quarta-feira, 3 de abril de 2013

ALDIR BLANC, GALÃ TORTO DA MPB


O excêntrico sr. Normal

Por Álvaro Costa e Silva


RESUMO
Médico de formação, escritor e compositor, Aldir Blanc fez de sua obra uma notável galeria de tipos suburbanos. Autor de clássicos da MPB, refugiou-se na Muda, no bairro carioca da Tijuca, onde vive em reclusão quase total. Biografia traz vida e obra de volta à cena, além de uma centena de letras inéditas.
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Quem conhece Aldir Blanc de perto acha que ele é um cara absolutamente normal. Tem aquela barba e os cabelos longos de careca rebelde, a pele branca de leite, a voz grave com sotaque inconfundível da Zona Norte carioca, sujeito alto e emotivo, claudica da perna esquerda, seus olhos ternos às vezes se perdem na contemplação do vazio... Absolutamente normal.

Aliás, um de seus melhores amigos, o escritor Ivan Lessa -na medida em que duas pessoas podiam ser amigas, uma delas morando em Londres, a outra no Rio- insistia que ele deveria virar personagem de quadrinhos: Aldir, o Normal, de preferência desenhado por Robert Crumb ou Jaguar.

Anda meio esquecido, é verdade. Suas crônicas não são mais publicadas com a regularidade e a repercussão dos tempos do "Pasquim". Subir aos palcos para cantar suas próprias composições tornou-se impossível por causa de fobias e da necessidade de reclusão. Há também o fato de que, com a queda vertiginosa da venda de discos e do pagamento de direitos autorais, os compositores estão acuados.

Mesmo um que mereça o reconhecimento de Chico Buarque -"Aldir Blanc é uma glória das letras cariocas, bom de ler e de ouvir, bom de se esbaldar de rir"-, a preferência de Elis Regina, que o elegeu seu letrista predileto, autor de algumas das mais importantes peças da música brasileira: "O Mestre-Sala dos Mares", "O Bêbado e a Equilibrista", "Catavento e Girassol", "Resposta ao Tempo".

"O Brasil precisa conhecer melhor o Aldir", diz o jornalista Luiz Fernando Vianna, autor do livro "Aldir Blanc: Resposta ao Tempo" [Casa da Palavra, 352 págs., R$ 55], que chega às livrarias nesta semana. -"Com o tempo, ele foi se fechando em casa e em si mesmo. Além do trauma que representou a morte das filhas gêmeas e da mãe, ainda sofreu um grave acidente de carro em 1991, que deixou sua perna esquerda quase sem movimento. Andar na rua passou a ser perigoso. Some-se a isso a diabetes 2, diagnosticada às vésperas da Copa do Mundo de 2010, cuja dieta necessária exigiu o fim do consumo de álcool, e você vai entender por que ele prefere, aos 66 anos, viver cada dia de uma vez, recebendo em sua biblioteca as pessoas que realmente ama e, sempre que possível, fazendo música".

Aldir estudou sete anos de medicina, com especialização em psiquiatria, e depois largou tudo para se tornar compositor. A história remonta aos tempos em que andava de calças curtas. Num dia de entrega de boletim, o pai comentou: "Você sempre tira dez em biologia. Quem sabe você não vai ser médico...".

Ingressou em 1965 na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, de onde saiu em 1971. Trabalhou no Hospital Gustavo Riedel, dentro do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro - o manicômio citado na música "Que Loucura", de Sérgio Sampaio: "Fui internado ontem/Na cabine 103/do Hospício do Engenho de Dentro/Só comigo tinham dez".

Eram 40 leitos para mais de 80 pacientes. Todos eram dopados com uma mesma droga. O uso de eletrochoques, rotineiro -Aldir se negou a adotá-lo. Não aguentou a barra e, após um ano, saiu para abrir consultório próprio na rua da Assembleia, no Centro do Rio. Às vezes, chamava o paciente para conversar na rua ou num bar. Assim foi até 1973.

A ideia de viver só de música vinha ficando cada vez mais forte. Na época, Aldir já era um compositor gravado por Elis Regina, letrista do sucesso "Amigo É Pra Essas Coisas", e a parceria com João Bosco andava a mil.

A gota d'água foi a morte, em 1974, de Maria e Alexandra, gêmeas que seriam as primeiras filhas de seu casamento com a professora Ana Lúcia. Nasceram prematuras de sete meses. Maria morreu logo, Alexandra ainda resistiu na incubadora enquanto deu: "Ela morreu sangrando por todos os orifícios: ouvidos, nariz, boca. Aí o seguinte: se não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso que eu quero fazer".

O drama está contado em "Aldir Blanc: Resposta ao Tempo". Rica em detalhes conhecidos apenas dos mais íntimos, a obra privilegia a trajetória do compositor Aldir, como explica o outro subtítulo: "Vida e Letras". Estão reproduzidas mais de 450 delas (de quase 600 já compostas), e é incrível como elas sobrevivem bem na página fria, sem a música.

"Praticamente a seleção foi do próprio Aldir, que preferiu deixar algumas de fora, por julgamento estético ou de foro íntimo, e incluir cerca de 100 inéditas", conta Luiz Fernando Vianna, que elege entre as suas canções prediletas "Gol Anulado" e "Transversal do Tempo", ambas do disco "Galo de Briga", de 1976.

Na "Introdução Pessoal" que abre o volume, o jornalista rememora seu deslumbramento ao ouvir pela primeira vez, aos seis anos, as 12 faixas do LP da dupla Bosco-Blanc: "Aldir era um barbudo sem vocação para galã, que fazia letras estranhas, aparecia no encarte jogando sinuca e andando em uma rua deserta e suja, além de morar na Zona Norte, como eu. Para um menino meio 'esquizoide', era o ídolo perfeito de tão torto".

O livro é farto em fotos do galã torto: no colo dos pais, fantasiado de chinês no Carnaval, com seu inseparável cavalo de madeira, na Pedra da Moreninha em Paquetá, nos tempos de estudante de medicina (a cara esculpida de um personagem de Dostoiévski), com as filhas, os netos, a mulher, com os amigos e os parceiros de longa data, com as cantoras. Há também partituras, manuscritos de letras e poemas, cartazes, capas de disco.

E uma reprodução impagável do "Álbum das Punhetas", caderno artesanal com mulheres que saíam em trajes menores em revistas e jornais, e que era alugado por dia para adolescentes amigos.

As muitas imagens da infância e juventude não estão ali à toa. Até porque, como observa Vianna, um bom começo para entender a arte do letrista é revisitar suas origens, os tempos alegres de criança em Vila Isabel, as incertezas com a mudança para o Estácio -onde sofreu "bullying" dos valentões do pedaço-, as marcas e os porres com a entrada na vida adulta.

Aldir Blanc Mendes nasceu no dia 2 de setembro de 1946, no Estácio, mesmo berço dos compositores que, 17 anos antes, haviam formatado o samba como gênero urbano carioca. Mas quase não nasce: Helena precisou entrar no décimo mês de gravidez e gritar por quase 24 horas para que o rebento surgisse com a força de seus mais de quatro quilos. Sua mãe desenvolveu uma espécie de depressão pós-parto -quase não saía de casa, comportamento que o filho adotaria mais tarde- da qual jamais se livraria até morrer, em 2002, com 80 anos.

Na véspera da morte, chamado à casa dos pais, na rua Maia de Lacerda, Aldir previu o desenlace.
Começou a beber e bolou um ardil. Pediu a um amigo dentista para se passar por neurocirurgião. Quando ele chegou, todo vestido de branco, Aldir pediu: "É só um alento. Passa a mão nos joelhos dela e diz que está tudo bem".

Alceu, ainda sacudido aos 90 anos, aparece nas crônicas do filho como Ceceu Rico (apelido de infância porque, ao contrário de outros meninos do Estácio, costumava brincar na rua de sapato fechado, e não descalço). Funcionário do antigo Iapetec, asmático, fumava Lincoln sem filtro e jogava sinuca e nos cavalinhos.

De poucas palavras, com o tempo tornou-se o maior amigo de Aldir, a única pessoa com quem ele, hoje, arrisca uma saída rápida, de seu apartamento na Muda até um bar escondido nas redondezas.

A Muda é uma espécie de bairro não oficial dentro da chamada grande Tijuca. É onde ele mora. Rua Garibaldi. Depois do Maracanã e antes da Usina e do Alto da Boa Vista. Ao contrário dos boêmios mais famosos do Rio, que sempre aprontaram na Zona Sul e perto da praia, Aldir escolheu essa parte da cidade e os botequins mais vagabundos para suas aventuras etílico-esportivas (era um bom jogador de sinuca).

"Um bar perfeito como ainda são uns poucos da Tijuca precisa de algumas vomitadas no canto, uma briga histórica em seu currículo e um pequeno contingente de loucas fixas", explica o compositor. "Um boteco só merece nota 10 se uma morena bonita olhar de forma desafiadora enquanto abre um grampo nos dentes para afastar o cabelo da nuca suada".

(Para ler a postagem completa, clique aqui).

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Pincei o 'torto' para designar mestre Aldir em face do 'anjo torto' de Drummond e de nosso conterrâneo Torquato Neto, talentoso qual o bamba da Muda e de atitudes singulares como as dele.

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