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Um pouco de geopolítica - antes de exercitarmos o cívico e sagrado direito ao voto, nesta que é certamente a mais importante eleição dos últimos tempos, em que a civilização encara e submete a barbárie.
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Professor Jeffrey Sachs lembra das provocações que EUA/OTAN realizaram contra a Rússia e que levaram à guerra na Ucrânia já em 2014, e destaca a possibilidade de uma guerra nuclear
O antigo Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Zbigniew Brzezinski famosamente descreveu a Ucrânia como o “pivô geopolítico” da Eurásia, fator central de poder tanto para os EUA quanto para a Rússia. Já que a Rússia vê que os seus interesses vitais de segurança estão em questão no conflito atual, a guerra na Ucrânia está escalando rapidamente para um confronto nuclear. Faz-se urgente que tanto os EUA quanto a Rússia exerçam a contenção antes que o desastre ocorra.
Desde meados do século XIX, o Ocidente compete com a Rússia sobre a Crimeia e, mais especificamente, pelo poder naval no Mar Negro. Na Guerra da Criméia (1853-6), a Grã-Bretanha e a França capturaram Sebastopol e baniram temporariamente a marinha russa do Mar Negro.
Há muito tempo os EUA consideravam qualquer invasão feita por grandes potências no Hemisfério Ocidental como uma ameaça direta à segurança dos EUA – datando desde a Doutrina Monroe de 1823, a qual declara: “Portanto, nós devemos à candura e às relações amigáveis que existem entre os EUA e estas potências, declarar que deveremos considerar quaisquer tentativas da parte delas de estender o seu sistema a qualquer porção deste hemisfério como sendo perigosas para a nossa paz e segurança!”
Em 1961, os EUA invadiram Cuba quando o líder revolucionário cubano Fidel Castro recorreu ao apoio da União Soviética. Os EUA não estavam muito interessados no “direito” de Cuba de se alinhar com qualquer país que quisesse – a alegação que os EUA asseveram com relação ao suposto direito da Ucrânia de entrar na OTAN. A fracassada invasão de Cuba pelos EUA em 1961 levou à decisão da União Soviética de colocar armas nucleares ofensivas em Cuba em 1962 – o que, por sua vez, levou à Crise dos Mísseis Cubanos, exatamente há 60 anos neste mês. Aquela crise levou o mundo à beira da guerra nuclear.
No entanto, a consideração dos EUA no que tange aos seus interesses de segurança nas Américas não os impediu de usurpar os interesses centrais de segurança da Rússia nas vizinhanças da Rússia. À medida que a União Soviética se enfraquecia, os líderes políticos dos EUA começaram a acreditar que as forças militares estadunidenses podiam operar como lhes aprouvesse. Em 1991, o subsecretário de Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz, explicou ao General Wesley Clark que os EUA podiam alocar suas forças militares no Oriente Médio “e a União Soviética não nos impedirá”. As autoridades de segurança nacional dos EUA decidiram derrubar os regimes do Oriente Médio aliados à União Soviética e usurpar os interesses de segurança da Rússia.
Em 1990, a Alemanha e os EUA garantiram ao Presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev que a União Soviética podia dissolver a sua própria aliança militar, o Pacto de Varsóvia, sem temer que a OTAN se expandisse para o leste a fim de substituir a União Soviética. Baseando-se nisso, eles conseguiram o consentimento de Gorbachev para a reunificação da Alemanha em 1990. No entanto, com o fim da União Soviética, o presidente estadunidense Bill Clinton renegou a palavra dada ao apoiar a expansão da OTAN para o leste. O presidente russo Boris Yeltsin protestou vociferantemente, mas não pode fazer coisa alguma para impedi-lo. O decano estadunidense de política com a Rússia, George Kennan, declarou que a expansão da OTAN “é o começo de uma nova guerra fria.”
Sob o turno de Clinton, em 1999 a OTAN se expandiu para Portugal, Hungria e a República Tcheca. Cinco anos depois, sob o governo do presidente dos EUA George W. Bush Jr., a OTAN se expandiu para outros sete países: os países bálticos (Estônia, Latvia e Lituânia), o Mar Negro (Bulgária e Romênia), os Balcãs (Eslovênia) e a Eslováquia. Durante o governo do presidente Barack Obama, em 2009 a OTAN se expandiu para a Albânia e a Croácia e, sob Donald Trump, para Montenegro em 2019.
A oposição da Rússia à ampliação da OTAN se intensificou agudamente em 1999, quando os países da OTAN desconsideraram a ONU e atacaram a Sérvia, aliada da Rússia, e endureceram ainda mais nos anos de 2000, com as guerras de escolha dos EUA no Iraque, na Síria e na Líbia. Na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, o presidente Putin declarou que a ampliação da OTAN representa “uma séria provocação, que reduz o nível de confiança mútua”.
Putin continuou, dizendo: “E nós temos o direito de perguntar: contra quem esta expansão se intenciona? E o que ocorreu com as garantias feitas pelos nossos parceiros ocidentais após a dissolução do Pacto de Varsóvia?” Onde estão aquelas declarações atualmente? Ninguém sequer se lembra delas. Mas eu me permitirei relembrar esta audiência do que foi dito. Eu gostaria de citar o discurso do secretário-geral da OTAN Sr. Woerner, em Bruxelas, em 17 de maio de 1990. Naquele dia, ele disse que: “o fato que nós estamos prontos para não alocar tropas da OTAN fora do território da Alemanha dá à União Soviética uma firme garantia de segurança. Onde estão estas garantias?”
Também em 2007, com a admissão à OTAN de dois países do Mar Negro, a Bulgária e a Romênia, os EUA estabeleceram o Grupo de Força-Tarefa do Mar Negro (originalmente chamado de Força-Tarefa do Leste). Depois, em 2008, os EUA elevaram as tensões EUA-Rússia ainda mais ao declarar que a OTAN se expandiria para o próprio centro do Mar Negro – ao incorporar a Ucrânia e a Geórgia, ameaçando o acesso naval da Rússia ao Mar Negro, ao Mediterrâneo e ao Oriente Médio. Com a entrada da Ucrânia e a Geórgia, a Rússia ficaria cercada por cinco países da OTAN no Mar Negro: Bulgária, Geórgia, Romênia, Turquia e Ucrânia.
Inicialmente, a Rússia estava protegida da ampliação da OTAN pela Ucrânia, através do presidente ucraniano pró-russo Viktor Yanukovych, que levou o parlamento a declarar a neutralidade da Ucrânia em 2010. No entanto, em 2014, os EUA ajudaram a derrubar Yanukovych e levar ao poder um governo firmemente anti-russo. Naquele ponto foi deflagrada a guerra na Ucrânia, com a Rússia rapidamente recuperando a Criméia e apoiando os separatistas pró-russos no Donbass – a região do leste da Ucrânia com uma proporção relativamente alta de população russa. O parlamento ucraniano abandonou formalmente a neutralidade em 2014.
A Ucrânia e os separatistas apoiados pela Rússia no Donbass estão lutando numa guerra brutal por 8 anos. As tentativas para terminar a guerra no Donbass através dos Acordos de Minsk falharam quando os líderes da Ucrânia decidiram não honrar os acordos – que previam a autonomia para o Donbass. Após 2014, os EUA despejaram massivamente armamentos na Ucrânia e ajudaram a reestruturar as forças militares ucranianas para se tornarem interoperáveis com a OTAN – como foi evidenciado nos combates deste ano.
A invasão russa em 2022 provavelmente teria sido evitada caso Biden tivesse concordado com a exigência de Putin no final de 2021 para terminar a ampliação da OTAN para o leste. A guerra provavelmente teria sido encerrada em março de 2022, quando os governos da Ucrânia e da Rússia intercambiaram um rascunho de acordo de paz baseado na neutralidade da Ucrânia. Por trás das cenas públicas, os EUA e o Reino Unido empurraram Zelensky para rejeitar qualquer acordo com Putin e para continuar combatendo. Naquele ponto, a Ucrânia abandonou as negociações.
A Rússia escalará o conflito como for necessário, possivelmente envolvendo armas nucleares, para evitar uma derrota militar e uma maior ampliação da OTAN para o leste. A ameaça nuclear não é vazia, mas é uma medida da percepção da liderança russa sobre os seus interesses de segurança em questão. É aterrorizante que os EUA também estavam preparados para usar armas nucleares na Crise dos Mísseis Cubanos e uma alta autoridade ucraniana incitou recentemente os EUA a lançarem ataques nucleares “assim que a Rússia sequer pense em executar ataques nucleares” – isso certamente é uma receita para a Terceira Guerra Mundial. Estamos novamente à beira de uma catástrofe nuclear.
O presidente estadunidense John F. Kennedy aprendeu sobre a confrontação nuclear durante a crise dos mísseis cubanos. Ele não desarmou aquela crise através da força de vontade, nem pelo poderio militar dos EUA; ele o fez através da diplomacia e dos acordos, removendo os mísseis nucleares dos EUA na Turquia em troca da remoção dos mísseis nucleares da União Soviética em Cuba. No ano seguinte, ele buscou a paz com a União Soviética, ao assinar o Tratado Parcial de Proibição de Testes Nucleares (Partial Nuclear Test Ban Treaty).
Em junho de 1963, Kennedy enunciou a verdade essencial que pode nos manter vivos atualmente: “Acima de tudo, enquanto defendemos os nossos próprios interesses, as potências nucleares devem evitar aquelas confrontações que levem um adversário a uma escolha entre uma retirada humilhante ou a guerra nuclear. Para adotar este tipo de percurso na era nuclear seria apenas uma evidência da falência da nossa política ou de um desejo coletivo de morte para o mundo.”
É urgente que voltemos a considerar o rascunho de acordo de paz tratado entre a Rússia e a Ucrânia do final de março passado, baseado na não-expansão da OTAN. A atual situação complicada pode facilmente sair fora de controle, como o mundo fez em tantas ocasiões no passado; no entanto, desta vez com a possibilidade de termos uma catástrofe nuclear. A própria sobrevivência do mundo depende da prudência, da diplomacia e dos acordos de todas as partes envolvidas. - (Fonte: Brasil 247 - Aqui).
(Artigo de Jeffrey D. Sachs, publicado originalmente no Other News em 28/9/22. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247).
Jeffrey David Sachs (EUA, 1954) é professor universitário e diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável (Center for Sustainable Development) da Universidade de Columbia (New York) – onde dirigiu o Earth Institute (Instituto da Terra) entre 2002 e 2016. É presidente da Rede de Soluções Sustentáveis de Desenvolvimento da ONU (UN Sustainable Development Solutions Network), presidente da Comissão de COVID19 da Lancet, copresidente do Conselho de Engenheiros para a Transição Energética (Council of Engineers for the Energy Transition), Comissário da Comissão para o Desenvolvimento da Banda Larga da ONU (UN Broadband Commission for Development), acadêmico da Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano (Pontifical Academy of Social Sciences at the Vatican), e Professor Emérito Tan Sri Jeffrey Cheah da Universidade de Sunway. Serviu como Conselheiro Especial de três secretários-gerais da ONU e atualmente serve como Advogado das Metas Sustentáveis de Desenvolvimento (SDG – Sustainable Development Goals) da ONU, trabalhando sob a direção do atual secretário-geral da ONU, António Guterres. Ele passou vinte anos como professor da Universidade de Harvard, onde recebeu os seus títulos de bacharelado, mestrado e doutorado. Sachs foi agraciado com 40 doutorados honorários e os seus prêmios recentes incluem o Prêmio Tang de 2022 para o Desenvolvimento Sustentável; a Legião de Honra, por decreto do presidente da República Francesa; e a Ordem da Cruz do Presidente da Estônia. O seu livro mais recente é 'The Ages of Globalization: Geography, Technology, and Institutions' (2020).
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