Conclamação do Banquetaço pela preservação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - após chegarmos, mais uma vez, à conclusão de que o que se está a ver nesses tempos é a volúpia do desmonte geral.
(Google)
Banquetaço conclama advogados a se engajarem na luta por comida de verdade
Por Carlos Alberto Dória e Mariana Marcon
O Banquetaço é uma manifestação de rua em resposta da sociedade civil à expansão do consumo de produtos alimentícios ultra-processados na dinâmica alimentar da população brasileira, à elevada concentração fundiária, ao crescimento da monocultura, à liberação de uso de transgênicos e ao incentivo ao uso de agrotóxicos, a irracionalidade do desperdício ao longo de toda a cadeia alimentar, bem como à crise hídrica que se agrava. Surgiu em resposta à necessidade de novas sociabilidades e generosidades no agir em defesa do Direito Humano à Alimentação Adequada.
O direito, assim como outras áreas do conhecimento, se transforma e evolui em direção a uma sociedade mais justa, sempre que em sintonia com os anseios populares. Nesse sentido, a área de food Law surge face aos desafios do movimento vivo da sociedade como convite a pensar a Lei de Alimentos Brasileira e seus desafios, obrigando a debruçarmo-nos sobre a Comida de Verdade e o Direito Humano à Alimentação Adequada, consagrado em 2010 pela Emenda Constitucional Nº 64.
A Ordem dos Advogados do Brasil está ciente, já há algumas décadas, de que os organismos internacionais e nacionais vêm demarcando o terreno no qual deve avançar a melhoria da qualidade alimentar, grandemente comprometida pelos avanços da indústria, às vezes de modo desregulado, visando maior produtividade sem atentar para os riscos para a saúde humana e preservação ambiental. Palavras de ordem como “pela alimentação de verdade” expressam lutas sociais por alimentação limpa, boa e justa, isto é, de acordo com padrões alimentares possíveis no atual nível civilizacional.
Assim, não é preciso recordar os compromissos mundiais com o bem estar humano, expressos por organismos como a ONU e seu braço alimentar – a FAO – para percebermos o quão defasados estamos e, no momento atual, até mesmo em movimento de regressão, tão evidente quando, na primeira Medida Provisória do atual governo, extingue-se um mecanismo eficaz de participação popular na formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a alimentação, como era o Consea.
O Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – foi concebido como “um espaço institucional para o controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, com vistas a promover a realização progressiva do Direito Humano à Alimentação Adequada”, conforme seu site. E é isso que foi extinto através da MP 870. Suas competências foram esquartejadas e distribuídas por outros ministérios, sendo que o que desapareceu de fato foi o mais importante: a participação da sociedade civil na formulação das políticas públicas de alimentação. De substancial, o Presidente da República não pretende mais ouvir a sociedade civil sobre os temas de atuação do Conselho que, ao longo dos anos, atuou segundo a diretriz de que “o Estado deveria ser o espaço onde as prioridades, em nome da justiça social, fossem definidas”. Políticas notáveis para a conquista da “alimentação de verdade” foram e serão desarticuladas em decorrência dessa medida.
No momento anterior, a pauta positiva sobre a alimentação refletiu o despertar da sociedade e do governo sobre a importância da alimentação saudável; gerou grande impacto por meio do fortalecimento da agricultura familiar e camponesa e a priorização das populações mais vulneráveis e promoveu o reconhecimento da diversidade dos Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto no 6.040/2007). Além disso, houve o fortalecimento do controle social; a redução da mortalidade infantil, que estava vinculada a altos índices de desnutrição; o estimulo ao consumo de alimentos in natura e à redução no consumo de produtos alimentícios ultra-processados. Outros avanços se destacam, a exemplo da edição do Guia Alimentar para a População Brasileira e a revisão da Política Nacional de Alimentação e Nutrição.
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome. Essa importante conquista foi resultado de intensos debates e mobilizações da sociedade civil na construção de políticas públicas, a criação e fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) por meio de: Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); acesso à água (Projeto 1 Milhão de Cisternas – P1MC e P1+2 Uma Terra e Duas Águas); e promoção da agricultura agroecológica.
Em consonância com essas conquistas, o Consea se projetou na medida em que encarnou um ethos solidarista, originado no modelo de “repartir o pão” que se afirmou nos anos 1990 e seguiu, mudando de forma, pelas décadas seguintes. A Comunidade Solidária, a Lei Orgânica da Segurança Alimentar (2006), o Fome Zero, a Bolsa Família – são marcos dessa cultura que veio à luz através da celebre campanha capitaneada por Betinho e o Bispo Mauro Morelli: a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, entidade fundada em 1993. De nítida orientação cristã e tocada por voluntários, a Ação da Cidadania organizava atividades definidas em fóruns nacional e estaduais, sempre voltadas para a geração de emprego e renda, creches, saúde, arte e cultura, além de assistência à população de rua. Em torno dessas questões, congregava personalidades da sociedade civil, lideres comunitários, Ongs, universidades e, aqui e ali, o próprio poder público.
Assim, o solidarismo se expandiu, longe dos partidos, e no seu bojo se afirmou o conceito de segurança alimentar – hoje soberania alimentar –que traz em si o desafio de implementar um sistema alimentar adequado para atender até 238 milhões de brasileiros em 2050.
E é em defesa destas conquistas que surgem movimentos como o Banquetaço, organizado nacionalmente por mais de mil ativistas que defendem o direito humano a alimentação, visando chamar a atenção da sociedade para o fato de que, neste terreno, onde avançávamos, agora deu-se meia volta. No Brasil de hoje esses direitos têm sido postos em causa, após um longo período em que se acumularam vários avanços que, agora, é necessário defender.
No dia 27, em torno do meio dia, em cerca de 20 estados, em quase 40 cidades, compartindo com a população cerca de 15 mil refeições preparadas com alimentos livres de veneno, produzidas localmente com insumos doados por agricultores e transformados por cozinheiros e nutricionistas voluntários, levantou-se uma só voz em defesa da manutenção do Consea.
Além do protesto contra sua extinção, a questão subjacente será: como prosseguir? Seja como for – e há muitas ideias circulando a respeito das ações futuras – a luta prosseguirá apoiando-se na crescente mobilização das pessoas interessadas na comida de verdade, contando ainda com o Estado onde é possível, visto que há Conseas estaduais e municipais que não deixarão de existir. E há, claro, a questão jurídica. Desde o questionamento da constitucionalidade da extinção do Consea nacional até a pura assistência nas relações com os poderes públicos e àquelas que surgem em situações de atuação nas ruas.
O voluntariado de advogados é necessário em todo o Brasil. Em São Paulo é de se esperar que se amplie expressivamente, na media em que a Comissão de Direitos Humanos da Ordem abriga uma Coordenação de Direito à Alimentação.
Passemos, pois, diretamente à prática! - (Aqui).
Nenhum comentário:
Postar um comentário