O roteiro, escrito já há mais de dez anos mas profundamente alterado nas fases de filmagem e montagem, se passa na década de 1920, quando o cangaço do modelo Lampião ainda não havia se instalado no Nordeste. Os pré-cangaceiros eram jagunços a serviço dos coronéis e da polícia.
Um homem rasteja na caatinga até encostar-se num pequeno barranco. Está ferido de bala e carrega um crucifixo no peito. Agoniza e exclama entre os dentes "desgraça!". A cena se repete diversas vezes como mote narrativo do novo e surpreendente filme de Geraldo Sarno. Sertânia se estrutura como um fluxo de alucinações do jagunço Antão (vulgo Jararaca ou Gavião) depois de ser baleado pelo companheiro Jesuíno Romão.
A relação entre os dois é trágica, como era a do cangaceiro com o filho do coronel em Faustão, de Eduardo Coutinho. Antão, agora apelidado de Gavião, é o homem que vê, ao contrário das meninas cegas que em dado momento aparecem no filme. Gavião é a consciência social que falta a Jesuíno. Esse conflito vai ter o seu clímax quando Gavião se opõe a um massacre de retirantes praticado pelo amigo/pai a soldo dos poderosos locais.
Sertânia deambula na encruzilhada entre o Novo e o novíssimo. Do cinema brasileiro dos anos 1960 traz ecos visuais e sonoros de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis. A figura do cantador, a fotografia em preto e branco e a iconografia clássica do Nordeste (rostos, mandacarus, vaqueiros cortando a caatinga) e uma certa teatralidade evocativa do Cinema Novo nordestino ressurgem "atualizadas" na associação criativa com Eryk Rocha e seus habituais fotógrafo e montador. A edição de Sarno e Renato Vallone, com suas recorrências, ressonâncias e sobreposições, acentua o caráter mental da narrativa. O mesmo faz a extraordinária fotografia de Miguel Vassy. A vastidão da tela panorâmica é seguidamente fustigada por estouros de luz. As composições remontam a imagens da religiosidade popular – tema frequente na obra do diretor –, incluindo uma reedição sertaneja da Última Ceia e uma aparição de Edgard Navarro como Antônio Conselheiro. A estética do retrato posado também é contemplada, fazendo com que os olhares do povo voltados para a câmera realcem o subtema da visão e da consciência.
Assim como oscila entre acontecimentos efetivos e projeções da mente, o filme transita entre o passado e o presente, entre a linguagem e a metalinguagem. A equipe e o fazer do filme transbordam aqui e ali para o plano da encenação, enquanto um belíssimo epílogo conecta a imagem do povo de ontem à do povo de hoje. Sertânia faz essa operação em vários níveis, ligando a tradição moderna do cinema brasileiro a uma visualidade contemporânea. Nada mais é do que a comprovação de que Geraldo Sarno está forte, jovial e fiel a seu universo de invenção. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
Aos 81 anos, Sarno está de volta à ficção com um trabalho de grande empenho estético e que ecoa elementos de sua própria obra e do Cinema Novo. O roteiro, escrito já há mais de dez anos mas profundamente alterado nas fases de filmagem e montagem, se passa na década de 1920, quando o cangaço do modelo Lampião ainda não havia se instalado no Nordeste. Os pré-cangaceiros eram jagunços a serviço dos coronéis e da polícia. Antão, filho de um jagunço assassinado em Canudos, ainda criança foi levado por militares para São Paulo, onde prestou serviço. Depois de crescido (papel do músico e ator Vertin Moura), resolveu voltar para o sertão em busca da imagem do pai. Alistou-se no bando do jagunço Jesuíno Romão (Julio Adrião), que não por acaso tem a mesma fisionomia do seu pai.
A relação entre os dois é trágica, como era a do cangaceiro com o filho do coronel em Faustão, de Eduardo Coutinho. Antão, agora apelidado de Gavião, é o homem que vê, ao contrário das meninas cegas que em dado momento aparecem no filme. Gavião é a consciência social que falta a Jesuíno. Esse conflito vai ter o seu clímax quando Gavião se opõe a um massacre de retirantes praticado pelo amigo/pai a soldo dos poderosos locais.
Todas essas etapas da história emergem no lusco-fusco entre realidade objetiva, memória e alucinações de Gavião em sua aflição de ferido. Talvez seja preciso ver o filme duas vezes para dominar as várias camadas e as inter-relações entre elas. Há mesmo uma visita antecipada de Gavião ao reino dos mortos (Canudos destruída), onde ele reencontra parentes, procura pelo pai e conversa com o Coronel Delmiro Gouveia, personagem-título de um célebre filme de Sarno de 1978.
Sertânia deambula na encruzilhada entre o Novo e o novíssimo. Do cinema brasileiro dos anos 1960 traz ecos visuais e sonoros de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis. A figura do cantador, a fotografia em preto e branco e a iconografia clássica do Nordeste (rostos, mandacarus, vaqueiros cortando a caatinga) e uma certa teatralidade evocativa do Cinema Novo nordestino ressurgem "atualizadas" na associação criativa com Eryk Rocha e seus habituais fotógrafo e montador. A edição de Sarno e Renato Vallone, com suas recorrências, ressonâncias e sobreposições, acentua o caráter mental da narrativa. O mesmo faz a extraordinária fotografia de Miguel Vassy. A vastidão da tela panorâmica é seguidamente fustigada por estouros de luz. As composições remontam a imagens da religiosidade popular – tema frequente na obra do diretor –, incluindo uma reedição sertaneja da Última Ceia e uma aparição de Edgard Navarro como Antônio Conselheiro. A estética do retrato posado também é contemplada, fazendo com que os olhares do povo voltados para a câmera realcem o subtema da visão e da consciência.
Assim como oscila entre acontecimentos efetivos e projeções da mente, o filme transita entre o passado e o presente, entre a linguagem e a metalinguagem. A equipe e o fazer do filme transbordam aqui e ali para o plano da encenação, enquanto um belíssimo epílogo conecta a imagem do povo de ontem à do povo de hoje. Sertânia faz essa operação em vários níveis, ligando a tradição moderna do cinema brasileiro a uma visualidade contemporânea. Nada mais é do que a comprovação de que Geraldo Sarno está forte, jovial e fiel a seu universo de invenção. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
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