quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

A INACREDITÁVEL SORDIDEZ DA ELITE: NÉLIDA PIÑON DEIXA 4 APARTAMENTOS DE LUXO PARA SUAS DUAS CACHORRINHAS


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Outro dia, numa daquelas epifanias que vêm de repente sem pedir licença, vi uma mulher jogada numa calçada, suja e moribunda, e pensei: por que há cachorros que vivem como pessoas e pessoas que vivem como cachorros? 

Imediatamente me convenci de que alguém, antes de mim, pensara nisso. Muitas pessoas, decerto. Mas ninguém fazia nada a respeito. Pelo contrário: moradores de rua são sempre vagabundos, e cachorros de madame estão sempre acostumados com ar condicionado: nada de novo sob o sol.

Prova disso veio antes que eu esperasse – já que essa humilde epifania é bastante recente: a escritora Nélida Piñon, morta no último sábado aos 85, deixou sua herança para suas cadelas.

Não sou insensível a ponto de não saber como nossos bichos realmente significam muito para nós. Morro de medo do dia em que minha gatinha se for – e faço de tudo para que ela tenha a melhor vida possível até lá.

Mas daí a deixar uma casa para cadelas em um país onde pessoas passam fome?

Aí é um pouco demais. Nélida fez um testamento deixando quatro apartamentos para a pinscher Suzy e a chihuahua Pilara.

Perdoem: não consigo consentir.

Alguém dirá que cada um faz da própria fortuna o que quiser, e é verdade, mas eu como humana pensante tenho o direito de dizer que a elite brasileira – mesmo a culta e letrada – é obscena, sórdida, cafona e cruel.

Imagino o caminho que esse espírito – fiel às minhas crenças, mesmo respeitando meu país laico – trilhou na Terra. Um caminho tão curto e tortuoso a ponto de não entender que estamos aqui para compartilhar o que temos com nossos iguais.

Tudo bem deixar as cadelas assistidas, com uma vida boa e uma ração de primeira. Mas quatro apartamentos para duas cadelas?

Na dieta delas, diz uma matéria inacreditavelmente caricata, não pode faltar queijo espanhol manchego.

Isso é cuspir na cara de quem não tem onde morar e comer.

É pobreza de espírito. Coisa de quem apodreceu sem amadurecer. Coisa de quem decerto não conheceu o amor universal, a ideia de que todos somos um e que a única coisa que importa é compartilhar com nossos iguais o que temos nas mãos.

O que me resta quanto à Nélida não é revolta, mas uma franca compaixão diante de sua morte sem entender sequer uma ínfima parte do sentido da vida.

Enquanto isso, sigo me perguntando: por que há cachorros que vivem como pessoas e pessoas que vivem como cachorros?"




(De Nathali Macedo, crônica sob o título acima - Aqui -, publicada no DCM Diário do Centro do Mundo.

Há, certamente, quem venha a discordar da Nathali, mas o questionamento exposto é pertinente. Ao que parece, Piñon inspirou-se no cotidiano norte-americano, onde pipocam casos de testamentos... heterodoxos, notadamente no sul. Lá, não sabemos se a legislação 'valida' a vontade do testador - julgamos que em alguns estados, sim -; no Brasil, não. Ê, elite velha incurável!...

Nathali Macedo por ela própria: 
Escritora, roteirista, militante feminista, mestranda em Cultura e Arte. Canta blues nas horas vagas.").                

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