segunda-feira, 20 de março de 2023

FILME 'LIVING' (OU: REVISITANDO KUROSAWA)

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"Numa dramaturgia dos anos 1950, viver a vida era beber, frequentar bares e boates de strip tease, divertir-se em salões de jogos, e por aí afora."


LIVING

Por Carlos Alberto Mattos

Embora Living seja um filme digno e perfeitamente assistível, não vi muito sentido nessa refilmagem quase literal do clássico Viver (1952), de Akira Kurosawa. E vamos botar um grande QUASE nisso. Passado em Londres na mesma época do original, Living é muito mais cool e sintético. Seu protagonista, o hierático e enfadonho viúvo Mr. Williams (Bill Nighy) só queria ser “um gentleman”. Chefe de seção na prefeitura de Londres, ele compactua com a rotina burocrática de engavetar papéis e passar processos adiante para outras seções. Assim era também o lúgubre Watanabe, personagem de Takashi Shimura no filme de Kurosawa.

Mas quando recebe a notícia de que tem seus dias contados por razões de saúde, o burocrata afasta-se do trabalho para tentar provar o gosto de uma vida de verdade. Numa dramaturgia dos anos 1950, viver a vida era beber, frequentar bares e boates de strip tease, divertir-se em salões de jogos, e por aí afora. Williams encontra um escritor que o leva à esbórnia e se aproxima de uma de suas funcionárias para sorver um pouco de sua alegria. Mais que isso, resolve se redimir empenhando-se na construção de um pequeno parque infantil, reivindicação de moradoras que estava emperrada na repartição. No filme de 1952, conduzido com intensidade melodramática por Kurosawa, essa transição era melhor apreendida do que nesse remake que não se preocupa nem um pouco em não parecer datado.

A mensagem também permanece a mesma: só um diagnóstico fatal poderia tirar um burocrata medíocre de sua condição, em busca de redenção. O exemplo de Williams para seus colegas surte efeito apenas na superfície, uma vez que a mediocridade é a natureza mesma dos papelocratas. Por outro lado, a incúria do filho pelo pai e a animosidade da nora para com o sogro refletem mais propriamente questões familiares japonesas frequentes em filmes de Ozu, Kurosawa e Naruse. 

A questão da herança, importante em Viver, simplesmente desaparece nessa nova versãSe Living supera em alguma coisa o seu original é na caracterização da personagem Margaret (Aimee Lou Wood), a funcionária que ajuda Williams a se reenergizar. Kurosawa a pintou como um anjo alegre que subitamente, e de maneira pouco convincente, passava a desprezar Watanabe. Em Living, a moça parece mais humana e coerente, além de ter uma função dialógica que, em Viver, era cumprida pelo narrador fora de cena.

O diretor Oliver Hermanus alude episodicamente ao estilo efusivo de Kurosawa, como nas transições de cena por “cortinas” ou nas tomadas através de espelhos. Mas no geral adota um tratamento sóbrio e soturno, sem muita distinção. A fleugma britânica, naturalmente, está a milhares de quilômetros das enfáticas interpretações japonesas.

Ainda assim, é curioso que essa adaptação ultrabritânica tenha sido roteirizada pelo escritor Kazuo Ishiguro (do extraordinário Não me Abandone Jamais). A ligação com o Japão se amplia com o nome de Ko Kurosawa, neto de Akira, na produção executiva, juntamente com Ishiguro.

Indicado aos Oscars de roteiro adaptado e ator (Bill Nighy), Living tem, para mim, sua maior qualidade em nos estimular a ver ou rever o filme feito 70 anos antes.  -  (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).

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