Nos anos 1990, o técnico Wanderley Luxemburgo conheceu o auge com títulos no Palmeiras, dentro da chamada “Era Parmalat” do clube paulistano.
Os jornalistas se entreolharam atônitos. “De onde veio essa informação?” Pronto! Luxemburgo acabara de colocar fogo na palha dos debates das mesas redondas de futebol no final de domingo na TV. Luxemburgo era hábil em alimentar a mídia especializada com balões de ensaios que ocupavam a pauta esportiva da semana, de acordo com seus interesses do momento. Em outras palavras, produzia simulacros para obter efeitos reais. A precessão dos simulacros sobre o real.
É esse efeito midiático paradoxal que produz aquilo que chamamos de “dilema midiático”: eu até poderia conhecer o modus operandi de Luxemburgo e decidir não publicar um simulacro. Mas os outros veículos vão, e, para todos os efeitos, ficarei com a imagem de ter sido “furado” pela concorrência.
Esse é um dos fatores para criar o fenômeno da “agenda setting” ou agendamento, descoberto pelos pesquisadores norte-americanos Maxwell McCombs e Donald Shaw em campanhas eleitorais nos EUA nos anos 1960-70: a capacidade da mídia criar uma agenda de eventos para a sociedade, fazendo com que o público pense sobre um determinado assunto, e não sobre outros.
O “dilema midiático” acaba criando os três principais movimentos por trás do fenômeno do agendamento: consonância, acumulação e onipresença, vetores convergentes que conseguem dar pernas para não-notícias, false flags, balões de ensaio, pseudo-eventos e todo um conjunto de simulacros midiáticos.
Guerra semiótica contra a capa da Time
Se não, observemos o que aconteceu com a grande mídia brasileira na semana em que a entrevista com o ex-presidente Lula virou capa da revista norte-americana Time.
Em primeiro lugar, chama atenção a consonância do jornalismo corporativo: todos, sem exceção, miraram na fala em que Lula responsabiliza tanto Zelensky quanto Putin como os responsáveis pela guerra na Ucrânia – ignorando a relevância do fato de Lula ter sido capa em uma revista como a Time. Esse foi o primeiro movimento.
Também em uníssono, 24 horas depois, todos os veículos, seja impresso ou eletrônico, passaram para o segundo movimento: Lula teria cometido mais um “erro”, dentro de um quadro de erros recorrentes que “preocupa o comitê de campanha” – insistiram os “colonistas”, sempre informados por supostas “fontes”.
“Fontes” que, na verdade, veem esses colunistas como “correias de transmissão”, assim como o matreiro Luxemburgo também via os jornalistas nas coletivas de imprensa. Isso certamente explica a consonância midiática instantânea: os repórteres (os jornalistas que trabalham em pé, em campo) estão sendo substituídos pelos “colonistas”, os jornalistas que trabalham sentados, sempre recebendo as ligações das “fontes”. Jornalistas que confundem “apuração” com investigação.
A consequência da consonância é a acumulação: o desdobramento do viés consonante em diversos movimentos que produzem longas suítes jornalísticas.
Nesse momento, entramos num terceiro movimento consonante: Lula supostamente erraria porque está “fora de forma”, “sua última eleição foi em 2006”, “Lula não usa celular, está desatualizado”... e por aí vai.
E a onipresença, não só pela ubiquidade midiática impressa, eletrônica e de convergência, mas também quando as próprias supostas vítimas da agenda setting do jornalismo corporativo passam a dar pertinência ao viés imposto.
Consonância, Acumulação, Onipresença... |
Como foi no episódio da entrevista em que o deputado do PT José Guimarães concedeu à “colonista” Natuza Nery na Globo News, nessa sexta-feira (06/05). Como de praxe, quando se trata de entrevistas com petistas, Natuza cortava ou falava em cima da fala do entrevistado. Até disparar: “Por que Lula está errando tanto?”... “Lula é um ser humano e pode errar como qualquer um...”, justificou docilmente o deputado, num típico flagrante de síndrome de Estocolmo que historicamente aflige a esquerda.
Mídia alternativa e dilema midiático
Também acompanhamos esse fenômeno de onipresença, reforçado pela própria mídia alternativa (que deveria ser anticíclica), nessa semana com a estudada indignação de Bolsonaro com a notícia sobre o lucro da Petrobrás no primeiro trimestre – lucro líquido de R$ 44,5 bilhões.
“O lucro de vocês é um estupro, é um absurdo. Vocês não podem aumentar mais os preços dos combustíveis”, gritou Bolsonaro em sua Live desta quinta-feira (05/05).
Tão matreiro como o técnico Luxemburgo, numa típica estratégia semiótica alt-right, o presidente se apropria da crítica que a esquerda faz à política de preços da estatal voltada para os acionistas, porém com os sinais trocados: Bolsonaro se indigna para mostrar ao distinto público que a Petrobrás só dá problemas e precisa mesmo ser privatizada.
Consonância: toda a grande mídia repercutiu a live do chefe do executivo com o viés uníssono – vejam como os “extremistas” (esquerda e direita, Lula e Bolsonaro) só pensam em meter a mão na política de preços da estatal, para dar prejuízo à empresa... como foi no “petrolão” do PT!
Pois a mídia alternativa (certamente pelo temor do dilema midiático) também dá visibilidade e repercussão aos calculados arroubos do chefe do executivo, participando alegremente dos vetores de acumulação e onipresença da estratégia de comunicação do inimigo.
Como ser uma mídia anticíclica? Simplesmente ignorando e não repercutindo (isto é, não imputar relevância e pertinência ao inimigo) a guerra criptografada de informações de Bolsonaro e do PMiG – o Partido Militar Golpista.
Além do fenômeno do agendamento condicionar a pauta de acontecimentos para a sociedade e moldar a percepção dos assuntos supostamente mais relevantes para o distinto público, produz ainda uma consequência mais deletéria: as profecias autorrealizáveis - uma definição falsa de uma situação evoca um novo comportamento que torna a definição falsa como “verdadeira”. Perpetuando uma tendência de erro.
Sabemos que desde que o então presidente do STF Dias Toffoli, em 2018, escalou o general Fernando Azevedo e Silva para ser um “assessor” ou “ponte” entre a Corte e a caserna (e que depois o mesmo general foi nomeado diretor geral do TSE), o Judiciário passou a ser tutelado pelo PMiG.
A grande mídia simplesmente ignora a existência de um partido militar, preferindo contar a narrativa de que Bolsonaro que “seduzir” as Forças Armadas a participar de uma aventura golpista. Legalistas, o alto comando militar estaria sendo corrompido pelo golpismo do presidente e seus amigos blogueiros, além das milícias reais e virtuais.
O efeito de agendamento do caso Daniel Silveira, sua condenação pelo STF, o indulto do presidente, a polêmica da tornozeleira sem bateria etc., conjugado com as “88 perguntas” das Forças Armadas ao TSE (mise-en-scène de um tribunal que já está militarmente tutelado) e as especulações sobre uma “contagem paralela dos votos” feita pelos militares criam a profecia autorrealizável de uma suposta “crise”.
Essa é atmosfera perfeita que a grande mídia cuidadosamente cria (vai ter golpe? Quem dará o golpe?), assim como fez com a crise econômica no governo Dilma – a perfeita crise autorrealizável: de tanto martelar a pauta da crise econômica, os agentes econômicos acreditaram, gerando uma crise paradoxal – a mentira se autorrealizou como verdade.
Grande mídia participa de mais uma crise autorrealizável, mas finge ser de oposição ao criticar os “movimentos anti-democráticos”. Participa dessa “sociedade da suspeita” com consonância, acumulação e onipresença, dando relevância e pertinência a um verdadeiro telecatch.
Saindo de fininho... |
Cadê o Paulo Guedes?
Além de tudo isso, essa estratégia de agenda setting produz um bônus residual: esconde Paulo Guedes e a crise econômica. Cadê o Paulo Guedes?
Ora, o leitor pode indagar, mas o jornalismo corporativo não está pautando diariamente notícias sobre a crise econômica? O jornalismo corporativo vem falando sobre a inflação sem controle, a escalada da fome no país, o aumento do endividamento e inadimplência do consumidor (77% das famílias estão endividadas e 29% inadimplentes), 12 milhões de desempregados, 33 milhões vivendo com um salário-mínimo, além do cenário de precarização do trabalho (uberização) com a expansão do setor de serviços.
Sim! Tudo isso está sendo relatado diariamente pelo jornalismo corporativo. Mas apesar de tudo isso estar no noticiário, ninguém procura Paulo Guedes. Ao contrário da crise econômica autorrealizável do segundo governo Dilma, na qual diuturnamente Guido Mantega (à frente da Economia) era assediado pelos jornalistas para explicar índices como o desemprego – 4,8%, a menor da série histórica.
Esse “esquecimento” do atual ministro da Economia tem uma explicação semiótica bem definida: para a grande mídia, o que está ocorrendo está mais para o campo das tragédias naturais do que para a área dos fenômenos econômicos.
Sempre que os perrengues econômicos entram em pauta, o texto é o seguinte: “o motivo é um conjunto de fatores”... e aí vem: a pandemia... a guerra na Ucrânia... as mudanças climáticas... mercados nervosos com ano eleitoral... e, agora, o mundo tenso com a volta da Covid-19 na China, obrigando o país retornar à “estaca zero” do combate à pandemia.
Economia: no campo das catástrofes naturais |
O “jornalismo econômico” (se é que ainda pode ser assim considerado) vê inflação, desemprego etc., como ondas geradas por catástrofes naturais, assim também como enchentes ou avalanches de morros que soterram moradores em áreas de risco.
Por isso, o telejornalismo exorta “solidariedade” às vítimas da fome e da miséria, assim como também pede aos espectadores mantimentos a flagelados de alguma catástrofe meteorológica.
Paulo Guedes é um economista. Portanto, para “colonistas” e jornalistas corporativos, nada tem a dizer sobre meteorologia. Dessa maneira, o cenário de uma CRISE ECONÔMICA SISTÊMICA, criada pela política neoliberal, é tirada da agenda.
E consegue pular fora do espinhoso campo de ECONOMIA POLÍTICA.
Se a esquerda quiser mesmo fazer um movimento anticíclico (isto é, não alimentar o agendamento da pauta e as profecias autorrealizáveis tão vitais para a grande mídia que simula ser de oposição), terá que trazer urgentemente a ECONOMIA POLÍTICA para o debate eleitoral. E fugir dos temas da guerra cultural – outro vetor que nutre a atmosfera das estratégias de comunicação alt-right.
PS.: O articulista Moisés Mendes criou a melhor imagem para todo esse telecatch da simulação de golpe do jornalismo corporativo e PMiG: “O plano parece frágil, até porque teria muito coturno para pouco sapato em cromo alemão” – clique aqui. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
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