Por Eduardo Escorel
Babi Yar. Contexto remete de modo direto, por sua vez, à invasão da Ucrânia iniciada em fevereiro, à guerra que não se sabe quando e como terminará, às mortes e à destruição deliberada das cidades pela artilharia russa. Isso, apesar do documentário tratar da ocupação alemã, durante a Segunda Guerra Mundial, da chamada Ucrânia soviética, ocorrida em 1941, além de incluir também a tomada posterior de Kiev pela tropa soviética, no final de 1943. Fiel ao seu procedimento usual, Loznitsa dispensa narração em voz off. Opta, neste filme, por legendas informativas. Feito com filmagens e fotografias de arquivo restauradas com esmero e muito bem sonorizadas com ruídos, ambientes e vozes, Babi Yar. Contexto deixa claro semelhanças existentes entre a ocupação alemã e a posterior libertação soviética, sendo, além disso, premonitório quanto à invasão russa deste ano. O tema central, porém, é o extermínio da população judia. Em setembro de 1941, os ocupantes alemães, segundo uma legenda ajudados pela “Polícia Auxiliar ucraniana e o Regimento de Polícia do Sul, sem qualquer resistência da população local, mataram a tiros 33.771 judeus na ravina de Babi Yar, no noroeste de Kiev.”
“Parece slasher movie, tal o horror”, escreve a jornalista Ivonete Pinto: “Babi Yar. Contexto consegue a proeza de nublar tudo o que já vimos em torno de imagens documentais de guerra, incluindo o Holocausto […] este mais recente inventário de horrores nos prova que ainda é possível o choque diante de corpos em putrefação, pertencentes ao que foram um dia pessoas e que acabaram assim por uma decisão de gabinete.” (Artigo disponível em https://www.cinemaescrito.com/2022/06/11o-olhar-2022-babi-yar-contexto/.)
Com Leandro Demori, Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, jornalistas do The Intercept Brasil e, na época, do El País Brasil, Amigo Secreto rememora a investigação sobre a trama jurídica e política que teve, entre outras consequências a prisão de Lula em 7 de abril de 2018, levando sua candidatura a presidente da República a ser barrada pelo TSE com base na Lei da Ficha Limpa. Até esse momento, o ex-presidente aparecia como favorito para a eleição presidencial a ser realizada naquele ano, segundo pesquisa de intenção de voto do Datafolha, divulgada em 2 de dezembro de 2017.
Um dos personagens principais desse processo, Sergio Moro, ex-ministro da Justiça, vem se tornando (a) cada dia mais irrelevante, o que tornou meio ociosa a atenção dedicada a ele em Amigo Secreto. Os verdadeiros protagonistas, porém, permanecem em cena – Lula e o atual presidente da República.
Os diferentes percursos de ambos estão bem representados – no caso de Lula, a partir do prólogo que inclui cerca de 5 minutos do seu depoimento ao então juiz federal Sergio Moro, dado em maio de 2017, no qual nega ter “sido beneficiado pelo grupo OAS com vantagem indevida de cerca de 2 milhões e 424 mil reais, propinas que seriam constituídas de um repasse” a ele “de um imóvel consistente em um apartamento tríplex […] e à realização de reformas nesse apartamento”. Segundo o Ministério Público, essa vantagem indevida estaria relacionada “a acertos de corrupção em contratos públicos, inclusive da OAS com a Petrobras”. Em seguida, Lula afirma no documentário que “nunca, nunca foi me oferecido antes da data que eu fui lá ver e quando eu fui eu não gostei. É isso. […]”.
Esse mesmo depoimento a Moro é retomado adiante, aos 26 minutos e 36 segundos de Amigo Secreto, por 3 minutos. Nesse trecho Lula nega que por ter “nomeado, ou indicado, ou pelo menos dado a palavra final para indicação ao Conselho de Administração da Petrobras de Paulo Roberto Costa, Renato de Souza Duque, Nestor Cuñat Cerveró e Jorge Luiz Zelada” tenha tido “conhecimento dos crimes por eles praticados ou desse esquema criminoso”: “Não. Nem eu, nem o senhor, nem o Ministério Público, nem a Petrobras, nem a Imprensa, nem a Polícia Federal. Todos nós só ficamos sabendo quando foi pego no grampo a conversa do [doleiro, Alberto] Youssef com o Paulo Roberto”, responde Lula.
Ainda segundo Lula declara por sua própria iniciativa a Moro logo a seguir: “O que eu estou percebendo desde que foi criado o tal do ‘contexto’, sabe, da caçamba feita pelo Ministério Público na questão do Power Point, quem está sendo julgado é o estilo de governar, é um jeito de governar. Se as pessoas que estão fazendo essa denúncia querem saber como é que se governa, elas têm que sair do Ministério Público, entrar em um partido político, disputar as eleições e ganhar para elas saberem como é que se governa. Governar democraticamente, com oposição da imprensa, com oposição dos sindicatos, com direito de greve, fortalecendo o Ministério Público, fortalecendo a Polícia Federal, fortalecendo todas as instituições de fiscalização deste país. Então, essas perguntas, todas, elas estão questionando um jeito de governar […].”
Ironia a registrar é Moro ter seguido, aparentemente, a orientação de Lula ao abandonar a magistratura para ser ministro da Justiça e ter tentado sem sucesso, ao menos por enquanto, ser candidato a um cargo eletivo.
Aos 58 minutos e 11 segundos, Amigo Secreto retoma a palavra de Lula, desta vez durante 4 minutos e 39 segundos extraídos das mais de duas horas de sua primeira entrevista à imprensa após estar preso há 384 dias, dada a Florestan Fernandes Júnior, de El País, e Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em 26 de abril de 2019. Resulta desconcertante, nesse caso, que as duas únicas perguntas incluídas na edição do documentário se refiram a sentimentos pessoais do ex-presidente, levando-o a chorar ao falar da morte do seu neto. Em suas respostas, porém, ele não perde a oportunidade de falar do que lhe parece mais conveniente: “[…] Eu tenho tanta obsessão de desmascarar o Moro, desmascarar o [Deltan] Dallagnol e a sua turma, e desmascarar aqueles que me condenaram que eu ficarei preso cem anos, mas eu não trocarei a minha dignidade pela minha liberdade. Eu quero provar a farsa montada. […] Eu não tenho ódio. Não guardo mágoa porque na minha idade quando a gente fica com ódio a gente morre antes. […]”; e ainda: “[…] então, eu lamento, lamento o desastre que está acontecendo neste país e é por isso que eu me mantenho em pé. O dia que eu sair daqui eles sabem que eu estarei com o pé na estrada para junto com esse povo levantar a cabeça e não deixar entregar o Brasil aos americanos. Acabar com esse complexo de vira-lata. Eu nunca vi um presidente bater continência para a bandeira americana. […]”.
É inequívoca a falta de uma conversa inédita com Lula em Amigo Secreto. Mas, como o pedido de uma entrevista foi feito e negado, só nos resta lamentar.
Maria Augusta não põe em questão as declarações de Lula colhidas no material de arquivo. Acata o que ele diz, deixando escapar a oportunidade de aprofundar um debate de ideias que poderia engrandecer o documentário e torná-lo ainda mais relevante. Por fidelidade estrita ao seu método pessoal, elaborado em preciosa filmografia, Maria Augusta se impõe permanecer na posição de observadora, sem interagir com seus personagens, tomando imagens e declarações por seu valor de face, confiando em que a maneira de serem articuladas será capaz por si só de produzir os significados que ela deseja.
Esse método resulta traiçoeiro, por vezes, deixando armadilhas pelo caminho, das quais Amigo Secreto nem sempre escapa. Um momento em que isso ocorre é quando o advogado criminal Tofic Simantob diz, aos 44 minutos e 22 segundos, ser “evidente que já havia um esquema de corrupção que remonta talvez à própria criação da Petrobras, na década de 1950. É um esquema de corrupção que envolvia o pagamento de propina para funcionários da estatal e uma parte para partidos políticos financiarem suas campanhas. Isso não foi o PT que inventou, isso vinha de todos os governos anteriores”. Por não serem arguidas, a impressão que resulta das palavras de Simantob é que o documentário não só admite, mas justifica a corrupção na Petrobras durante o governo Lula.
Outro exemplo dos riscos resultantes da postura de quem observa sem comentar está em uma das legendas finais, citada acima. Caberia ser mais preciso ao informar que “todos os processos movidos pela Lava Jato contra Lula foram arquivados pela justiça.” Na verdade, depois de as duas condenações em primeira instância, decididas por Moro em Curitiba, terem sido anuladas pelo Supremo Tribunal Federal e Lula ter recuperado seus direitos políticos, os processos enviados ao Distrito Federal prescreveram. (NOTA DESTE BLOG: Depois de anulados, os processos foram transferidos para o DF, onde atua a instância a quem competiria julgar. Ao que consta, os processos foram arquivados porque não havia tempo de repetir passo a passo cada etapa processual; é fato, mas não se pode esquecer que, por exemplo, o Ministério Público nem sequer demonstrou ATOS DETERMINADOS supostamente praticados pelo ex-presidente, o que não impediu Moro de aceitar a denúncia [daí a condenação fajuta por "atos indeterminados"]. Uma vez que não havia um outro Moro no DF, o assunto 'morreu'. A palavra adequada, assim, seria EXTINÇÃO, em vez de ARQUIVAMENTO - de onde se conclui que o ex-presidente, para todos os efeitos, é inocente).
Quanto aos outros dois processos aos quais o ex-presidente respondia, ambos foram suspensos em 2021 pelo ministro Ricardo Lewandowski, o que é diferente de terem sido arquivados.
A presença do atual presidente em Amigo Secreto se limita à habitual sucessão de afirmações deploráveis que deixam no ar a pergunta para a qual nem o documentário, nem ninguém até agora deu resposta satisfatória: como foi possível 57.797.847 brasileiros e brasileiras elegerem para presidente da República, em 2018, um indivíduo tão desqualificado, para dizer o mínimo? A outra interrogação que atormenta diz respeito ao resultado da eleição de outubro próximo.
Resta saber se Amigo Secreto terá a repercussão que merece, vencendo as barreiras do mercado exibidor e contribuindo para reduzir a incerteza predominante.
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