de vulnerabilidade e investimento, especialmente os riscos climáticos;

Combater a corrupção e os fluxos financeiros ilícitos, garantindo que os sistemas fiscais sejam justos;

Reunir governos, empresas e o setor financeiro para aumentar seus investimentos em países em desenvolvimento.

Emissões poluentes devem ser reduzidas em 45% durante esta década

O chefe da ONU destacou que nas condições atuais as emissões de gases poluentes apontam para um aumento de 14% até o ano 2030. Um recorde, mas também “um desafio à razão, que significa não ignorar os impactos desse problema nas pessoas, nas economias e no nosso planeta”.

“Na verdade, precisaríamos de uma redução de 45% nas emissões globais nesta década”, ressaltou António Guterres.

Além disso, o secretário-geral afirmou que a inação sobre esse tema durante as últimas duas décadas fez com que o custo econômico das catástrofes relacionadas ao clima disparasse em 82%.

“Em 2021, as condições climáticas extremas causaram perdas de 120 bilhões de dólares e mataram mais de 10 mil pessoas. Além disso, 30 milhões de pessoas tiveram que deixar suas casas devido às mudanças climáticas, o triplo do número de pessoas deslocadas pela guerra e pela violência”, alertou.

Guterres acrescentou que 1 bilhão de crianças correm alto risco de sofrer as consequências dos impactos das mudanças climáticas.

Para endireitar o rumo nas nações que emitem grande quantidade de gases poluentes, o secretário apelou à “força de vontade” e à engenhosidade de governos e empresas.

Também defendeu a criação de alianças entre países, instituições financeiras públicas e privadas, fundos de investimento e empresas com o conhecimento tecnológico necessário para prestar apoio financeiro e técnico específico, para ajudar as principais economias emergentes a acelerar a transição.

Nessas nações, ele destacou que “a primeira prioridade deve ser a eliminação progressiva do carvão. Nenhuma nova usina de carvão deve ser construída”, citando como exemplo os governos da Indonésia e do Vietnã.

Ao mesmo tempo, Guterres pediu que todo o sistema financeiro e outros setores, como aviação e transporte marítimo, se unam à meta de atingir zero emissões de gases de efeito estufa até 2050.

Guterres encerrou seu discurso solicitando o apoio, as ideias, o financiamento e a voz da comunidade empresarial global nas três áreas de atuação.

“Não podemos continuar construindo muros entre quem tem e quem não tem. Ou construir muros que minam um mercado global que deve funcionar em conjunto. Temos que nos unir – entre países e setores – para ajudar aqueles que mais precisam de ajuda. Vamos nos unir para fazer de 2022 um verdadeiro momento de recuperação”, invocou o secretário-geral.  -  (Fonte: Carta Maior - Aqui).

(Publicado originalmente em 'Diario16'). 

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