Os cães da guerra
Por Luis Fernando Veríssimo
A Convenção de Genebra pode ser vista como um monumento à hipocrisia. Ela propõe regras para a barbárie e infere que o que Shakespeare chamou de “os cães da guerra”, uma vez soltos, podem ser controlados. E que guerras podem ser cavalheirescas, desde que regulamentadas.
Um conceito que por pouco não morreu na Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo as convenções de Genebra, desde a primeira, no século dezenove, tentam preservar o que, numa guerra, nos distingue de cachorros raivosos. No caso a hipocrisia é necessária. É outro nome para civilização.
Uma das regras explícitas na atual Convenção de Genebra diz respeito ao tratamento de prisioneiros. O argumento principal de quem defende a repressão e seus excessos durante a ditadura militar no Brasil é que se tratava de uma guerra aberta entre o regime e seus contestadores armados, que sabiam no que estavam se metendo.
Só aos poucos estamos conhecendo as atrocidades cometidas na luta contra a guerrilha no Araguaia, da qual a maioria não sobreviveu e nem seus corpos foram encontrados. Mas quanto ao que aconteceu nas salas de tortura da repressão não existem dúvidas ou apenas suposições, está vivo na memória dos torturados e suas famílias.
Foi quando os cães sem controle da guerra estraçalharam o que poderia haver de simples humanidade no tratamento de prisioneiros, ou o simples respeito a regras convencionadas, por um Estado civilizado.
Se a discussão entre os que sustentam que salvaram o Brasil com seus excessos e os que querem que o Brasil conheça a verdade enterrada sem lápide daqueles tempos parece um diálogo de surdos, o grande mudo desta história toda é a instituição militar, que nunca fez uma autocrítica consequente, nunca desarquivou voluntariamente seus arquivos ou colaborou nas investigações sobre o passado, o dela e o nosso, para evitar a cobrança atual.
E o que foi feito não era inevitável. Na Itália, por exemplo, na mesma época, o governo enfrentou uma violenta contestação armada sem sacrificar um direito civil, ameaçar uma instituição democrática ou recorrer ao seu próprio terror. Sem, enfim, soltar os cachorros.
A diferença, claro, é que lá era um governo legítimo.
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No Brasil, há tempos foi enterrada a possibilidade de punição dos torturadores e seus mandantes (aqui, sim, a legítima teoria do domínio do fato), e a Comissão da Verdade luta para ao menos levar a público os crimes praticados e os nomes de quem os perpetrou. Na Argentina, foi enterrado o ditador Videla (aqui), que nos anos 70 comandou massacres em série, crimes pelos quais foi duas vezes condenado à prisão perpétua (após a primeira condenação, recebeu indulto de Carlos Menem, parceiro de ideias. Até que Kirchner anulou a benesse).
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