Ivan Lessa, por Liberati.
Ivan Lessa residia em Londres há mais de 30 anos, trabalhava na BBC, onde escrevia crônicas, e de lá mandava texto mensal para a Playboy brasileira e outras publicações. Ivan nasceu em São Paulo (1935), viveu anos no Rio de Janeiro e colaborou com O Pasquim (onde roteirizou a série Chopnics, de Jaguar, lançou o Gip! Gip! Nheco! Nheco! - com desenhos do cartunista Redi -, publicou crônicas diversas e incorporou o personagem Edélsio Tavares, irascível jornalista das antigas, além de politicamente incorreto respondedor de cartas dos leitores).
Para ilustrar a trajetória de Lessa, pincei entrevista por ele concedida em novembro de 2005, publicada no Jornal do Brasil:
Ivan é da pontinha!
De Londres, em entrevista ao diplomata Felipe Fortuna, Ivan Lessa fala de seu mais recente livro, O luar e a rainha (288 pp., R$ 44), que a Companhia das Letras está mandando para as livrarias, e explica por que deixou o Rio de Janeiro há 27 anos para nunca mais voltar. Conversa sobre bola de gude, espampas Eucalol e expressões idiomáticas que ele coleciona desde as décadas de 40 e 50 como se fossem notícias urgentes - daquelas que saem no site do serviço brasileiro da BBC, no qual Ivan Lessa escreve três crônicas semanais.
No início era o caos. Quando surge Ivan Lessa?
- O meu primeiro emprego foi na revista Senhor, em 1959. Ganhava muito bem. Então com 24 anos de idade, dinheiro é para comprar discos e livros. Então pensei: ‘’Vou continuar aqui, fazendo anúncios?’’ As mulheres eram mais baratas nessa época, eu já estava tomando o meu uísque e tinha carro, um Mercury Monterrey 57. O que eu ganhava por dia daria para comprar um Fusca por mês.
Como foi o trabalho na revista Senhor?
- Fui demitido por incompetência pelos meus grandes amigos, Naum Sirotsky e Paulo Francis, e eles tinham toda a razão! Eu não sabia fazer entrevistas! O que eu fazia bem era dar sugestões para cartuns do Jaguar. Em 1968, o Jaguar fazia os ‘’Chopinics’’ e me pedia os roteiros. Eu era o ghost writer dele. Mas eu era um pouquinho mais profissional do que o Jaguar. Ele era tão ignorante que fazia a tirinha no tamanho como ela deveria sair no jornal, sem redução!
Em seguida, você foi para o Pasquim...
- Em 1969, eu vim para Londres, era staff do serviço brasileiro da BBC e passava as férias no Rio. Numa das férias os meus amigos estavam bolando um jornal que iria se chamar Pasquim e me convidaram para enviar matérias. Eu disse ‘’tudo bem’’. E aí então começou a minha ascensão no caminho da glória! Eu nasci para escrever no Pasquim.
Como você se sente agora ao viver numa cidade perigosíssima como Londres?
- Eu me mandei do Brasil no dia 20 de janeiro de 1978, dia de São Sebastião. Eu assisti à destruição do Rio de Janeiro e começo a assistir à decadência de Londres. Espero que não traduzam essa frase e não me mandem uma bala ao entrar na estação do metrô que me leva à BBC todos os dias.
Essa decadência em Londres começa quando para você?
- Essa decadência começa no som. Em Londres, antigamente, só me buzinaram duas vezes. E era uma gentileza, uma cordialidade para eu não morrer atropelado. Hoje todos buzinam e os bairros são todos clonados - na rua principal há sempre um McDonald’s, uma farmácia Boots. Não existe mais o mercado de esquina. Seria o equivalente do fim do botequim do seu Manuel no Brasil.
Você escreveu sobre Jean Charles de Menezes, o brasileiro morto no metrô de Londres?
- Não escrevi. Para citar um escritor brasileiro, Álvaro Moreyra, ‘’as amargas não’’. As notícias sobre o brasileiro são muito deprimentes, e a minha coluna é leve e leviana. Fico até com medo de entrar no assunto. É muito difícil comentar com alguma graça o que aconteceu com um rapaz que levou sete balas na cabeça. No site da minha coluna outros jornalistas escreveram sobre o assunto, mas eu preferi ficar de fora. Seria covardia minha? Não sei, apenas queria manter a voz da minha coluna.
Você é um cronista preocupado com o passado. Já escreveu até que ‘’saudosismo e nostalgia, como vinho da Granja União, viajam mal’’. E você também escreveu que se defende ‘’dos pontapés do passado’’...
- Não me defendo, não. Eu procuro ir ao encontro dele. Antes de você chegar, eu estava escutando Emilinha Borba na minha vitrola - não vou chamar de aparelho de som. O que mais me interessa hoje em dia é aquilo que passou. Graças à bendita internet, fico pesquisando essas coisas, como a origem da bola de gude, que veio do inglês good... A arte de colecionar bordões.
Tem-se a impressão de que sua crônica serve como exercício para relembrar o passado...
- A rigor, não. Mas após 27 anos fora do Brasil, eu percebi que escrevia muito a frase ‘’conforme se dizia’’. Uso expressões como ‘’um filme da pontinha!’’, ‘’sossega leão!’’, e gírias que não poderiam estar mais datadas ou obsoletas... Mas também leio jornais diariamente, para escrever as crônicas, e não quero perder uma palavra como ‘’janota’’... Em vez de delivery, é melhor escrever ‘’entrega em domicílio’’. Eu tenho umas implicâncias com brasileiros que querem encaixar palavras em inglês numa frase em português: ontem mesmo eu li: ‘’a história teve um happy end’’. Está errado! O certo é happy ending, um final feliz, e não um fim feliz... .
A língua inglesa tem alguma influência no seu estilo?
- Eu li a vida toda em inglês. Então o inglês sempre foi segunda língua, para o cinema e para o jazz. Sobretudo o danado do cinema - eu era cinéfilo antes de saber o significado da palavra. Tinha mania de ler os poetas ingleses.Só tem uma frase em que nós ganhamos dos ingleses: ‘’Era uma vez um velhinho’’. Em inglês fica: ‘’Once upon a time there was a little old man’’. O dobro do português.
No Brasil você tem um público admirador com uma expectativa grande sobre o que você escreve... Guimarães Rosa, ao saber que Fernando Sabino continuava escrevendo crônicas, lhe disse: ‘’Não faça biscoitos, faça pirâmides’’. Você nunca entregará uma pirâmide?
- Não vou, não vou. O Luiz Schwarcz me deu, em janeiro de 1987, um adiantamento para um romance. Eu tinha escrito uns capítulos e tinha uma vaga ideia. Mas eu notei que os capítulos do livro eram contos. E eu não tinha fôlego para o romance. Apenas admiti com bastante humildade a minha condição de não-romancista. E eu acho mesmo que os escritores brasileiros têm pouco fôlego. O Guimarães Rosa é exceção.
Você já escreveu que no Brasil não há muito além de Machado de Assis... Quem é o grande escritor brasileiro vivo?
- Eu vou citar quem eu cito sempre: Dalton Trevisan. Ele já esteve no haicai, mas de repente faz uma pirâmide de Quéops, como queria o Guimarães Rosa.
O seu novo livro se chama A rainha e o luar. A sua Londres ainda é marcada pela presença dos valores tradicionais?
- Pelo contrário! Não quero contar o final do filme, mas a crônica escolhida para título do livro é uma gozação. Mostrar o traseiro, em inglês, é to moon, enluarar.
Como fez o Gerald Thomas!
- Perfeitamente. Isso me serve: o que o Gerald Thomas fez é to moon, só que ele imoonda toda a plateia do Municipal. Na crônica, a rainha passava por algum lugar e alguém mostrou a bunda. O meu tom beira o irônico, gozo os ingleses, à minha maneira.
As crônicas mudaram muito desde Ivan vê o mundo?
- As crônicas daquele livro também foram escritas para a BBC, mas ainda não havia internet. Era só rádio. O que me preocupa, pois eu li em algum lugar que as pessoas só ficam, em média, 40 segundos em frente a um site.
Depois de A rainha e o luar, virá uma nova coletânea de crônicas ou você planeja um livro diferente?
- Na minha idade, eu planejo pouco. Eu penso vagamente em escrever um livro de bordões, do tipo ‘’eu, hein, Rosa!’’. Coisas antigas e populares. Eu tenho cadernos e mais cadernos de coisas assim, que ninguém vai entender se consultar.
Você afirmou que a crônica é a nossa autobustificação. Se um dia fizermos o seu busto no Rio, onde você queria que ele ficasse?
- De preferência, Avenida Atlântica esquina de Bolívar.
E se chegarem para você e disserem: ‘’Ivan Lessa, o seu busto está pronto e a inauguração é daqui a dois meses’’. Você irá ao Brasil?
- Não vou. Agora mesmo, com o meu novo livro, o Luiz Schwarcz quis me tentar para ir ao Brasil, me disse que se eu viesse o livro seria um best-seller... Vinte e sete anos é um Katrina de águas, e debaixo dessas pontes só tem desabrigados. Não dá mais. Se eu estivesse aqui há 10 anos eu iria... E ir para o Brasil é ir para o Rio de Janeiro, não para Cuiabá. De vez em quando eu vejo uma foto atual do Rio nesses jornais que eu folheio, e digo: ‘’Ai meu Deus do céu!’’. Agora, no meu computador, eu guardo um arquivo chamado ‘’Brasil Antigo’’, com coleção de figurinhas, estampas Eucalol, fotos do Marc Ferrez, O Tico-Tico... Estando morto ou velho, datado ou ultrapassado, é comigo! Quando eu vim para cá, em 78, eu já tinha intenção de não mais voltar. Então eu havia passado um ou dois meses comprando o que eu pudesse de coisas antigas. Tudo isso servia de embocadura para escrever.
E ainda deve servir agora, em 2005, quando você completa 70 anos...
- Pois é, então você já pode começar a matéria: ‘’o septuagenário Ivan Lessa...’’. Eu parei de fumar em 2001, e logo surgiram enfisema pulmonar, arritmia cardíaca, fibrilação... O fato é que baixaram vários caboclos, parece que eu deixei os pulmões na esquina da Bolívar, onde eu jogava futebol.
Como está o quadro político na Inglaterra?
- É uma chatice inominável. Eu sempre me considerei um animal apolítico.
E no Brasil, ou no Bananão, o que você acha que está acontecendo?
- Desejo tudo de bom, só tenho bons pensamentos. Aquele ‘’tamos aí!’’ que não quer dizer nada.
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Cascata do Ivan
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Alvaro Costa e Silva
Muita gente boa pensou que o mundo ia se acabar quando Ivan Lessa topou fazer a apresentação de uma coletânea de blogueiros. Tudo quase voltou à calma quando Ivan tascou na última linha do texto:
‘’E agora que a vaidade de todos foi satisfeita, se não for pedir demais, volta todo mundo a folgar no espaço virtual, combinado? O importante, sabemos, é o desencontro passageiro’’. E a pá de cal veio no dia 24 de outubro, quando o cronista explicou no sítio (ele odeia site) da BBC Brasil que havia desistido dos blogues: ‘’Opinião, eu não aguento mais, dela há um excesso nesse mundo cibernético e, por eu mergulhar demais nas águas ora plácidas ora bravias das nossas margens ypirangais, acabei me cansando da descrição embevecida do próprio umbigo’’.
Estabelecidas tais prioridades, vamos ao que interessa: com este O luar e a rainha são três livros de Ivan Lessa na praça (Garotos da fuzarca, de 1986, e Ivan vê o mundo, de 1999), o que, em se tratando de quem é, é tanta produção quanto a de Balzac ou Josué Montello.
O pior é que há mais material dele que deveria estar enfeixado: as estripulias noturnas do sr. e sra. Coelinho, os Chopnics e os Lugares In-Comuns que fez com Jaguar, as frases do Gip-Gip Nheco-Nheco, os Diários de Londres, tanto os dele quanto os de Edélsio Tavares, os contos de Moura Barroso, o Horóscopro (sic), o folhetim As aventuras de Machado de Assis, os inúmeros textos do Pasquim e dos jornalões e revistões para os quais colaborou, enfim, até os capítulos inéditos do romance Nos astros, distraído. O Dan Brown ia morrer de inveja com a venda que esses livros alcançariam em todo o planeta.
P.S.: Tão bom quanto ler as crônicas que Ivan faz na BBC (sempre aos sábados, também no Imprensa Livre) é ouvi-lo lê-las, uma experiência que pode mudar o que você entende como o ‘’ritmo da frase’’.
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(Jornal do Brasl, novembro de 2005).
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