quarta-feira, 3 de novembro de 2021

MOSTRA DE CINEMA SP: "TRÊS IRMÃOS" E "66 QUESTÕES DA LUA"

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Mais duas histórias de pais e filhos, marcadas seja por opressão, dedicação ou incomunicação

Por Carlos Alberto Mattos

                        
Rebanho arcaico

Não fosse o rótulo de documentário, Três Irmãos (Brotherhood) bem poderia ser assistido como a um pequeno filme independente de ficção feito nos confins da Bósnia. A armação das cenas, a decupagem em campo e contracampo, as elipses de passagem do tempo, tudo responde a um modelo de continuidade típico do filme ficcional. Só faltou mesmo ao diretor Francesco Montagner conferir uma dramaturgia mais sólida a sua proposta.

Gravado ao longo de alguns anos, o filme cobre três períodos. No primeiro, vemos Ibrahim "Ibro" Déli%u007 no rígido trato com o seu rebanho de ovelhas e os três filhos adolescentes. Quando ele é recolhido à prisão por ter participado da Guerra da Síria e sido acusado de terrorismo, os meninos passam a viver sozinhos e desfrutar de uma liberdade inédita. Por fim, Ibrahim retorna à casa depois de dois anos e retoma o controle sobre sua prole.

Enquanto estão distantes do pai, Jabir, Usama e Uzeir deixam explodir suas diferenças. Há aquele que se liberta do jugo paterno pelo trabalho e o amor; outro que assimila e reproduz o fanatismo do pai; e o mais novo, que está em busca do seu caminho entre os games do celular e o Alcorão. Em comum, existe o cultivo de uma masculinidade muito balcânica nas brincadeiras de luta e nas simulações de um estado de guerra que ainda ecoa os conflitos da região nos anos 1990.

Como era de se esperar num filme rural, Montagner confere grande importância à paisagem, às vezes com uma palheta que lembra pinturas impressionistas. A sucessão de conversas em torno da fogueira e de atividades do pastoreio deixa entrever um misto de observação e encenação quase indiscernível. Se estilisticamente o filme se realiza com certa eficácia, do ponto de vista do desenvolvimento do seu tema – os efeitos da presença e da ausência do pai – é preciso reconhecer que não vai muito além do rascunho.

Três Irmãos pertence a uma estirpe que antigamente se chamava de europudim. Produção majoritariamente tcheca, diretor italiano, assunto bósnio. No Festival de Locarno, ganhou o Leopardo de Ouro na categoria Cineastas do Presente.

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                    66 Questões da Lua


Simbolismos e fisioterapia

Cartas de tarô, personagens com nomes mitológicos e referências às fases da Lua almejam conferir um subtexto simbólico a uma história de puro realismo psicológico em 66 Questões da Lua (Selene 66 Questions). É o primeiro longa da grega Jacqueline Lentzou, escrito por ela mesma com um tanto de pretensão. Seu filme é avaro em informações, tanto no roteiro quanto na composição audiovisual, deixando sempre lacunas que procuram valorizar o argumento para além do que ele comporta.

A jovem Artemis retorna da França à Atenas natal para cuidar do pai, Páris, acometido por esclerose múltipla. Os dois têm um longo histórico de incomunicação, que se agrava com a doença dele. A moça se desdobra na fisioterapia e nos cuidados com o pai e com a casa. Esse processo exaustivo é intercalado por suas divagações, entradas do seu diário e lembranças do passado plasmadas em fitas VHS. O acesso do espectador a esse acervo familiar é dificultado por elipses, interrupções e um ritmo às vezes extremamente lento. Mesmo a descoberta de um segredo sobre Páris, contido num pacote de fotografias, é filmada de maneira a deixar uma sombra de dúvida em quem não pode pausar o filme para verificar com atenção.

À parte todo o aparato simbólico e os ocultamentos deliberados, trata-se, em última instância, de uma história simples de revelação e compreensão do outro.

O filme é mais compensador em algumas partes do que no todo. São hipnotizantes as atuações de Sofia Kokkali (enérgica e sutil ao mesmo tempo) e Lazaros Georgakopoulo (uma composição espantosa do enfermo). Cenas como a de pai e filha se divertindo com o sorvete, ou de Páris e seu amigo Iakovo comendo pêssegos, ou ainda a catarse de Artemis no carro dentro da garagem, mostram que Jacqueline Lentzou domina a mise-en-scène e promete filmes melhores – porque menos vaidosos – do que esse.  -  (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).

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